2. A distância Intransponível do Destino
3. O saxofonista do Padre Elpídio
.4. João Mazelas5. O Talismã do Tapeceiro.
Fui eleita, entre todas,
preferida dum senhor,
tinha coroa e vestido,
anel, cetro e louvor.
As outras até tentaram
inutilmente alcançar
as graças que possuíam
meus passos ao caminhar.
Meu vestido pesava
trinta quilos de ouro,
eu carregava perfumes
nas minhas botas de couro.
As tranças dos meus cabelos
eram longas e fortes,
tocavam meus tornozelos
e ao meu rei davam sorte.
Fui posta ao lado dele,
a sua esquerda fiquei,
bem perto do coração
do meu nobre e bondoso rei.
Do alto eu podia ver
os olhares que lançavam
as que ficaram para trás
e que jamais me alcançaram.
Por lutas passei, com certeza,
que provaram meu valor,
e aos olhos atentos do rei
tornei-me seu premio maior.
Aos poucos ocupei o lugar
de outras mil concorrentes,
e mais de uma vez me disseram
que o rei nunca fora assim antes,
tão bom, compassivo e feliz,
tão certo de dias melhores,
cansado das guerras sem fim,
sensível a outras dores.
Tudo foi bom por um tempo
que parecia sem fim,
mas nada dura para sempre
e tinha que ser assim.
Quando num golpe fatal
desses que não esperamos
fui obrigada a ficar
longe do rei por uns anos,
A alegria, a paz,
e a certeza do amor,
foram deixadas para trás,
bem longe do meu senhor.
Não havia consolo
para o coração real
que desistiu de lutar
contra o destino fatal.
O meu rei dormiu para sempre,
mas até o último instante
fui a sua escolhida,
e isso para mim é o bastante.
A distância Intransponível do Destino
A menina
Ametista mal havia completado 14 anos quando foi dada em casamento pelo pai a
um homem quinze anos mais velho. Dr. Amaranto praticamente vendeu a filha a um
velho conhecido, evitando, assim, perder a fazenda que pertencia à família há
mais de cinco gerações.
Mariano
Lorenzo, ao contrário do que pensavam as más línguas da cidade pretendia
casar-se com Ametista porque não suportava injustiças, e teve pena de ver a
moça ser negociada pelos armazéns da cidade como um carregamento de café. Além
do mais, estava mesmo procurando uma esposa e decidiu que seria Ametista.
Assim, estava fazendo o bem a muitas pessoas com uma mesma atitude: Dr.
Amaranto teria o dinheiro que precisava, Ametista estaria protegida e ele teria
uma companhia em casa. Dr. Amaranto marcou um jantar para que os noivos se
conhecessem e Mariano soube, no exato momento que pos os olhos em Ametista, que
a amaria para o resto de sua vida.
Casaram-se
depois de três meses, em cerimônia íntima, a qual só compareceram os
familiares. A noiva, totalmente ignorante dos planos de seu futuro marido, não
parava de chorar. Trazia uma bonequinha de pano no lugar do buquê, entregou-a a irmã ao fim da cerimônia e
aconselhou-a a fugir do pai enquanto se abraçavam.
Antes de
se recolher ao seu quarto de esposa, Dr. Amaranto levou-a a um canto e disse:
- Não
negues nada a teu marido porque não aceito devoluções. Sua tia já lhe contou
tudo o que precisas saber para agradares a teu homem?
- Ceio
que sim, papai.
- Pois
bem, não me envergonhes e seja uma boa menina. Ele agora é o seu dono, e a
família dele, sua família.
Ao
entrar no quarto, pensou em jogar-se da janela, mas calculou que a altura não a
mataria e também tinha medo de ir para o inferno. Vestiu a camisolinha branca
que a esperava pendurada no cabideiro e aguardou pelo homem que não conhecia
direito, mas já odiava. Quando Mariano apareceu, sentiu que não precisava ter
medo, e resolveu enfrentar seu destino com dignidade. Mas o marido pediu que se
sentasse e disse:
-
Ametista, o que vou lhe dizer, talvez não compreendas agora, mas gostaria que
ouvisse com atenção. Desde que te vi na casa de teu pai meu coração não mora
mais em mim. Amei-te sim, e justamente por isso seria incapaz de lhe fazer
qualquer mal. Tenho meu orgulho e não quero obrigar minha própria mulher a me
amar, muito menos a me suportar por medo. Por isso, gostaria de lhe fazer uma
proposta vantajosa para nós dois. Preciso de alguém que cuide da casa para mim.
Como sabe, fiquei viúvo do primeiro casamento quando minha esposa morreu no
parto. Desde então, minha mãe cuida de meu menino, mas ela já é velha e não
durará para sempre. Preciso de uma mulher que me ajude e me faça companhia. Por
outro lado, você estava numa situação delicada. Prometo não te tocar até que
você esteja pronta. Só o que peço é que sejamos amigos e cuidemos um do outro.
Tem minha palavra de que eu libero você de seu compromisso se completar a
maioridade e não quiser mais viver ao meu lado.
Estava
claro no rosto da menina que ela havia sido pega de surpresa.
- Não
sei o que dizer... Estava pronta para
tudo, menos para isso. Também não tenho opção, certo? Se bem entendi, ou aceito sua proposta, que é
bem melhor do que pensei que fosse me acontecer hoje, ou volto para o meu pai e
corro o risco de parar nas mãos de um homem muito menos misericordioso.
- Eu não
te devolveria. Você pode ficar de qualquer jeito, mas estou sendo sincero e
abrindo meu coração. Sei que é uma moça sensata, não acha justo que sejamos
amigos?
- Claro.
Mas, se não for pedir muito, gostaria que minha irmã fosse poupada de ter um
destino incerto nas mãos despreparadas de meu pai. Se você pudesse falar com
ele...
- Não se
preocupe. Paguei o preço pelas duas e seu pai se comprometeu comigo, mediante
uma quantia razoável, de que sua irmã só se casaria quando, e se decidir, e com
quem escolher.
- Vejo
que o que sentes é sincero e forte. Aceito sua proposta, mas receio que não
possa garantir que vá me apaixonar e chegar a amá-lo.
- Isso é
comigo. Não tenho pressa. Só te peço, por enquanto, que me ajudes com a casa. O
resto a gente vê depois.
- Está
bem. Cuidar de uma casa eu sei.
Ametista
estendeu a mãozinha a Mariano e ambos selaram o acordo com um brinde de água.
Ele deitou-se no sofá de frente para a cama, e ela sumiu entre os travesseiros
do leito conjugal.
Os dois
tornaram-se os melhores amigos, e viviam um para o outro tão dedicadamente, que
não havia quem pudesse duvidar que não fossem apaixonados. Ametista cuidava da
casa com a firmeza de uma velha senhora, Mariano andava mais bem vestido,
estava mais disposto no trabalho e até engordara um pouco. Depois de algum
tempo, Ametista mandou que trouxessem sua sogra e o enteado para que vivessem
todos juntos, e a felicidade de Mariano não poderia ser maior.
Os anos
passaram e a família se manteve em harmonia, mas Ametista sentia-se pressionada
com a chegada de seus vinte e um anos. Ela sofria por constatar que, mesmo que
o marido fosse o melhor dos homens e que sua vida fosse desejável até para a
mais desalmada das mulheres, não havia se apaixonado por Mariano. Há dois anos
sua irmã caçula encontrou o amor e casou-se. Ouviu seus relatos de paixão
angustiada, de sensações de morte a cada correspondência trocada com o noivo,
acompanhou as providências para o casamento e esteve com a irmã até o momento
de entregá-la ao marido. Depois que o jovem casal voltou de lua-de-mel,
instalou-se numa casa espaçosa e romântica na vizinhança e, todas as vezes que
as irmãs se visitavam Ametista percebia que nunca havia tratado o marido com tantos
carinhos, e que havia entre eles certo constrangimento até quanto a questões
sentimentais. Isso a fez concluir que nunca se apaixonou, mesmo que Mariano
merecesse mais que todos ser amado, ela não enlouquecia na sua presença. Antes,
entre eles se formou uma sólida amizade, e sabiam ler os pensamentos um do
outro com tanta eficácia que quase não precisavam se falar. Riam juntos e se
divertiam bastante na companhia um do outro, porque suas almas se agradavam das
mesmas distrações e passatempos. Quem os conhecia na intimidade do lar, julgava
ser impossível que duas pessoas buscassem tanto o bem-estar uma da outra como
no caso deles. Ametista, porém, não enxergava essa cumplicidade como amor,
entendia que só poderia ser gratidão e carinho o que a ligava a Mariano, e ele
não merecia tão pouco.
Quando
completou vinte e um anos, Ametista ganhou um apartamento na cidade e a mais
espetacular festa de aniversário. Era, ao mesmo tempo, uma comemoração e uma
despedida. Separaram-se dois meses depois, ainda unidos pela amizade e algumas
formalidades jurídicas.
Acontece
que nem sempre sabemos identificar nossos sentimentos e, na solidão da vida de
descasada, Ametista compreendeu que não era apenas amizade o que sentia por
Mariano. É bem verdade que não estremecia ao seu toque, nem sua cabeça girava
ao som de sua voz, mas longe dele sentiu-se incompleta e vazia. Seus dias
arrastavam-se sem sentido e acordava à noite com angústias de não poder ver o
marido nunca mais. Antes que completasse um mês longe da família que aprendera
a amar, reuniu toda a coragem que tinha e resolveu voltar à fazenda e declarar
todo o sentimento recém descoberto. Queria viver com ele até o fim de sua vida,
feliz e cheia de filhos.
A viagem
de volta durou quase um dia inteiro por culpa das chuvas de verão que
castigavam a região todos os anos, provocando enchentes e desmanchando o barro
das estradas. Para não atolar, o motorista teve que parar várias vezes e
esperar que estiasse um pouco. À medida que se aproximava, o coração de
Ametista batia mais forte. Pensava nos anos que passou ao lado de Mariano, nas
vezes todas que riram juntos, e em outras que choraram juntos também. Como
naquela vez que ele perdeu toda a safra de café por causa dos vendavais que
atingiram a cidade fazendo os rios subirem e alagando tudo na região, como esse
que contemplava da janela do ônibus. Estiveram juntos por tanto tempo e com
tanta liberdade, que não havia percebido o momento exato que se permitiu amar,
apesar de ter jurado para si quando menina jamais pertencer a homem algum.
Agora, pelo contrário, sentia que pertencia a Mariano e só a ele, e que nenhum
outro poderia ter morada em seu coração.
Estava
tão distraída em seus pensamentos, que não percebeu o alvoroço instalado na
frente da casa principal quando o ônibus parou na entrada da fazenda. Só depois
de ter se aproximado o suficiente para ouvir os comentários foi que notou que
alguma coisa estava muito errada. Ao mesmo tempo em que precisava saber do que
se tratava, teve medo. Uma certeza invadiu seu coração e soube que toda aquela
agitação estava relacionada a Mariano. Teve vontade de chorar, mas se conteve.
Subiu as escadas da varanda de dois em dois degraus, e atravessou a sala com a
rapidez de um pensamento, parando abruptamente quando viu a sogra sair do quarto
do filho, a expressão de quem viu um fantasma ou coisa pior. Ao cruzarem os
olhos, correram para os braços uma da outra, e dona Hildebranda contou tudo a
Ametista:
- Minha
filha, que tristeza! Hoje cedo... Estava tudo tão bem... Exceto pelo fato de estarmos
com saudades de você, claro. Mariano sofria muito com sua ausência.
Desculpe-me, mas é a verdade.
-
Imagine dona Hildebranda! Não há o que se desculpar. Ter partido foi mesmo uma
bobagem. Mas diga-me, o que houve?
- Pois
é... Ele estava trabalhando como sempre e parou para almoçar mais tarde porque
precisava terminar todo o trabalho antes da chuva cair. Deitou-se depois do
almoço nas espreguiçadeiras da varanda e, não tinha dez minutos que fechara os
olhos, escutou os gritos dos rapazes por causa de um cavalo que fugiu para a
estrada. Mandou que Vicente corresse para a curva para sinalizar enquanto ele
puxava o bicho, mas um ônibus vinha em sentido contrário, com a visão
prejudicada pela chuva que começava a cair, e não viu meu menino. Passou a noite
em agonia, e o doutor garantiu que não terá outra.
Ametista
não sabia o que dizer, ficou olhando o rosto daquela senhora sentada a sua
frente. Queria abraçá-la, confortá-la, mas não tinha forças. Talvez, nesse
exato momento, o homem que a amou mais que tudo, e que ela descobriu amar
também, estivesse partindo sem ter ouvido dela uma única vez as palavras mais
verdadeiras que decidira falar em sua vida. E tudo isso porque deixara o tempo
passar demais. Tantas oportunidades perdidas, tanto amor recusado, tanto desejo
contido...
- Dona
Hildebranda, posso vê-lo?
- Claro
que sim, querida. Sinto dizer que ele está inconsciente, mas vá.
Ametista
entrou no quarto e a imagem que viu ficou marcada em sua memória até a noite de
sua morte, sessenta e quatro anos depois, no mesmo quarto, sobre a mesma cama. Aproximou-se
do marido e, devagar, segurou suas mãos. Declarou todo o amor que sentia por
ele, sentada na cama ao seu lado, pediu desculpas pelo atraso das palavras e
jurou cuidar de sua família até o último de seus dias, casta, e que assim
encontraria com ele na eternidade.
Uma
lágrima correu pelo rosto de Mariano, e Ametista entendeu que ele havia
concordado com sua decisão.
O saxofonista do Padre Elpídio
Querêncio sempre
fora um rapaz estranho. Seu aparecimento na cidade de Poço das Almas já
predizia que sua vida não seria como a das outras pessoas. Na mesma noite em
que um meteoro cortou o céu e caiu nas terras dos ciganos abrindo um buraco no
chão onde cabiam umas cinquenta pessoas, um bebezinho foi achado chorando a
apenas alguns metros de distância do evento apocalíptico. Tinha os olhos negros
dos pumas, os cabelos pretos espessos e lisos, a pele morena e uma marca de nascença
que lembrava um pequeno mapa na bochecha; estava enrolado em panos limpos e
carregava um bilhete com o que parecia ser seu nome, mas numa língua
desconhecida de todos na cidade. Foi levado para o orfanato do padre Elpídio e
ele batizou o bebê com o nome de Querêncio da Hora. Cresceu com os outros
meninos do abrigo, tendo por único pai a figura bondosa do velho padre.
Aos dezesseis anos,
quando foi mandado à Cabiceira do Rio Seco buscar um médico para cuidar de dois
internos que haviam contraído malária, desapareceu. Procuraram por quase um ano
na cidade e nos arredores, até que o padre desistiu e entendeu que o tempo de
Querêncio não lhe pertencia.
Passaram-se quinze
anos antes que Querêncio retornasse a Poço das Almas, dessa vez de forma bem
discreta. Instalou-se numa casinha de pau-a-pique perto do rio e passou a fazer
visitas periódicas ao cemitério atrás da igreja para colocar cravos brancos no
túmulo do padre. Ninguém sabia do que vivia o que havia acontecido nos anos que
passou desaparecido ou o que o tinha feito voltar. Só o que sabiam era o que se
falava nas barbearias e nos botecos, nas reuniões de família e nos bancos das
praças: que Querêncio havia surgido misteriosamente, trazido pelo meteoro, e
que não era humano, mas uma criatura do outro mundo.
Os hábitos do homem
não ajudavam a desmistificar o conceito que formaram a seu respeito. Querêncio
permanecia recluso a maior parte do tempo e, nas raras vezes que deixava sua
casa, só o fazia à noite; sempre ia ao cemitério, ou subia nas colinas para
tocar em seu saxofone melodias encantadas que ele mesmo compunha.
Um ano depois de seu
retorno, coisas estranhas começaram a acontecer. Primeiro, os animais das
fazendas da região amanheciam mortos sem qualquer sinal que pudesse indicar a
causa; depois, alguns incêndios e o desaparecimento de três pescadores numa
noite de lua cheia.
Os moradores
associaram a Querêncio os fenômenos sobrenaturais que atingiram a cidade e,
suas suspeitas se agravaram quando souberam que um menino apareceu morto a
apenas dez metros do chalé onde o misterioso homem morava. Quem viu relatou
que, ao lado do corpinho do menino foi encontrada a palheta de um saxofone, e
não precisaram de mais provas. Dirigiram-se ao chalé, mas não havia sinal do
facínora, puseram fogo em tudo e dividiram-se em grupos para tentar capturar o
homem e pôr um fim aquele desespero que tomou conta das mulheres e crianças. O
delegado disse que o queria vivo, pois viu na ocasião a oportunidade de se
autopromover, mas a histeria tomou conta das pessoas de tal forma que ele não
confiava muito na sorte de poder utilizar a captura a seu favor.
À meia noite do
segundo dia de caçada, o céu tornou-se ígneo e todos puderam ver uma bola
incandescente sair de onde havia o buraco do meteoro e cortar as nuvens escuras
em direção ao infinito. Ao chegarem ao local do buraco, era como se ele nunca
houvesse existido e, bem no centro de onde deveria estar, acharam o saxofone e
um ramo de cravos brancos. Todos retornaram às casas, aliviados, pois
acreditavam que Querêncio havia voltado para o lugar de onde viera quando ainda
era um bebê. Sentiram-se em segurança e a felicidade podia ser vista estampada
nos rostos de cada um. O prefeito fez um anúncio extraordinário de sua varanda,
declarando aquele dia como feriado municipal; mas, quando as luzes se apagaram
e cada um se encontrava deitado em sua cama, ouviu-se, ao longe, o som do
saxofone executando as músicas já tão conhecidas. Um arrepio percorreu o corpo
de cada morador, os mais fracos sentiram o sangue lhes congelar nas veias,
enquanto os pobres animais se agitavam. No céu, três bolas de fogo cruzavam em
direção à mata.
João
Mazelas
João
Eurico Martinez era coveiro. Trabalhava no Cemitério Municipal de Cabiceira do
Rio Seco há tanto tempo que já nem se lembrava de ter feito outra coisa na
vida. Há alguns anos fizera planos de se mudar com a família para um sítio a
caminho de Tornados, mas quatorze dias antes da mudança um aguaceiro desceu
pela cidade arrastando quase tudo e todos, inclusive a mulher e os oito filhos
de João. Só lhe sobrou Quixote, o cachorro, que estava com ele na cidade
vizinha, comprando uma lápide para o túmulo de uma velha professora que havia
falecido há uma semana.
Depois
desse descalabro, o coveiro ficou conhecido como João Mazelas e tornou-se
amargurado pelo arrependimento de ter deixado a família desamparada, mesmo com
a insistência da mulher para que ficasse até que os ventos espantassem as
nuvens assustadoras que se formavam. Enquanto os outros moradores se uniram em
mutirões para desobstruir as estradas e tirar da cidade aquela cara de
apocalipse, se revezando para assistir aos doentes e feridos, procurando os
parentes desaparecidos e recolhendo os órfãos e os velhinhos aos abrigos
improvisados, João se mudou com Quixote para o casebre dentro do cemitério que,
miraculosamente, permanecia intacto. Passou a viver isolado a maior parte do
tempo e, nas raras vezes que visitava a cidade, não se podia ouvir sua voz.
Comunicava-se com gestos e grunhidos, e quando não conseguia se fazer
compreender, ia embora espraguejando e chutando o chão, deixando as pessoas
apavoradas. Por esse comportamento excêntrico, ganhou fama de louco. A simples
menção de seu nome fazia os pequeninos obedecerem aos pais de imediato. Não demorou
a tornar-se uma lenda na pequena cidade, e até algumas matérias saíram na
Gazeta Cabiceirense sobre aquele ícone da catástrofe local. Para fugir ao
assédio de curiosos, refugiava-se nos escombros de sua antiga casa, que só
estava a salvo das pessoas porque era necessário atravessar o Bosque dos
Perdidos para ter acesso a ela. Ora, o Bosque era um dos lugares proibidos
pelos moradores de toda aquela região, juntamente com a Terra das Rotas
Diagonais e A Floresta Descomunal formava o que havia de mais perigoso no
pequeno mundo conhecido por eles, ameaçava-lhes a existência e ninguém quer
deixar de existir. Não temiam a morte, mas o desaparecimento, o exílio.
Ironicamente,
esse era o maior desejo de João. Queria poder evaporar. Preferia ter ido embora
com a família para onde quer que eles tenham ido. Qualquer coisa teria sido
melhor que aquela sensação de não pertencer mais a lugar nenhum que agora o perseguia
como um inimigo interno, aprisionado em sua mente e coração, respirando junto a
ele, se alimentando com ele, destruindo-o de dentro para fora numa morte lenta
e dolorosa. Para aliviar um pouco sua dor, passava todo o tempo livre
contemplando os restos da vida que tivera. Contrário ao que se esperava, o
lugar mantinha a mesma atmosfera tranquila dos dias felizes que passara com a
família. Suas visitas eram uma busca desesperada de consolo e paz. E de
lembranças. Sentia-se próximo aos parentes, e se fechasse os olhos ainda podia
fingir que chupava uma laranja debaixo das árvores observando as brincadeiras
dos meninos. Podia jurar que o cheiro de comida o convidava para o almoço, e
até conseguia ouvir o batucar das panelas.
Os
moradores de Cabiceira acreditavam que o lugar era amaldiçoado. Contavam que
uma família havia morrido ali a muitos anos de uma doença estranha.
Curiosamente, o pai foi o único sobrevivente, exatamente como agora. O homem
chegou a ser acusado de envenenar a mulher e os filhos, e acabou fugindo antes
que fosse morto por populares. Depois disso a casa ficou vazia durante anos,
até que João fosse morar com a família. Apesar de ser um homem simples, João Eurico
não dava ouvidos a crendices, atribuía suas desventuras ao curso natural da
vida e sabia que coisas ruins acontecem a bons e maus. Não havia revolta em seu
coração, mas também não havia espaço. A dor tomou conta de tudo o que restou.
No dia
que a esposa faria anos, João se levantou ainda de madrugada, passou um café
sem açúcar, tomou de um gole uma xícara bem quente e partiu para a antiga casa
colhendo flores pelo caminho para depositar debaixo da amoreira. Andava despreocupadamente e até um pouco
feliz, como se fosse entregar o ramalhete em mãos. Era como se a caminhada
durasse alguns minutos, e não a hora e meia que na verdade lhe custava. Quando
atravessava a última clareira, sabia que podia olhar na direção do lugar e
avistar a cozinha que não havia sofrido nenhum dano, mas nesse dia, ao erguer
os olhos para a casa, viu o vulto de uma figura feminina atravessar a janela e
temeu. Por um instante acreditou em tudo o que as pessoas lhe disseram sobre a
história do lugar e correu o mais que pode, seu coração estava indeciso sobre
se devia parar ou bater cada vez mais rápido tamanho o medo que se apoderara do
homem. Com certeza a esposa que havia sido envenenada pelo marido ainda vivia
ali. Por isso ele escutava barulho na cozinha quando dormia. Tinha atribuído
tudo aos ratos, mas agora já duvidava dos roedores.
Quando
finalmente alcançou o cemitério estava ensopado de suor gelado, e os olhos
esbugalhados fizeram Quixote pular nos degraus da varanda e latir para o
portão. Correu para dentro de casa e vasculhou tudo procurando a Bíblia
ignorada por tantos anos. Precisava esquecer aquele vulto ou não pararia de
tremer nunca mais. Leu os Salmos até se sentir mais calmo, mas trabalhou aquele
dia com a sensação de que os mortos acordariam de seu sono eterno e levantariam
dos caixões como se da própria cama. À noite custou a dormir, mas ao levantar
pela manhã sentia-se mais curioso que apavorado. Pensou em retornar ao lugar e
tirar a prova do que significava aquela aparição. Partiu levando Quixote, para
se sentir mais protegido.
Ao
avistar a cozinha, parou por alguns minutos esperando que o vulto desse sinal
de sua presença. Nada aconteceu. Ganhou confiança e aproximou-se lentamente,
mas estacou diante da soleira da porta assustado com o que vira. Várias tulipas
apareceram do dia para a noite, enfileiradas no que antes era o caminho para a porta
principal. Aquilo para ele foi a confirmação de que o sobrenatural rondava sua
vida. Seria algum defunto mal enterrado? Ou talvez insatisfeito com o
tratamento que ele dava à sua lápide? Mas era sempre tão cuidadoso com a
limpeza do cemitério! É verdade que andou relaxado depois da morte dos
familiares, mas que tipo de alma impaciente é essa que não compreende um golpe
tão grande no coração de um homem?!
Voltou
para o cemitério disposto a descobrir o que o além queria com ele. Talvez
estivesse vivo por engano e agora precisasse consertar o erro de ter abandonado
seus amados a própria sorte no último dia de vida deles. Como não tinha nenhum
enterro, felizmente, aproveitou para dar uma caprichada na aparência geral dos
jazigos perpétuos, que eram os mais esquecidos em sua rotina. Ao entrar na
parte nobre do cemitério, ficou impressionado pela primeira vez com aqueles
anjinhos e suas harpas, e teve a impressão de uma ou outra fotografia ter-lhe
mandado uma piscadela. Sacudiu a cabeça e murmurou de si para si que estava
enlouquecendo. Tantos anos trabalhando com mortos que começava a variar! O dia
terminou sem que pudesse colocar flores nos vasinhos sobre os túmulos.
-
Amanhã eu ponho as flores mais bonitas que encontrar pessoal! – bradou em alta
voz, ao mesmo tempo em que pensava no absurdo da situação. Definitivamente
precisava de um médico de doidos, concluiu.
Chegou
a casa tão exausto que mal pode terminar o banho. Adormeceu assim que sua
cabeça tocou o travesseiro e sonhou. Em seu sonho escrevia um bilhete para o
fantasma que agora habitava sua casa destruída e deixava sobre a mesa da
cozinha. Mas ao voltar para pegar a resposta era recebido por seus filhos e
esposa, com a alegria que lhes era comum. Acordou triste com o fim do que para
ele era um desejo mais que um sonho, mas passada a primeira impressão,
sentou-se e escreveu o tal bilhete com a brevidade que fazia parte de seu
caráter. Dizia assim:
-
Senhora Seja Lá Quem For, o que queres de mim?
Foi
até sua casa e depositou o bilhete na mesinha da varanda. Não teve coragem de
entrar porque achou que seria uma falta com a nova moradora, mas percebeu que
havia um balanço na amoreira e arrepiou-se inteirinho. Foi para o barraco do
cemitério satisfeito por não ter dado um esbarrão acidental naquela criatura do
outro mundo.
Conforme
prometera, encheu o cemitério de flores e aproveitou a tranquilidade de uma
cidade sem mortos novos para capinar o pátio e lavar o chão das capelas. Sem
perceber sua tristeza foi dando lugar a rotina pesada de trabalho e foi dormir
mais preocupado com a resposta do fantasma que com a solidão da vida sem o amor
dos seus pequenos. No dia seguinte, partiu para o antigo lar sem ao menos tomar
o café. Encontrou no mesmo lugar de seu bilhete, um outro quase tão breve e
sincero.
-
Senhor Martinez, só peço que me permita passar um tempo no que foi sua casa um
dia. Prometo fazer as melhorias que estiverem ao meu alcance como pagamento
pela hospedagem. Gostou das tulipas?
Como
havia levado papel e caneta, João Eurico respondeu:
-
Fique o tempo que precisar, não tenho usado a casa. Só gostaria de continuar
visitando o lugar de vez em quando para matar a saudade de meus entes queridos.
Gostei sim, mas prefiro margaridas.
No dia
seguinte a resposta o aguardava debaixo de um vasinho de margaridas:
-
Sinta-se a vontade para vir quando quiser. O lugar é calmo e uma visita não me
faria mal.
Os
dias se passaram e a correspondência entre os dois tornou-se um hábito. Através
dos bilhetes João descobriu que a alma se chamava Florípedes Garcia, que havia
perdido o pai tragicamente, que agora vivia só, e que um dia tinha sido noiva,
mas fora abandonada no altar. Trabalhara na roça desde criança e nunca frequentara
a escola, mas aprendera a ler com a mãe antes que ela morresse vítima de uma
picada de cobra na lida com a cana. À alma João contou da tragédia que se
abatera sobre sua família, da infância rica quando seu pai ainda era vivo, do
trabalho no cemitério e da solidão que o acompanhava mais por gosto do
isolamento que por falta de oportunidade. Tinha uma irmã na cidade, mas só a
visitava uma vez por mês. Tornaram-se assim os melhores amigos e João
esqueceu-se de sua dor. Na véspera de Natal, o coveiro recebeu um bilhete
diferente:
-
Querido amigo, sinto dizer que terei de partir amanhã bem cedo. Obrigada por
tudo o que fizestes por mim, jamais me esquecerei de tanta bondade.
Infelizmente, o lugar para onde vou é muito longe daqui, apesar da dor que isso
me causa, sou obrigada a constatar que essa despedida é um adeus.
João
pegou o bilhete debaixo do vasinho de margaridas como de costume, e ao terminar
de ler entrou em desespero. Não era justo perder de novo uma pessoa por que
fosse tão apegado. “Que sina a minha!” – pensou. Pegou um papel amassado no
bolso da calça e escreveu apressadamente:
-
Florípedes, sei que o teu compromisso é importante e imagino que não seja
possível escapares dele. Contudo, não posso me despedir de você por bilhetes.
Preciso vê-la! Se não olhar para o que quer que sejas, jamais poderei suportar
tua ausência. Sou um homem acostumado a perdas, mas todas elas olharam em meus
olhos antes da despedida. Peço-te, me concedas um encontro. Amanhã pela manhã,
estarei aqui para vê-la partir.
Para
João Eurico uma noite nunca havia demorado tanto a passar. Não pode pregar o
olho, sentia uma angústia mortal, como se não fosse sobreviver à dor de mais
uma separação. Pensou que estava perdidamente apaixonado por uma criatura do
outro mundo, e estava disposto a partir com ela para o além. Sem poder suportar
a espera, levantou-se no meio da noite e atravessou o bosque, para esperar pelo
amanhecer recostado à amoreira. Em frente a casa que agora pertencia ao seu
amor fantasmagórico, João Eurico adormeceu.
Pela
manhã, foi acordado por uma voz suave que o chamava:
-
João? João, acorde!
De um
salto o homem se colocou de pé, boquiaberto e estatelado. Florípedes caiu na
gargalhada e perguntou:
- Que
é isso homem? Parece que estás diante de uma assombração! Assim você me ofende.
- E
não estou?
- Não
está o quê?!
-
Diante de uma assombração, oras?!
-
Claro que não homem! Endoidou de vez foi?
- Mas
você não é a mulher que fora envenenada pelo marido e voltou para resolver
algum assunto pendente neste mundo?
-
João, você está me assustando. Que assunto é esse?
-
Espere. Quem é você?
- Como
quem sou eu? Sou Florípedes.
- Sim,
isso eu sei. Mas você não morreu?
- Ai,
caramba! Não é que o povo tem razão e você é doido de pedra!
-
Florípedes, me dê um instante para entender. Acho que fiz uma confusão enorme
sugestionado pelo medo. Se você não é uma alma, porque não se apresentou há
mais tempo? E porque mora nesses escombros?
- Não
me apresentei porque você começou a fazer contato por bilhetes, e como conheço
sua história, respeitei a distância que foi estabelecida. Agora, o motivo pelo
qual estou escondida aqui é um pouco mais complicado. Perdi meu pai na mesma
enchente que levou sua família. Tínhamos uma pequena quitanda em sociedade de
um amigo, um homem impiedoso que roubava meu pai descaradamente. No mesmo dia
que enterrei meu único parente, ele entrou em minha casa e me avisou que tudo o
que eu acreditava pertencer a meu pai, na realidade era dele. Tenho certeza que
é mentira, mas não sei como provar. Ainda acrescentou que me despejaria em uma
semana, a não ser que eu aceitasse me casar com ele. O resto você pode imaginar.
Conheci sua história através dos jornais e sabia que morava no cemitério. Nunca
pensei que continuaria a visitar essa casa, pelas lembranças que lhe traria.
Achei que aqui seria um excelente esconderijo. Há alguns dias tenho feito
contato com asilos em outras cidades me oferecendo para cuidar dos idosos.
Ontem recebi uma proposta para trabalhar com uma senhora em Poço das Almas e
estou indo para lá. Sinto muito, mas não tenho escolha.
- Você
pode me responder uma pergunta?
-
Quantas você quiser.
- Você
me ama?
- Amo.
-
Então você tem uma escolha.
E
caminharam juntos, a alma penada e o maluco da cidade, para todo o sempre.
O
Talismã do Tapeceiro.
Há
muitos anos, quando Poço das Almas ainda era uma pequena aldeia, vivia por lá
um tapeceiro de nome Álvaro, que trabalhava diligentemente na esperança de
juntar o dinheiro necessário para o dote de sua amada. Era do conhecimento de
todos os habitantes do lugar que Álvaro e Piedade haviam se apaixonado ainda na
infância, e que só a pobreza do rapaz os impedia de começar uma vida juntos. O
pai de Piedade não era rico, mas não admitiria que a filha tivesse, ao casar,
uma vida mais dura que a que ele podia dar.
O
desejo de merecer Piedade fez com que o tapeceiro vivesse somente com o que
fosse necessário para sua sobrevivência, mas todo o seu esforço era inútil,
pois nunca chegava à quantia que bastasse para o pai de Piedade. Na verdade,
seu Hamilton queria casar a filha com um homem rico, e sabia que conseguiria se
insistisse.
Alertado
pelos amigos de que perderia Piedade para o filho de um grande fazendeiro das
redondezas, Álvaro reuniu seus mais belos tapetes e partiu para uma viagem
pelas cidades próximas, numa tentativa desesperada de vendê-los e obter o
suficiente para casar-se com o amor de sua vida. Alugou uma carroça com o
ferreiro prometendo pagar-lhe ao voltar e partiu de madrugada deixando um
bilhete para Piedade preso à janela do quarto da moça.
Visitou
aldeias, cidades, vilas, e todas as casinhas que encontrou pelo caminho, mas
pouco vendeu. As coisas estavam difíceis aquele ano, as pessoas não podiam
gastar em nada que não fosse comida. O que Álvaro conseguiu mal dava para pagar
o aluguel da carroça e comprar mantimentos para ele e o jumentinho que o
acompanhava naquela dura empreitada. Desanimado, resolveu voltar para casa
porque sabia que gastaria menos do que se persistisse naquele despropósito;
pegou o atalho pela Floresta Descomunal, atravessando o Lago das Intempéries em
seu ponto mais perigoso. O tapeceiro sempre fora daqueles homens que não se
assustam com nada, real ou inventado, que atravesse seu caminho, mas quando
saiu do lago e percebeu que estava perdido, desesperou-se. A única ameaça que
infundia gelo em seus ossos era a de ficar sem Piedade, no mais era apegar-se
em Deus e enfrentar com honra. Mas se demorasse demais para encontrar o caminho
de volta para casa, certamente perderia a amada, e isso não poderia permitir.
Enquanto
pensava no que fazer diante de uma emergência tão grave como aquela, escutou
gemidos sufocados que pareciam vir de um lugar não muito distante de onde
estava. Partiu na direção dos sons agonizantes e, depois de alguns minutos, deu
com uma senhora presa até a cintura numa cova cheia de lama, aberta para
capturar animais de caça, muito comum por aquelas bandas.
- Por
favor, meu filho, tire-me depressa daqui! – implorou a senhora.
-
Espere um minuto, senhora, - respondeu o rapaz – pensarei em alguma coisa.
- Seu
jumento! – disse ela – Amarre uma corda nele e jogue a outra ponta para mim. E
enquanto ela falava, a lama foi cedendo mais rápido e ela quase desapareceu.
Num
impulso de salvar a velha, Álvaro desaparelhou o jumento, amarrou uma corda em
seu pescoço e atirou a outra ponta em direção ao poço de lama. O peso da
senhora somado à força da sopa de terra que a segurava, foram demais para o
jumentinho e ele também foi parar no poço. Mas antes que ele submergisse por
completo, a senhora ganhou energia e conseguiu escalar o bicho até a borda do
poço, onde foi puxada por Álvaro. O rapaz ainda tentou salvar o animal, mas foi
em vão.
Depois
que conseguiram se restabelecer, a mulher olhou para Álvaro e disse:
-
Sinto muito pelo animal, meu filho. Chamo-me Bibiana e moro nesta floresta
perdida. Há anos não tenho contato com ninguém e já desistia de lutar quando
você apareceu. Sei que é minha responsabilidade o que aconteceu a seu jumento,
portanto quero te recompensar com um presente muito valioso.
- Não
é necessário, fiz o que deveria ter feito. Jamais me perdoaria se deixasse de
socorrer alguém em apuros.
- Faço
questão. Além do mais, vejo em seu coração que você precisa muito do que tenho
a oferecer. Venha comigo.
E
Álvaro não soube dizer não ao chamado. Caminhou por entre a densa mata puxando
a carroça com os tapetes, mesmo depois que Bibiana o garantiu que seus produtos
não seriam mais necessários. Andaram em silêncio até que dessem em uma clareira
e uma casinha simples no meio dela, cercada de plantações de temperos, ervas e
toda sorte de plantas tropicais usadas pelos índios para os mais variados fins.
A casinha, apesar de nitidamente pertencer à outra época, não parecia ter sido
vítima do óxido do tempo; suas paredes de pedra brilhavam em resposta aos raios
de sol que se esgueiravam pelas folhagens alcançando alguns pontos do lugar;
era toda ladeada por uma varanda ampla que desembocava numa escadaria esculpida
de acordo com os acidentes do terreno até o meio do pátio, e o telhado era
estranhamente parecido com um copo-de-leite emborcado. Álvaro podia jurar que a
porta se abriu antes do toque daquela senhora misteriosa, mas antes que pudesse
analisar a cena, escutou o convite:
-
Entre e se acomode, vou à cozinha preparar um chá.
- Não
precisa... – e Bibiana desapareceu subitamente.
Antes
que Álvaro pudesse contar todos os livros de receitas estranhas que havia
espalhados pela casa, Bibiana voltou carregando uma bandeja com os chás e um
medalhão de prata.
- Isto
é um talismã, um medalhão da sorte. – disse enquanto estendia o objeto na
direção do rapaz – Enquanto mantiver esse cordão pendurado ao pescoço, poderá
desejar quase tudo que se tornará realidade.
-
Quase?! – perguntou Álvaro, curioso.
- Sim.
Há três coisas que o medalhão não realiza para seu dono: ele não pode lhe dar a
eternidade, não pode fazer com que pessoas o amem e não pode vencer a morte
ressuscitando seus entes queridos. Não sendo uma dessas coisas, tudo o mais
será seu se quiseres. Mas existe outra coisa que você precisa saber. Nenhum dos
seus desejos poderá ser desfeito, pense bem no que vais querer daqui para
frente porque será definitivo. – E dizendo isso, colocou o cordão no homem.
Álvaro riu, mas agradeceu. E disse tranquilo:
- A
única coisa que desejo agora é achar o caminho para casa.
-
Então vá.
Quando
o rapaz passou pela porta da casa de Bibiana, ao invés da mata garrida e
imponente, estava na trilha que levava a sua aldeia, provavelmente a um dia de
caminhada. Precisou de algum tempo para assimilar o acontecido e concluiu:
- A
velha falava a verdade!
Imediatamente,
levado pelo desejo de chegar o mais rápido possível a casa de sua amada, e em
condições de pedi-la em casamento, desejou riquezas, boas roupas e uma
comitiva. Tudo apareceu antes de duas piscadelas, e Álvaro se divertiu tanto
com a novidade que resolveu encontrar um lugar para estabelecer um castelo,
mobiliá-lo, colocar nele animais e empregados, um fosso, alguns guardas, e tudo
o mais que pode imaginar. Levou alguns meses assim, a um dia de casa, mas
ocupado demais com a arrogância recém adquirida para voltar sem toda a pompa
que acreditava merecer agora. Antes de entrar na aldeia, se fez anunciar por
empregados durante três dias seguidos, levando presentes aos moradores e
tocando trombetas pelas ruas. Quando finalmente resolveu aparecer, descobriu
que Piedade havia se casado há alguns meses, que o casamento havia sido o dia
mais infeliz de sua vida, e que a tristeza carregou-a para o leito de enferma
durante semanas, delirando que seu amado estava vindo para buscá-la. Há
exatamente um mês ela não resistiu e morreu. Álvaro soube que esse foi o tempo
que passou enlouquecido com as novidades da riqueza e prostrou-se. Levou algum
tempo desatinado até que se lembrou de Bibiana e resolveu ir a sua procura
pensando que se a matasse, talvez pudesse reverter a situação. Chegou à casinha
triste na clareira no meio da mata e encontrou um rapazote tocando uma flauta
nos degraus de pedra.
-
Rapaz, onde está a bruxa que mora aqui? – perguntou com sangue nos olhos.
- Ela
não mora mais aqui não senhor, foi embora hoje cedo e disse que eu poderia
ficar com a casa.
- Você
sabe para onde ela foi?
- Sei
não senhor.
-
Obrigado, rapaz. Tome cuidado com essa casa que ela é amaldiçoada.
-
Senhor!
- Pois
não.
-
Desculpe a minha ousadia, mas é muito bonito o medalhão que o senhor carrega.
- Pode
ficar com ele, mas ainda é pior que a casa. – disse, enquanto atirava o
medalhão para o rapaz.
Álvaro
partiu para dentro da mata, certo de que alcançaria a bruxa. Assim que ele
desapareceu pelas folhagens, o rapazinho se transfigurou em Bibiana e sorrindo
disse:
- São
engraçados, os homens. Não escutam as advertências que fazemos e transformam o
mal em bem. Não satisfeitos, ainda procuram quem os ajuda para agradecer com a
morte. Esse nunca mais vai sair desta mata. Está condenado. E o medalhão fica
comigo para que eu escolha alguém que realmente o mereça.
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