Parte II




XIII- A guerra foi declarada.


A Floresta Descomunal é lindíssima, enorme e sedutora. Tem as mais altas e antigas árvores da região e cheira à vida quilômetros antes de chegarmos aos seus limites. A manhã em que meu avô me levou para conhecer Ferus tinha um gosto de Natal. Havia pinheiros na fazenda e o perfume que exalava deles é exatamente o que chamo de cheirinho de Natal desde criança. Quando desci para a conversa com vovô estava muito curiosa, agora só o que eu sentia era medo. Não sei bem se medo de encontrar uma criatura lendária e declaradamente perigosa, ou de descobrir que sou a escolhida para unificar Azagaia e liderá-la em uma guerra secular com apenas 16 anos. Até então eu nem sabia da existência de moradores ali, mas não achei nada impossível. Aliás, estava começando a acreditar que, em Azagaia, tudo era possível.Mesmo assim, o pavor era tanto que até as perguntas fugiram de minha cabeça, dando lugar a um pedido constante “Deus, por favor, faça com que eu não seja essa menina!”. Não sou covarde e até gosto de aventuras, mas isso é totalmente diferente de ir ao rio pegar umas pedras ou encontrar o namorado às escondidas perto de casa. Se eu fosse a escolhida, toda a minha vida seria diferente! E eu nunca poderia me imaginar numa situação dessas! Depois que vovô acabou de falar, Orestes entrou na sala com uma cara de alguém que está muito preocupado e vovô fez sinal para que eu desse licença. Saí imediatamente. Orestes e vovô juntos sempre são indícios de algo sério. Depois de algum tempo que me pareceu uma eternidade, vovô me chamou e me fez sentar em sua frente novamente. Tinha a fisionomia muito grave, as rugas em sua testa e em volta de seus olhos estavam mais acentuadas, a boca estava crispada e ele esfregava as mãos sobre as próprias coxas enquanto suspirava. Nunca havia visto “seu” Silvestre assim e isso me deixou mais nervosa ainda. Não pude suportar o suspense e quebrei o silêncio.
- Pelo amor de Deus, vovô! O que Orestes te disse para te deixar tão nervoso? É alguma coisa com o meu pai? Vovô?!
- Acalme-se querida. Algumas coisas mudaram para nós.
- Algumas coisas mudaram como?
- O rei Amadeo foi assassinado ontem à noite em seu quarto. A guerra foi declarada. Azagaia precisa mais do que nunca de um líder e a família Amaral instituiu seu tio para nos representar. Precisamos ir até Ferus com o máximo de urgência e descobrir o que fazer com você agora.
- Mas vovô, talvez seja melhor que a família Amaral cuide disso. Eu sou uma criança ainda.
- Lílian, seu pai está na Ilha do Véu. Foi capturado há dois dias. Você sabe que ele não está totalmente recuperado e isso o torna uma presa fácil. Seu tio odeia Camilo por causa de sua mãe e só estava esperando uma oportunidade para se vingar. É bem possível que ele use a vida de seu pai como barganha para promover a paz. Precisamos correr.
Quando vovô terminou de dizer isso eu simplesmente concordei com a cabeça e andei até a porta. Meu medo era tão grande que não tive palavras. Meus pensamentos não se organizavam em minha cabeça e só me lembro de ter pensado que desmaiaria de pavor. Não sei como tive forças para me manter de pé.
As pessoas costumam dizer que, em momentos de crise, alguns costumam reagir fazendo algo e outros ficam passivos. Bem, eu sou um híbrido. Posso reagir de qualquer uma das maneiras, inclusive mudando de uma para outra, dependendo da minha compreensão sobre o assunto. Eu e vovô caminhamos lado a lado, em silêncio, até o bosque de Carvalhos que limita a fazenda da Floresta Descomunal. Antes de entrar vovô me aconselhou:
- Lílian, preciso que preste atenção ao que vou lhe dizer agora. Fique sempre perto de mim, não olhe Ferus nos olhos, não o desafie nem demonstre qualquer tipo de arrogância em seus gestos ou palavras. Não tente enganá-lo. Um homem com o tempo de vida dele raramente se deixaria enganar. Tenha respeito por suas crenças, histórias ou costumes. Não corra de nada. E, principalmente, mantenha a boca fechada. Só responda ao que lhe for perguntado. Seja objetiva. Entende o que quero dizer?
- Sim, vovô – respondi. Mas a verdade é que as orientações dele me deixaram ainda mais certa de que eu não deveria estar ali. Isso não tinha a menor chance de acabar bem.
- Comporte-se e tudo terminará bem. – ele completou.
Concordei com a cabeça, mas eu sabia que ainda havia muita coisa entre aquela entrevista e o fim disso tudo. No íntimo eu tinha certeza. Curioso como temos percepções diferentes sobre as mesmas coisas, dependendo do que estamos passando. A primeira vez que entrei na floresta era uma menina e queria desafiar o perigo, testar minha coragem, sentir um medo que acreditava estar controlando. Agora, entrava como uma minúscula partícula do universo, pequena, frágil, finita e amedrontada partícula. Sentia que, se Ferus não me liquidasse com seus olhos ou uma de suas zarabatanas venenosas, o medo que eu sentia de perder as pessoas que amo me faria implodir. Respirei fundo e tentei me controlar ao máximo.
Á medida em que íamos nos distanciando da fazenda, podia ouvir meu coração batendo na garganta seca. A floresta se tornava mais escura, as árvores mais altas e algumas plantas que eu desconhecia começaram a aparecer presas às árvores, como se tivessem sido imobilizadas durante uma dança qualquer. Também havia muito barulho de animais. A impressão que tive era de que avisavam nossa chegada. De repente, meu avô parou e fez um sinal para que eu também me detivesse. Então ouvi a folhagem se mexendo e percebi que alguém se aproximava.


Ferus se colocou de pé diante de mim e de vovô de uma maneira que o deixava num plano mais alto que a gente. Lembro-me de ter pensado no que isso tinha de estratégico e achei desnecessário. Ele já era bem alto e assustador. Tinha uma cara de felino, os cabelos muito finos e compridos estavam presos para trás por uma espécie de tiara de presas de animais. Devia medir algo bem perto de dois metros e seu corpo era largo e musculoso. Eu ainda o analisava quando ele começou a falar.

- Olá Silvestre! – sua voz era firme, grave, mas surpreendentemente agradável.
- Ferus! – respondeu vovô – Você já deve saber o que aconteceu.
- Sim. Eu soube a algumas horas, mas ainda não estou inteirado de tudo. A menina pode ouvir o que temos que conversar?

- Acho que agora teremos que colocá-la a par das coisas. Eu realmente não esperava que matassem o Amadeo dessa forma. Ele estava muito bem protegido.
- Parece que não o suficiente. Também lamento muito Silvestre, mas não é hora de nos entregarmos ao desespero. – e, falando isso, Ferus olhou discretamente para mim.
- É verdade. Você está coberto de razão. Só não tive tempo ainda para assimilar tantos acontecimentos... Vamos em frente!
Ferus abriu um meio sorriso que estreitou ainda mais seus olhos. Era bonito sorrindo.
- Lílian o seu nome? – ele me perguntou como que para começar um assunto.
- Sim senhor. – respondi olhando bem dentro de seus olhos. Pude notar que meu avô me desaprovava. Ferus se dirigiu para meu avô e fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Então é assim? – perguntei apavorada – Não tenho que passar por um teste ou descobrir algo na Pedra Marcada... Simplesmente você me olha e sou eu?!
- Bem, não é a Pedra que determina se você é a escolhida. – Ferus me interrompeu -  Existem muitas informações distorcidas nessa história. Algumas plantadas por mim, outras inventadas por todos os outros. Menina...
- Lílian! – agora foi minha vez de interrompê-lo. Os olhos de meu avô pareciam que saltariam das órbitas.
- Tudo bem. – disse Ferus – É justo. Lílian, você ainda é muito jovem, acredito que ainda não conheça a força que tem uma pessoa quando ama?
- Isso foi uma pergunta? – falei.
- Ora, garota. Basta com essa insolência! – meu avô bradou, fazendo com que eu me estremecesse um pouco.

- Deixe-me cuidar disso, certo Silvestre? – e a voz de Ferus era extremamente calma. Fiquei em silêncio, mas minha atitude arrogante foi quebrantada quando percebi que havia dor nas palavras proferidas por aquele homem. Seus ombros eretos agora estavam levemente encurvados, e pude notar que todo o seu rosto se contraía numa expressão de derrotado.


- Pois bem. – ele continuou – Há muitos anos eu me apaixonei pela filha do líder dos Continentais. Agassi. Ela era doce, inteligente, generosa... Todas as qualidades que uma princesa deve possuir eram naturais nela. Nos conhecemos no Campo dos Refugiados. Eu havia atravessado a Terra das Rotas Diagonais a pedido de meu pai. A poucos metros do Poço Profundo, desmaiei de fome e sede. Agassi me observava de longe e viu quando caí. Imediatamente, ela veio com suas acompanhantes, deram-me água fresca, um bocado de pão e frutas, e esperaram que eu tivesse condições de me por de pé. Agassi mesma foi quem me ajudou a subir em seu cavalo e, na garupa dela, fomos para a caverna mais próxima. Ali ela cuidou de mim durante três dias, até que eu tivesse condições de seguir viagem. Quando nos despedimos, perguntei a ela como faria para encontrá-la de novo. E ela me respondeu: “- Leve meu cavalo. O nome dele é Zaldi. Ele te guiará de volta pra mim quando você lhe der isto.” E estendeu um saquinho de seda com as pétalas de crisântemos ressecados. Pensei na hora que os crisântemos representam a esperança e proteção e senti que meu coração já não me pertencia.

Passaram-se dois anos até que eu pudesse sair a procura de Agassi. Estive envolvido em muitas batalhas, vivia nos desertos ou em cavernas, acampava com homens muito mais fortes e temidos que eu, guerreiros antigos a quem eu devia respeito. As lutas eram tão duras e constantes que nem percebi a passagem do tempo. Quando finalmente encontrei um período de trégua e recebi de meu pai uma licença para cuidar de meus interesses, procurei o saquinho de crisântemos e dei para que Zaldi cheirasse. Confiei no que Agassi havia me dito e deixei o cavalo me guiar. Viajamos por dois meses atravessando Azagaia – porque, nesse tempo ainda vivíamos todos nesse território que depois da guerra ficou para os Forasteiros – até que cheguei ao acampamento das filhas do rei Goshat e encontrei minha amada. Subi nas montanhas e enviei Zaldi. Esperei por dois dias até que Agassi me encontrou. Quando chegou veio trazendo o sol e a felicidade com ela. É impossível descrever o que eu sentia quando a via. A mulher mais linda que já pisou estas terras. Bem, Planejamos uma fuga. Não havia a menor possibilidade de ficarmos juntos com o aval de nossos pais. Nossas famílias já haviam derramado sangue demais uns dos outros para haver entendimento. Haviam trilhado um caminho sem volta. Pelo menos era no que acreditávamos. Além do mais, os Continentais haviam conquistado a Ilha do Véu e, como recompensa ao homem mais valente na batalha, o rei Goshat havia dado a mão de Agassi em casamento. Está acompanhando, Lílian?
Fiz que sim com a cabeça. Àquela altura da história não queria saber de mais nada, somente de como aquilo terminou e o que tinha a ver comigo.
- Bem, juntamos alguns pertences e fugimos – continuou Ferus – Para que tivéssemos uma chance de ficarmos juntos, deveríamos atravessar as Terras das Rotas Diagonais. Amarramos ao corpo um saquinho com um punhado da terra de Azagaia para que ficássemos protegidos contra o esquecimento que se abate sobre quem entra desprevenido nessas terras mágicas e atravessamos a fronteira. Achávamos que estaríamos a salvo, mas na quinta noite de viagem fui acordado por Agassi e ela fez sinal para que eu continuasse calado. Estávamos cercados. O pai de Agassi, seu noivo e mais novecentos homens haviam nos alcançado. Não havia a menor possibilidade de fugirmos. Então ela me contou um segredo que mudou minha vida: Agassi carregava um líquido no pingente de seu colar que havia sido dado a ela pela mãe há muitos anos. Esse líquido era mágico e permitia à pessoa que o bebesse viver eternamente até que seu último desejo antes de bebê-lo fosse realizado. A partir daí sua vida estaria desprotegida do encantamento e seguiria seu curso normal. Era quase uma parada no tempo. Mas somente para quem bebesse. Na hora não pensei nas consequências, só no quanto queria estar ao lado do meu amor. Desejei me casar com a mulher que eu amava. Agassi fez o pedido dela e bebemos. Combinamos que eu fugiria sozinho e depois retornaria para resgatá-la. Mas, algum tempo depois recebi a visita de uma jovem montada em Zaldi. Meu coração estremeceu. Era uma das criadas de Agassi. Entregou-me uma carta de despedida do meu amor. A carta dizia que depois da captura, Goshat havia trancado Agassi em seus aposentos para aguardar o casamento, mas descobriram que ela esperava um filho. Um filho do inimigo! Furioso, o rei Goshat a sentenciou ao exílio nas Terras das Rotas Diagonais, onde ela morreu de fome e sede. Eu não poderia acreditar naquilo por causa da proteção que tínhamos do líquido mágico, mas a criada explicou que Agassi havia desejado que eu fugisse em segurança. Enlouqueci! Você não pode imaginar o que senti! Depois que ela morreu me enfiei nas piores batalhas na esperança de que alguém me mandasse ao seu encontro, mas percebi que isso não poderia acontecer porque meu último desejo jamais se tornaria realidade. Vivi a partir daí em busca de uma saída para o que se tornou minha maldição. Venho perdendo pessoas há duzentos anos e nem doente fico. Sabe o que é perder pessoas que amamos? É insuportável. Você deve estar se perguntando o que tem a ver com isso. Certo? Bem, há pouco tempo descobri que a única maneira de me libertar dessa vida é transferindo-a para outro casal. Um que possa realizar o que não me foi permitido. Preciso de descendentes que repitam nossa história e é aí que você entra.
 






XIV – O Segredo da Pedra Marcada.

O encontro com Ferus me deixou ainda mais confusa do que eu já estava. Que loucura! Como eu poderia ajudá-lo? Ele cometeu erros que eu terei que consertar? É isso mesmo?! Não é um pouco injusto que eu seja responsável pelos erros de quem quer que fosse? Só havia um motivo para que eu não tivesse virado as costas e o deixado falando sozinho depois daquela revelação mais do que bombástica: meu pai! Tudo bem que a história dele até era bem comovente, mas não era a minha história e eu não queria me comprometer com coisas tão estranhas pra mim. Ferus não me importava, mas eu iria até o fim do mundo e enfrentaria qualquer coisa pelo homem que sempre enfrentou tudo e todos por mim!
Voltei para casa em silêncio, pensando na maneira mais eficiente de fazer com que eles me contassem o que pretendiam fazer para resgatar meu pai das mãos dos Continentais. Ferus pediu que meu avô me contasse a outra parte da história justificando que havia ficado exausto com todas aquelas lembranças. Realmente, ter duzentos anos de recordações não deve ser nem um pouco relaxante. Quando retornamos à fazenda, Trevo me aguardava na varanda e não parava de latir. Eu só não o repreendi porque me sentia culpada por não estar dando a ele a atenção à qual estava acostumado. Aproveitei que precisava de um pouco de sossego e levei Trevo comigo para o quarto na tentativa de organizar os últimos acontecimentos e ver como eles poderiam se encaixar ao que eu já sabia. Deitei em minha cama e Trevo se aconchegou aos meus pés. Fiquei olhando para o ventilador no teto e tentando imaginar o que eu deveria fazer com o que sabia até ali. As coisas ainda me pareciam bem confusas meia hora depois, quando a porta se abriu devagar e eu vi uma bandeja entrando.
- Olá, Lílian – Berenice falou baixinho – Imagino que você não tenha almoçado ainda e trouxe alguma coisa pra você comer. O que acha?
- Ah Berenice – respondi – Para ser bem sincera eu agradeço, mas não estou com muita fome. Minha cabeça está girando e girando...
- Entendo. Posso te dar um conselho?
- Claro! – falei esperançosa.
- No seu lugar eu tentaria me alimentar, porque seria menos um problema no qual pensar. Além do mais, se você precisar de energia para tomar uma decisão e colocá-la em prática, onde acha que encontrará?
- Berenice, você nunca se cansa de sempre estar certa? – falei enquanto me levantava e sentava diante da bandeja.
- Menina Lílian - e enquanto falava, Berenice ia colocando o guardanapo em meu colo e suco no copo diante de mim. Ela é exatamente isso: uma pessoa que consegue fazer dez coisas ao mesmo tempo. E todas muito bem feitas - Não há segredo nenhum no que faço. É só observar os acontecimentos e esperar. Geralmente eles se repetem, e nossas experiências de hoje tornam-se excelentes conselhos amanhã. Agora vou deixar a senhorita almoçar em paz. Qualquer coisa que precisar é só chamar. Ah! Já ia me esquecendo! Seu avô pediu para avisar que foi até a cidade resolver algumas coisas, mas que estará de volta ao anoitecer e terminará a conversa. Pediu também que você descesse até a biblioteca e lesse o capítulo que está aberto sobre a mesa dele do Histórias Para Ficar Acordada.
- Sei. Berenice?
- Pois não, Lílian?
- Você trabalha aqui há muito tempo?
- Não muito. Cheguei aqui pouco depois da partida de sua mãe.
- Da fuga dela. É o que quer dizer?
- Não sabia que você tinha conhecimento disso. Eu mesma só fiquei sabendo pelos empregados. Mas não era isso que eu queria dizer. Falei da partida dela mesmo. Como aconteceu e os motivos que a levaram a isso não são de minha conta.
- Ficou chateada com alguma coisa que eu disse?
- Não. Não fiquei. Mas sei o que pretende e minha resposta é uma só: não sei de nada. Não me faça perguntas Lílian Amaral. Não sou indiscreta e não serei agora. Sabe o que acho? Que você deveria ler a história que seu avô mandou.
- Por que diz isso?
- Porque acredito que lá você terá algumas das respostas que precisa.
Berenice saiu sem dizer mais nada, me deixando com um pulgueiro atrás da orelha e uma pressa doida de chegar à biblioteca. O que será que me aguardava sobre a mesa de meu avô que poderia satisfazer uma curiosidade de uns duzentos anos de histórias mal contadas?
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Quando cheguei diante da biblioteca de vovô - onde também funcionava seu escritório quando despachava os assuntos administrativos da cidade sempre que não queria se ausentar de casa – percebi que a grande porta de madeira estava entreaberta. Empurrei-a devagar como se violasse um santuário. Estranha essa sensação, mas era como se minha presença ali fosse um erro, apesar de autorizada. Sobre a mesa de vovô pude ver o grande livro das lendas de Azagaia aberto ao lado de uma pequena estátua de uma mulher segurando uma balança em uma das mãos e uma espada na outra. As estantes eram abarrotadas de livros, e minha avó já havia me garantido uma vez que ali só entravam os exemplares que vovô havia comprado e lido. Nada emprestado, nada desconhecido. Esse era o lema do meu avô para a maioria das coisas que entravam em sua casa. Fui andando devagar, acostumando meus olhos ao ambiente um pouco mais escuro que o restante da casa. Senti meu coração acelerar. Aquilo mais me parecia um parque de diversões com tantos livros e segredos escondidos neles. Bateu uma vontade doida de passar dias dentro daquela sala sem que ninguém me interrompesse. Eu havia chegado ao fim da amarelinha.
Abri as cortinas para que entrasse luz suficiente para iluminar a mesa, tomando o cuidado de não derrubar nenhum dos vasos de porcelana de quase um metro de altura que ladeava cada uma das quatro janelas pintadas de vermelho. Essa cor foi escolha de vovó e motivo para uma breve separação do casal no início da vida a dois. As pessoas podem brigar pelas coisas mais banais quando vivem juntas. Para demonstrar sua autoridade vovó todo ano mandava pintar as janelas da mesma cor, apesar de ter me confidenciado uma vez que já não as suportava mais.
Cheguei ao livro tão meu conhecido durante a infância. Vê-lo me fez lembrar de papai e tive que segurar o choro por alguns minutos. Passei os dedos por sobre as páginas lendo uma ou outra palavra onde meus olhos batiam. Aproximei meu rosto delas e senti seu perfume. Ler para mim sempre foi um ritual. Voltei até onde vovô havia marcado e o título me chamou muito a atenção: O segredo da Pedra Marcada.



Eu já havia terminado de ler quando o carro de vovô estacionou diante da casa. Ainda estava sentada na cadeira giratória de couro quando ele entrou na biblioteca e, sem dizer nada, abriu um grande mapa de Azagaia sobre a mesa. Levantei-me da cadeira e me aproximei com calma. Bem na minha frente estavam as cinco cidades, a Floresta Descomunal, as Montanhas Rochosas, os Mares Bravios, a Ilha do Véu e as Terras das Rotas Diagonais. Linhas de várias cores indicavam rios, estradas, a extensa linha férrea cortando todo o território como uma cicatriz de um arranhão recente. Notei que havia pontos vermelhos espalhados pelo mapa e aproximei minha mão devagar para abrir um dos cantos enrolados pensando haver ali alguma legenda.
- São os locais onde travamos alguma batalha. – interrompeu meu avô.
- Mas são tantos! – respondi surpresa.
- É assustador, não é?! Esse território é repleto de sangue e luta. Perguntei uma vez a Ferus quando tudo isso começou e nem ele soube me responder. Só disse que é muito anterior a ele. Acredito que não vá acabar tão cedo.
- O senhor acha que mesmo que eu seja a escolhida e consiga unificar Azagaia isso não vá acontecer?
- Não tenho certeza. Honestamente.
- E o que o senhor pensa em conseguir então?
- Uma longa trégua. Suficiente para que seus filhos tenham paz. Já é alguma coisa, não?
- Não sei dizer. Vovô?
- Sim, Lílian?
- Eu li o que me mandou.
- E o que achou?
- Bem, recapitulando: de acordo com Ferus, ele e Agassi foram amaldiçoados depois que beberam um líquido que ela carregava em seu pingente. O líquido foi dado a ela por sua mãe, que era uma espécie de bruxa, sei lá. Eles deveriam fazer um pedido e seriam eternos até que o desejo fosse realizado. Ele desejou ser feliz ao lado dela, ela desejou que ele fugisse em segurança depois do cerco que seu pai e noivo fizeram ao lugar em que acampava com Ferus. Até aí estou certa?
- Sim, continue.
- Bem, ela foi capturada e exilada nas Terras das Rotas Diagonais com um filho na barriga. Morreu lá com esse filho. Ferus entrou em desespero e não pode se juntar a ela porque seu desejo nunca será realizado. Isso o torna eterno. Mas ele descobriu que, se ele passar a maldição para outro casal e esse casal realizar o desejo ele estará livre. Suponho que o desejo de um terá que ser substituí-lo nessa loucura toda e do outro terá que ser ficar juntos.
- É uma boa suposição. Não havia pensado nisso. – respondeu vovô.
- Deixe-me terminar. No livro, está escrito que a Pedra Marcada ocupa o lugar do Carvalho do Limite, que foi transplantado para o jardim de Amora da Cantuária quando ela namorava o Coronel Amaral. Quando Amora morreu, o Coronel Amaral, que é meu tataravô...
- Bisavô.
- Isso. Ele entrou nas Terras das Rotas Diagonais com o Carvalho e viveu lá até sua morte alguns anos depois. Antes, escreveu na pedra a frase que todos nós conhecemos tão bem: “O homem aprovado é um homem feliz.” E tornou uma simples pedra na Pedra Marcada. Bem, na história, o segredo da pedra é que ela é a chave para encontrar o Carvalho do Limite e o devolver ao lugar de origem. O senhor faz ideia do motivo?
- Não. Para restabelecer a paz?
- Não acredito. Afinal, já havia guerra antes do meu antepassado retirar o Carvalho de lá.
- E o que seria?
- Olha, talvez seja só uma suposição, mas me lembrei de uma história que meu pai me contou há alguns anos. Ela dizia que havia nos limites de Azagaia uma árvore mágica que podia realizar desejos se bebêssemos um líquido extraído de seus galhos. Mas que ele só faria efeito se fosse extraído na segunda lua nova do ano, debaixo da sombra das Montanhas Rochosas, no lugar original onde fora plantado. Ou seja, não adiantava tirar uma muda ou transplantá-lo. O senhor imagina que líquido era esse?
- Não há dúvidas. O líquido que estava no pingente do colar de Agassi!






XV – O exílio.

A conversa toda com Ferus e meu avô, a preocupação com meu pai e a saudade sempre crescente de Daniel se juntaram aos meus medos anteriores e à ansiedade que era comum nos últimos anos e tiraram completamente meu sono aquela noite. Sentei-me na cama e, por algum tempo pensei em como a vida de Trevo era bem melhor que a minha. Ali no quarto, entretido com uma bolinha laranja cheia de pontinhos brilhantes ele simplesmente não precisava de mais nada. Só de mim e da bolinha, um pote de água e outro de comida e um quintal onde pudesse correr à vontade durante o dia. Senti uma pontinha de inveja. Pensei em tudo o que havia acontecido, nas coisas que eu havia descoberto e, conforme as ideias iam tomando forma e peso em minha cabeça, mais eu compreendia o quanto seria difícil resgatar meu pai da Ilha do Véu. Isso estava me enlouquecendo!
O sol saiu do topo das Montanhas Rochosas de uma só vez naquela manhã. Isso significava que o dia seria bem quente, apesar de ainda faltar uns dois meses para o verão. Trevo não suportou a vigília e dormiu com a bolinha pendurada na boca. Não tirei por medo de acordá-lo. Fui para o banho com uma sensação de que não dormia há, pelo menos, duas semanas. Ouvi quando a porta se abriu, e imaginei que fosse Berenice com meu café, mas, ao sair do banheiro dei de cara com Ferus e fiquei completamente petrificada. Ele fez sinal para que eu me sentasse e obedeci mecanicamente. Mesmo sabendo que não era sua intenção me fazer qualquer mal, sua presença em meu quarto assim tão cedo me colocava no limite da histeria.
- Bom dia, Lílian. – ele cortou o silêncio.
- Bom dia. Suponho que tenha acontecido alguma coisa, de outra forma você não estaria aqui tão cedo. – respondi num misto de curiosidade e preocupação.
- Sim. Aconteceu. Lílian, seu tio quer ter certeza de que seu lugar como líder de Azagaia estará garantido e as pessoas começam a questionar se não deveriam esperar pela escolhida para começar uma guerra. Ele colocou um pelotão a caminho e pretende te manter prisioneira ou algo pior. Temos duas horas até a chegada dele. Ainda não falei com seu avô porque precisava que você compreendesse primeiro a gravidade da situação. Se você disser que pretende ficar aqui, Silvestre não terá como te defender. A vida de todos aqui corre perigo. Mas se você vier comigo, poderá ficar em segurança até que esteja pronta para tomar seu lugar.
- Mas ir pra onde? – perguntei – E por quanto tempo?
- Você poderá ficar comigo e meu povo na floresta até que complete dezesseis anos. Até lá não poderá fazer nada por aqui. E podemos usar esse tempo para te treinar para a batalha.
- Espere. Preciso de um tempo para entender tudo isso.
- Infelizmente, menina, você não dispõe de muito tempo. E eu também não faço o tipo de quem explica as coisas mais de uma vez. Ou você vem comigo e ganha uma chance de continuar na luta por Azagaia, pelo seu povo, pelo seu pai... ou estará nas mãos dos Amaral em instantes e eu não poderei fazer mais nada. Não agora.
Desci as escadas depressa com Ferus atrás de mim. Quando Berenice nos viu deu um grito de pavor e eu fiz sinal de que estava tudo bem.
- Vovô está na biblioteca, Berenice?
- Não. Está no quarto ainda. – ela respondeu.
- Chame-o aqui e diga o que viu. Ele virá depressa.
 Berenice subiu as escadas correndo enquanto eu procurava na biblioteca meu livro das Histórias para Ficar Acordada. Não iria a lugar algum sem ele. Vovô apareceu em instantes e colocamo-lo a par do que estava acontecendo. Olhei para ele com firmeza e perguntei:
- Devo ir?
- Com certeza! – ele respondeu sem hesitar.
- E Trevo? Posso levá-lo?! Por favor?
- Se ele não nos atrasar pode. Mas ande rápido, já perdemos tempo demais. – disse Ferus.
Coloquei algumas roupas na mochila, passei a mão sobre a escrivaninha e peguei meu diário e algumas canetas. Sabia que não durariam três anos, mas não podia ficar sem tentar. Durante todo o tempo a única coisa que me incomodava era o fato de sair de um lugar onde Daniel poderia me encontrar. Minha esperança era a de que ele saberia me achar, se quisesse. Olhei meu quarto pensando no que eu poderia estar esquecendo, mas uma voz lá de baixo me chamou e eu não tive tempo de pensar em mais nada.
- Lílian, eles já estão em Poço das Almas! Rápido!
Era meu avô. Senti a tensão em sua voz e corri escada abaixo com a mochila em uma das mãos, o diário na outra e Trevo em meu encalço.
- Como chegaremos à floresta tão rápido?
- Iremos a cavalo. – Ferus respondeu. – Você saber montar, não sabe?!
- Claro! - e olhando ao redor perguntei: Onde estão a mamãe e a vovó? Tenho que me despedir delas!
- Não será possível, querida. As duas foram logo cedo à cidade fazer compras. Darei um jeito de levá-las até você assim que for possível. Prometo.
- Vamos! – Ferus ordenou.
- Tome conta dela! – meu avô se dirigiu a Ferus e falou em tom de súplica.
- Você sabe que na floresta eu sou invencível. Nada poderá atacá-la em minha tribo. Se você e sua família precisarem de abrigo sabe como me achar.
- Obrigado. – vovô respondeu mais tranquilo.
- Adeus vovô.
- Até breve, querida!

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Em poucos minutos entrávamos na floresta Descomunal. As folhas das árvores batiam em meu rosto e ombros me deixando cheia de pequenos arranhões. Eu sabia que não muito atrás de mim, Trevo corria com todas as suas forças. Odeio fazer coisas que não compreendo, mas confiava em meu avô e não podia colocar minha família em risco, o resgate de meu pai, a paz em uma região que eu conhecia como meu lar... Os pensamentos se misturavam em minha cabeça como pequenos novelos emaranhados, sentia os nós se formando e apertando com força bem na altura das têmporas. O que será que aconteceu quando o exército do meu tio paterno chegou à fazenda e encontrou vovô sozinho? Sentia uma vontade louca de voltar, mas o instinto de sobrevivência é mais forte em mim que qualquer outro sentimento. O curioso é que de alguma forma tudo aquilo fazia algum sentido pra mim, lá no fundo do meu coração eu sabia que precisava passar por tudo o que passei, que era meu destino. Depois de um longo tempo cavalgando chegamos à aldeia de Ferus. Minha cabeça latejava, uma enxaqueca daquelas anunciava que não seria fácil me adaptar a esse universo desconhecido que eram os planicianos. Várias pessoas começaram a sair de todos os cantos e se juntar ao meu redor. Procurei por Trevo e não o encontrava, mas ouvia seu latido. Um rapaz de olhos grandes e sinceros segurou a rédea do meu cavalo e me deu as boas vindas. Em instantes tudo escureceu e eu não vi mais nada.



XVI – Os Primeiros Sinais.


Acordei e olhei ao redor estranhando o lugar. Havia me esquecido que estava na aldeia dos planicianos. De qualquer forma, nada poderia explicar o que senti quando olhei ao meu redor. Estupefação? Encantamento? Admiração? Sim! Tudo isso e muito mais. Eu estava numa espécie de tenda, mas não aquelas que fazemos para acampar, muito menos as cabaninhas de lençol que montamos em nossos quartos quando brincamos com os amigos. Nada disso chegaria perto do pequeno palácio onde eu repousava bem no meio da Floresta Descomunal. As paredes eram grossas, muitos panos separavam o interior do aposento do mundo externo dos planicianos. Mas eram colocados com tanta graça e leveza que possuíam o equilíbrio perfeito entre a segurança da privacidade e o aconchego de não estar sozinha. Eu estava sobre uma cama feita de jacarandá e coberta por lindíssimas camadas de linho, almofadas estavam espalhadas por toda parte, todas de seda com fios brilhosos desenhando tramas de pássaros e flores. Ao meu lado havia uma mesinha que parecia ter sido engastada em uma única peça de madeira; sobre a mesa repousava uma bacia de prata com o desenho de uma moça dando água a um rapaz, cavalos e outras moças estavam ao redor deles. Lembrei-me do que Ferus havia me contado sobre seu encontro com Agassi e tive vontade de chorar. Também havia uma jarra de prata ao lado da bacia, e nela, o próprio Ferus estava montado em um cavalo com crinas trançadas e longas. Havia lampiões acessos em todos os cantos da tenda que pareciam feitos de ouro. Quando coloquei meus pés no chão encontrei tapetes macios ao invés da madeira da casa de vovô. A sensação de pisar em algo quente e macio era reconfortante. Ouvi latidos de Trevo e corri em direção à abertura da tenta, mas, antes que eu a alcançasse, a sombra de um homem enorme anunciou a presença de Ferus e eu estanquei imediatamente.
- Está melhor? – ele disse, enquanto se dirigia a uma cadeira de espaldar alto no canto direito da tenda.
- Sim. Estranho que eu não esteja mais com enxaqueca, geralmente elas duram três dias quando aparecem. Sempre sofro de enxaqueca em momentos de tensão. – Minha resposta soava fraca, como se eu não tivesse certeza do que dizia.
- Não se preocupe aqui você dificilmente terá dores de cabeça tão persistentes.
- Não entendi. – falei.
- Temos nossos remédios e, até onde sei, são bem mais eficientes que os do seu mundo.
- Não me lembro de ter tomado nada. Aliás, não me lembro de absolutamente nada depois de minha chegada. Ah, obrigada pelas acomodações. Sua tenda é muito bonita.
- Essa tenda não é minha. Mandei prepará-la para sua chegada. Alguns objetos são meus, mas são os melhores que temos aqui, e nunca receberíamos uma descendente de Silvestre Gutierrez com algo que não fosse o melhor.
- Por quê?
Ferus simplesmente deu um sorriso e continuou:
- Vista-se e venha jantar conosco. Estão todos à sua espera.
 - Todos quem?!
E ele saiu sem dizer mais nada.
Não tive opção senão fazer o que ele havia ordenado. Não me sinto à vontade com ordens, mas acabei me acostumando a não controlar minha vida convivendo com esses homens da minha família e agora até os conhecidos. Todos com urgências bem maiores que os caprichos de uma adolescente. Fiquei em dúvida sobre o que vestir para jantar numa aldeia de nômades guerreiros com um líder que possuía mais de duzentos anos e tendas que pareciam pequenos palácios. Coloquei meus jeans de sempre imaginando que roupa fosse o que menos importava para aquela comunidade perdida no meio do mato. Estava enganada mais uma vez.  
Não foi difícil encontrar o local do “jantar”, só precisei seguir a música e minha intuição de que participaria de uma festa. Só não sabia o motivo, mas aprendi rapidamente. Quando cheguei ao centro da aldeia as pessoas vieram em minha direção, sorridentes,  e me entregando presentes, colocando tecidos e colares em meu pescoço, dançando e cantando numa língua que eu não entendia. As moças me levaram até a cadeira onde Ferus estava sentado. Ao seu lado outras cadeiras ocupadas pelo que depois soube serem seus filhos. Contei dezesseis rapazes, mas esses eram somente os primogênitos dessa geração. Só então compreendi o que ele quis dizer com “perder pessoas queridas” ou algo do gênero. As moças que me serviram de guias estavam vestidas com túnicas de linho puro bordadas com fios de ouro. Senti-me deslocada. Não só pela roupa, mas pela alegria e intimidade com que me tratavam. É um pouco desconcertante ser tratada com intimidade por desconhecidos. Sentei-me na cadeira indicada. A mesa estava longe de onde me colocaram e eu me perguntei se poderia comer logo, pois minha fome era enorme. As mulheres da aldeia traziam os alimentos pra gente. Foi estranho. Mas a comida era deliciosa. Não procurei saber quais eram os pratos, comi com a rapidez de uma prisioneira. Depois me puxaram para dançar e eu pensei que fosse colocar toda a comida para fora, mas, felizmente, a dança durou pouco. Ferus interrompeu a todos e falou com uma voz impressionantemente audível por todo o arraial:
- Irmãos e irmãs, meus filhos, meu querido povo. É com enorme felicidade que apresento a vocês a Escolhida! Seu nome é Lílian e ela ficará conosco até o dia propício para seu comparecimento diante de seu povo como herdeira de Azagaia e da profecia de Morian. Quero que ela seja tratada como irmã e filha de cada um de vocês. Ela é neta de vosso irmão Silvestre e, como tal, merece nosso melhor tratamento.
Ao ouvir aquelas palavras, todos aplaudiram e olharam pra mim mais sorridentes ainda, se isso era possível. Eu estava atônita. Que profecia era essa? Quem era Morian? E, o que me deixava ainda mais intrigada: porque Ferus se referiu ao meu avô como “irmão” de seu povo? Encarei Ferus como quem fazia todas essas perguntas com o olhar, mas não o encontrei no lugar onde deveria estar. Tentei sair dali para ir atrás dele, mas o rapaz que segurou meu cavalo quando cheguei veio em minha direção e sussurrou ao meu ouvido: - "Depois. Agora não é hora de respostas". Como se alguma vez na minha vida, minhas dúvidas coincidissem com as respostas que precisava!
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O nome dele era Alix. Fez sinal para que o seguisse e eu simplesmente me deixei levar pela curiosidade. Era o mais jovem dos primogênitos. Entre os planicianos todos os filhos mais velhos de cada mulher do líder tinham os mesmos direitos de sucessão ao trono e divisão na herança. Para que um deles se tornasse o líder do povo, Ferus deveria morrer, portanto, todos ali se acostumaram a um pai longevo e sabiam que era grande a possibilidade de não passarem de príncipes. Caso a profecia se cumprisse e Ferus se tornasse um mortal comum, ainda assim teriam que passar pelas Provas Severas, uma sequência de testes de onde só um dos herdeiros poderia sair vencedor. E o prêmio era o trono. Havia alguma harmonia na maneira como viviam e eu julguei ser, em parte, fruto da autoridade de Ferus. Pensei no meu pai. Onde estaria? Será que estava sendo bem tratado? Fomos até a parte mais fechada da floresta, um lugar só reservado aos planicianos. Era bem frio ali. As árvores altíssimas e de troncos muito grossos indicavam o tempo de suas vidas. Era estranho imaginar que somente essas árvores poderiam ser mais velhas que Ferus. Havia uma pequena trilha que serpeava entre as pedras, onde apenas uma pessoa de cada vez poderia passar. Alix passou para as minhas mãos um dos dois lampiões que ele trazia. O chão era recoberto de pequenas plantas rasteiras e bromélias, orquídeas e briófitas subiam nos troncos de todas as árvores. Havia uma neblina suave envolvendo nossos corpos e todas as outras coisas ao redor. Os troncos dos jacarandás eram tão espessos que seriam necessários ao menos quatro adultos para abraçá-los; o perfume de mato fresco era estonteante, e, ao longe, podíamos ouvir as corujas e outros animais anunciando a noite que começava a pesar sobre nossos ombros.
Paramos numa clareira e Alix estendeu sua capa sobre umas pedras para que eu me sentasse. Lembrei-me de Daniel e de sua gentileza. Como eu poderia suportar a distância? Será que a floresta permitiria a entrada dele? Quanto tempo eu teria que esperar para vê-lo novamente? Olhei para a lua e suspirei. Acho que Alix percebeu minha tristeza e quebrou o silêncio:
- A lua ou as estrelas? – ele disse.
- O quê?! – respondi – Não entendi.
- Você prefere a lua ou as estrelas?
- Acho que o conjunto da obra.
Ele riu. Nós rimos. Depois foi minha vez de perguntar:
- Alix, você pode me explicar o que está acontecendo? Qualquer coisa é melhor que ficar no escuro. Não suporto mais tanto mistério. Estou a ponto de explodir.
- Posso. Mas vou logo te avisando que só estamos aqui, porque Ferus me pediu para conversar com você e esclarecer algumas coisas. Não sei se você já notou, mas ele não é muito bom com conversas.
- Não achei tão ruim. Soube me contar direitinho a história dele com Agassi. Mas é um pouco impaciente. Pensei que a idade trouxesse mais paz aos corações. Ele é bem tempestuoso para quem é tão velho!
- Olha quem fala! – ele disse.
- Mas eu sou uma menina! E adolescente. Tenho todo o direito do mundo de ser intempestiva.
- Pode ser. De qualquer forma, isso é uma qualidade em nosso mundo.
- Você vai começar a me contar alguma coisa ainda hoje?!
- Claro! Ouça com cuidado e não me interrompa. Temos pouco tempo até a chegada dele.
Nem era preciso me dizer quem chegaria.
- Você observou a festa que fizeram na aldeia, claro. – ele continuou – Essa festa é uma comemoração ao fato de termos te encontrado, com certeza, mas não é só isso. Fazemos essa festa todas as vezes que um irmão ou irmã retorna ao lar. - Um milhão de perguntas pipocaram em minha cabeça na mesma hora, mas minha curiosidade era tanta que consegui respirar fundo e ouvir o que ele tinha a dizer. – Sei que você está pensando: Ele enlouqueceu? Eu nunca estive aqui! Não sou uma planiciana. Sou uma Gutierrez! Mas a verdade é que você nos pertence. Você ocupou uma cadeira ao lado de Ferus no banquete. Essa cadeira tem um dono. Ele se chama Silvestre Gutierrez.
Se eu pudesse ver meu rosto naquele momento acho que não me reconheceria. Estava sentindo um misto de pavor, surpresa e incredulidade ao mesmo tempo. Pela primeira vez desde que tudo começou pensei que poderia estar presa em um pesadelo. O mais louco e criativo pesadelo que já havia tido em minha vida! Mas me lembrei de Daniel e desejei que fosse tudo realidade.
- Lílian, o que tenho a te dizer é simples. – Alix continuou em um tom firme, mas educado – Só uma união entre os descendentes de Ferus e Agassi é que poderia substituir a deles no feitiço dos desejos. Pensamos que isso aconteceria com sua mãe, mas ela se apaixonou por um Amaral. Então você apareceu e a esperança voltou ao coração de Ferus. Como isso seria possível se Agassi morreu esperando seu filho? Aí que a coisa se complica. A notícia que a serva de Agassi levou a Ferus era enganosa. Agassi não havia morrido. Infelizmente, a criança nasceu morta e a princesa foi mantida prisioneira no palácio do próprio pai. Ela acreditava que a criada havia levado a Ferus a notícia de que ela o esperava. Os anos se passaram e ele nunca chegou para buscá-la. Depois de quase doze anos de cárcere, Agassi não suportou mais a solidão e aceitou as condições de seu pai para ser posta em liberdade. Teria que se casar com um homem que ele escolheria e providenciar um herdeiro para o trono da Ilha do Véu. Ela se casou e teve um filho. Agassi morreu logo depois do parto. Depois você ficará sabendo como descobrimos toda a história. O importante é que você saiba que ela gerou descendentes e isso possibilita o cumprimento da profecia.
- Eu não vou me casar com nenhum descendente de Agassi! – gritei. E minha própria voz me assustou. – Já tenho um namorado e é com ele que quero ficar!
- Daniel Castilho? – a voz de Ferus perguntou atrás de mim.
- Como você...?!
Eu tinha lágrimas nos olhos quando me virei para Ferus e ele respondeu à própria pergunta com a revelação mais louca de todos os tempos.
- O nome dele na verdade é Ori. É o príncipe herdeiro da Ilha do Véu e descendente direto de Agassi.



XVII – Quebra de acordo.




Foi exatamente a partir dessa noite que comecei a sonhar com o mar de vidro com mais regularidade. Impossível manter o inconsciente sob controle, principalmente depois de sucessivas exposições a tão altos níveis de estresse. Aquela revelação me deixou inquieta por três dias. Fui para a tenda e não saí mais de lá até digerir toda a história. Isolamento. Dor. Confusão. Assim que tomei uma decisão procurei Ferus e comuniquei a ele minha vontade: - Quero vê-lo! – eu disse. Ferus não me negou a possibilidade de encontrar Daniel ou Ori. Somente impôs suas condições, como era de se esperar.
- Você só poderá vê-lo quando estiver pronta. – falou.
- E quando será isso? – minha ansiedade era perfeitamente perceptível enquanto eu falava.
- Quando você puder assumir seu posto de líder de Azagaia, depois que você tiver unificado as cinco cidades e possuir a força política dos cinco dirigentes.
- Mas isso só acontecerá quando eu tiver dezesseis?! Será daqui a três anos!
- Dois anos e um mês, na verdade. Esqueceu-se de seu aniversário, Lílian?!
- Mas como eu pude?! Havia mesmo me esquecido que farei catorze em menos de um mês! Vocês estão me enlouquecendo!
- Não seja uma menina chorona. – ele continuou – Será bem melhor se você sair de sua reclusão e começar a treinar com Alix para ser uma boa guerreira, caso os planos de paz não saiam conforme o esperado. Se a profecia estiver certa, você terá que enfrentar forte resistência. Seu tio paterno não entregará o poder tão facilmente. Ele possui aliados que estão sob seu domínio por medo, e essa é sua maior fraqueza. Vamos atacá-lo em seu ponto fraco: a soberba. Prepare-se que os treinos começarão ainda hoje. Já perdemos tempo demais.
Sempre que Ferus impunha sua vontade, a minha era a de virar as costas e sair. Simples assim. Mas meu pai estava em minha cabeça constantemente. Por ele eu suportaria todos os Ferus do mundo. Alix chegou perto de mim sem que eu percebesse e estremeci quando ele se fez notar. Ele sorriu.
- Ferus é realmente um nome perfeito para uma criatura tão insolente e insensível. – reclamei.
- O nome dele não é Ferus – disse Alix.
- E você não vai me dizer logo qual é?! – perguntei impaciente.
- Eliab Akiva Ami III.
- Quer dizer que ainda existiram outros dois com esse nome?
- Ferus é um rei, Lílian. Natural que tenha herdado os nomes de seus antepassados. Gostaria que demonstrasse mais respeito por nossa forma de vida, nossa história. Você faz parte dela. Ainda não percebeu que é bisneta de Ferus?
- Desculpe-me. Não foi minha intenção te magoar. Por que ele mudou o nome?
- Ele não mudou. Depois que um homem é amaldiçoado em nosso povo passa a usar outro nome para não carregar a maldição para o nome original. Assim, quando ele se livra do castigo, pode voltar a usar sua identidade sem medo de algum sinal da maldição. Foram os anciãos da tribo que escolheram esse novo nome. E desde então ele não parou de lutar para recuperar sua vida.
- Quer dizer que eu e Daniel teremos que herdar uma maldição?! Mas que injustiça!
- Ferus jamais faria isso com uma descendente dele, Lílian. Você não sabe nada sobre ele. Vocês ficarão por pouco tempo como representantes dele nessa maldição. Assim que vocês concluírem o processo que os levará a herdar o feitiço dos desejos, basta que se casem para que seja desfeito. E Ferus poderá morrer em paz. E Toda a nossa região poderá ter paz. 
 - Mas os planos...
- Os planos serão revelados quando você estiver mais madura para compreendê-los. Não se preocupe.
- Só me preocupo com uma coisa. Quanto tempo meu pai terá que ficar sob o domínio dos continentais até que possa ser libertado?
- Hum... Sobre isso só posso adiantar para você que Ferus já enviou representantes que possam fazer um acordo com Ori para que a vida de seu pai seja poupada. Acredite Lílian, se esse rapaz amar você não há porque se preocupar. Ele não permitiria que seu pai sofresse qualquer dano. Não acha?
- Pensando por esse lado... Daniel não faria mal a meu pai, realmente.
- Pois então? Esvazie sua mente de preocupações e dedique-se ao treinamento. Podemos começar?
- Sim. Prometo que serei dedicada.
Fomos para uma área da floresta um pouco mais adiante do local onde, alguns dias antes, Alix e Ferus me revelaram que Daniel é Ori e que eu sou uma planiciana. Meu Deus! Eu sou uma planiciana! Só agora me ocorreu que eu não imaginava como a família Gutierrez pudesse ser descendente de Ferus. Mais uma pergunta para acrescentar à minha interminável lista de mistérios que envolviam minha família. Mas agora eu precisava me dedicar ao treinamento. Fiz uma promessa e costumo cumprir a palavra empenhada. Caminhamos pelo o que me pareceu uma hora mais ou menos e chegamos ao lugar onde eu me tornaria uma guerreira planiciana, a menina que reclamaria a liderança de Azagaia, a Escolhida. Passamos todo o dia sem comer ou beber nada, e Alix me ensinava posições que eu deveria repetir ao ficar de pé ou deitada diante de um inimigo. Também me derrubou ao chão várias vezes, de forma que eu estava cansada, dolorida, com fome, frio e sede ao cair da tarde. De nada adiantava reclamar. De acordo com ele não haviam banquetes no campo de batalha; nem banheiros, ou camas, ou qualquer outra coisa que não fosse lutar para não morrer. Portanto, minha primeira lição foi de resistência. Quando começou a escurecer e ele deu sinais de que a aula terminaria eu pude sentir que minha cabeça estourava, meus braços e pernas estavam trêmulos e todos os músculos do meu corpo pareciam que estavam prestes a se descolar dos ossos. Um caos. Só o meu pai para me fazer resistir a tanta brutalidade. Queria chorar, mas não faria isso na frente de ninguém. Voltamos por um caminho diferente e eu reclamei que dessa forma eu nunca aprenderia a andar por ali sozinha. A resposta foi desanimadora.
- Não se preocupe, voltaremos aqui muitas vezes durante esses dois anos. Você acabará aprendendo. – disse Alix.
- Não existem feriados e finais de semana para os planicianos? – perguntei.
Alix se limitou a me olhar com um ar de enfado e continuamos o caminho em silêncio.
Os dias se sucederam com treinamentos cada vez mais pesados. Depois de vinte e seis dias de testes físicos terríveis foi a vez do teste emocional. Alix me comunicou que eu deveria ficar numa cabana no meio da floresta com água e comida suficientes para três dias. Ao final desses dias eu deveria buscar o caminho de volta à aldeia sozinha. A ideia era que eu ficasse incomunicável e que contasse apenas com minha própria capacidade. Caso encontrasse alguém não poderia me comunicar através de palavras, mas apenas de gestos. Compreendi e aceitei o desafio. Alix me deixou em uma pequena cabana e partiu sem se despedir, simplesmente virou as costas e sumiu entre a folhagem. As primeiras horas foram terríveis, mas nada se compara com uma noite na floresta. Eu ouvi todos os barulhos imagináveis. Não sei dizer se o som vindo das árvores e arbustos se mexendo era do vento ou de algum animal, ou se Alix ou Ferus estavam lá fora velando por mim. Só sei que uma noite nunca me pareceu mais longa que aquelas que passei sozinha bem no meio da Floresta Descomunal. De dia precisei dividir a comida e a água para que não ficasse sem ter como me alimentar e o que beber durante esse período. Ninguém passou por lá. Depois de algumas horas sem ter com quem conversar tudo o que eu queria era encontrar uma pessoa, qualquer uma, para falar sobre qualquer coisa. O silêncio é estarrecedor quando não temos opções de quebrá-lo. Passei a tarde do primeiro dia cantarolando músicas que aprendi com Flora em Azagaia. Por onde ela andaria? O que estaria fazendo? Como estaria minha amiga? Que saudades! Quando a noite caiu mais uma vez eu entrei em desespero. Chorei, tremi, pensei que não suportaria todos aqueles sons noturnos da floresta mais uma vez. Mas, no meio da madrugada a porta da cabana se abriu e, antes que eu caísse dura naquele chão de madeira, a cabeça de Trevo surgiu na base da porta e eu pude entender o que é alívio de verdade. Não sem antes perceber que todo o meu corpo formigava. Abracei meu amigo com lágrimas nos olhos. Percebi que havia algo pendurado em sua coleira e passei a mão sobre seu pescoço. Encontrei um bilhete e abri. Dizia o seguinte:
“E aí, menina corajosa, está sobrevivendo? Falta pouco. Aguente firme. Use Trevo para retornar à aldeia. E destrua esse bilhete para que Ferus não descubra que eu  mandei ajuda”.
                                                                                       Alix



Sorri e pensei na fazenda, nas tardes debaixo dos jacarandás com Sara e Felipe. Quando passamos por momentos difíceis, não é só a família que nos dá forças para continuar. Os amigos também têm responsabilidades sobre nossa decisão de continuar firmes. Lembrei-me de Flora, Sara, Felipe, e pensei que havia um novo amigo para acrescentar a essa lista: Alix. É verdade que ele atendia aos requisitos para amigo e família ao mesmo tempo, uma vez que fosse irmão do meu avô. Que loucura! A noite terminou sem maiores problemas afinal, eu não me sentia sozinha com Trevo ao meu lado. Amanheceu e eu pude retornar à aldeia. Simplesmente segui o conselho de Alix e deixei que Trevo me levasse de volta. Nem percebi o tempo passar enquanto caminhava.
Havia uma festa na aldeia dos planicianos. Não como aquela de meu acolhimento, mas uma festa cheia de simbologias e rituais. Era a minha cerimônia de iniciação, um rito de passagem ou algo do gênero. No dia seguinte seria meu aniversário, mas essa não era uma data importante ali. O que interessava aos planicianos era saber que eu possuía as mesmas qualidades que eles respeitavam nas pessoas. Sem essas qualidades eu nunca seria uma semelhante, jamais seria aceita. E eu consegui! A má notícia era que o treinamento para a guerra ainda não havia começado. Para receber lições de uma guerreira eu precisava primeiro provar ser uma. Eu teria o dia seguinte de descanso e, depois voltaria ao treinamento, mas dessa vez com muito mais severidade. Preferi não pensar nisso naquele momento. Para que todos pudessem notar minhas habilidades fizemos uma simulação de luta entre mim e Alix. Foi interessante. Senti uma brisa de poder bater em meu corpo e passar por mim como se eu fosse um filtro, alguma coisa permaneceu. Depois comemos e bebemos até a madrugada. Fui para a tenda com Trevo e um sorriso rasgado no rosto. Estava feliz.
O dia amanheceu debaixo de uma forte tempestade. A aldeia ficava em uma parte mais alta da floresta, portanto estávamos a salvo de alagamentos. A região de Azagaia é famosa por suas enchentes. A fazenda dos Gutierrez também ficava em um terreno bem alto. Mas em Cabeceira, uma cidade que inundava com facilidade, as casas eram construídas sobre camadas de pedras que as deixavam mais altas. Será que minha casa ainda estava de pé? Será que um dia eu voltaria ao meu lar?
Não saí da tenda durante toda a manhã. Ninguém veio me ver além de Zorax, a moça que era responsável por atender minhas necessidades de comida e outras questões de ordem prática. Zorax não era uma empregada como as que eu conheci na minha cidade e na fazenda. Ela era uma voluntária. Alguém que acreditava estar cumprindo uma missão ao facilitar a vida de um guerreiro. Só os guerreiros possuíam uma assistente na aldeia. Achei ótimo!
Aproveitei o tempo livre para ler meu livro preferido e ver se conseguia retirar mais informações a respeito da origem da guerra em Azagaia. Acabei adormecendo sobre o livro. Acordei com uma voz muito familiar que me chamava com carinho. Abri os olhos e pisquei muitas vezes até perceber que minha saudade não havia me enlouquecido.
- Vovô! Que bom que está aqui!

- Senti sua falta, minha pequena!
Meu avô Silvestre ali era o melhor presente de aniversário que eu poderia ganhar. Senti amparo em seu abraço caloroso. Senti o cheiro da fazenda e de tudo o que ele representava. A chuva havia estiado e o ar estava fresco, o que combinava perfeitamente com as lembranças que eu carregava. Olhei bem para o meu avô e percebi que estava abatido. Fiquei preocupada, mas conheço Silvestre Gutierrez tempo suficiente para saber que uma pergunta direta o faria recuar. Então falei sobre mim, sobre os dias de treinamento, sobre o que Ferus e Alix e todas as outras pessoas na aldeia haviam me dito... Ele ouvia tudo com muita atenção e interrompeu poucas vezes para me fazer voltar ao assunto (porque tenho essa mania de divagar). Depois que me senti pisando em terra firme perguntei:
- Como estão as coisas na fazenda vovô?
- Agora tudo está mais calmo. Recebemos o apoio de todos os moradores de Poço das Almas e Tornados se juntou à nossa causa. Resistimos com poucos, mas valiosos homens. Expulsamos a família Amaral de nossas cidades e criamos um pequeno exército que guarda nossas fronteiras. Você nem queira saber como foram os primeiros dias. Sua mãe, sua avó e Berenice estão com muitas saudades. Trouxe algumas coisas que elas prepararam para você. Algumas roupas também. Na próxima vez que eu vier tentarei trazer sua mãe.
- Tudo bem, vovô. Até que aqui não é tão mal depois que a gente se acostuma. Vovô?
- Pergunte Lílian.
- Como você pode ser filho de Ferus e de Pedro Gutierrez ao mesmo tempo?
- Estava esperando você perguntar. Até que demorou bastante! Bem, obviamente que isso seria impossível. Só posso ser filho de um deles, certo?!
Fiz sinal de afirmativo com a cabeça e ele continuou:
- Pois bem, Ferus é o meu pai biológico, ou seja, temos o mesmo sangue.
- Eu sei o que significa vovô!
- Desculpe, não pretendia ser arrogante.
- E não foi. Vamos lá! Conte!
- Quando completei quatro anos, minha mãe apaixonou-se por Pedro Gutierrez, e fugiu da aldeia para viver com ele. Era uma das esposas de Ferus e meu pai pretendia tomá-la de volta. Mas quando chegou a essa mesma fazenda que você conheceu, encontrou minha mãe tão feliz que não foi capaz de usar a força para resgatá-la. Preferiu deixar claro que ela poderia voltar um dia se precisasse e voltou para a aldeia decidido a tirá-la do coração. Quando chegou aqui eu ardia em febre e fiquei assim por vários dias até que ela viesse me ver. Com o consentimento de Ferus minha mãe me levou para viver com ela e Pedro Gutierrez me recebeu como a um filho. Foi assim que me tornei herdeiro de dois homens notáveis.
- Compreendo. Outra coisa? Lembra-se de ter me dito uma vez que Felipe e Sara são planicianos? O que eles são da gente?
- São nosso povo. Orestes é meu voluntário e um grande amigo. Ele decidiu me servir depois que me tornei um guerreiro. Com onze anos eu voltei para cá e passei por tudo o que você está passando, Lílian. Tínhamos a mesma idade e já éramos inseparáveis. Mas ele não quis passar pelos testes e preferiu ser voluntário.
- E do meu pai? O senhor sabe alguma coisa?
- Sei que ele está bem guardado. Fizemos um acordo e Ori é um rapaz de palavra. Assim como o era seu pai, o rei Amadeo.
- Quando poderemos libertá-lo?
- Quando estivermos no comando de Azagaia e não oferecermos mais riscos à Ilha do Véu.
- E quando será isso, vô?!
- Em breve, querida. Em breve.

- Tenho que passar pelo treinamento, não é?
- Não necessariamente, mas ajuda. Na verdade você precisa ter dezesseis. Antes de atingir a maioridade você não poderá fazer nada. Poderíamos colocá-la no poder antes disso, mas seria arriscado. Não queremos colocar tudo a perder, não é mesmo?!
- Entendo. Mas é angustiante.
- O treinamento é importante porque você terá que enfrentar seu tio antes de qualquer outra coisa. E ele não entregará o poder sem resistir. Redenção está com ele. Temos Tornados. Agora é manter nossa cidade segura e esperar você estar pronta.
- Acho que tive uma ideia!
- Fale querida.
- Tenho certeza de que Daniel, quer dizer, Ori, não se negaria a nos apoiar em um plano para me consolidar na liderança de Azagaia e na unificação das cinco cidades em um país que assinasse um acordo de paz com a Ilha do Véu. Só preciso que me consigam uma audiência com ele.
- Lílian, você me deixa orgulhoso, sabia? Como não pensamos nisso antes?
- E quem poderia marcar esse encontro?
- Ferus.

Conversamos com Ferus sobre minha ideia, que ele julgou excelente. Vovô voltou para a fazenda e eu continuei na aldeia com meu coração mais consolado por ter notícias de minha família e pela esperança de poder reencontrar Daniel. O menino lindo que me achava uma pirralha, que eu chamei de fantasma na primeira vez que o vi, porque não sabia que já estava em meu coração. O garoto que nunca mais saiu da minha cabeça, o príncipe escondido. Aquele sorriso perfeito dele não poderia ser de alguém sem coroa mesmo. A nobreza combinava com ele nos gestos, na beleza, no caráter. Confesso que queria meu pai de volta mais que tudo na vida, mas que esse não era o único motivo para desejar um encontro entre mim e Daniel Castilho. Eu precisava saber se ainda havia algo entre nós. E se ele já tivesse me esquecido? Com o passar dos dias, minha esperança crescia na mesma proporção do medo de ser rejeitada. Imaginava diálogos em que ele me declarava seu amor incondicional e outros em que me mandava para a prisão junto de meu pai. Algumas vezes sonhava que havia uma princesa ao lado dele na sala do trono e que ele me recebia de longe. Outras vezes, acordava no meio da noite com a voz dele me chamando. Ah, como amar pode ser torturante algumas vezes! Isso tudo em meio aos treinamentos cada vez mais pesados a que eu era submetida. Alix parecia desaprovar minha ida à Ilha do Véu. Achava arriscado. Ferus, ao contrário, estava satisfeitíssimo e parecia compartilhar da mesma ansiedade que eu, por motivos diferentes, claro. Depois de duas semanas, o mensageiro que Ferus havia mandado à Ilha do Véu retornou à aldeia. Vi quando ele passou correndo entre as mulheres que lavavam as crianças à beira do rio e acompanhei com os olhos até que ele parou em frente à tenda de seu líder. Em menos de um minuto já não estava mais ali, mas no interior da tenda informando a decisão do príncipe Ori. Meu corpo formigou como nos velhos tempos. Mais uma vez senti que nada me pertence, nem mesmo o caminho que desejo trilhar é uma escolha só minha. 

Não consegui resistir e caminhei até a entrada da tenda de Ferus para aguardar uma notícia. Alix me observava de longe e eu pude perceber que havia desaprovação em seu olhar. Não pude lidar com ele naquele momento. O amor tem isso de exigir toda a nossa concentração. E ali eu estava concentrada nos dois amores de minha vida: Camilo Amaral e Daniel Castilho. Quando o mensageiro saiu da tenda não se surpreendeu com minha presença ali. Ao invés disso falou que Ferus me aguardava e continuou seu caminho. Entrei imediatamente.
- Como sabia que eu estava aguardando aí fora? – perguntei.
- Prepare-se para partir amanhã antes do nascer do sol. Ori concordou com uma audiência.
No mesmo instante meu sorriso se abriu fazendo com que Ferus estreitasse os olhos.
- Obrigada. – eu disse – Não irei decepcioná-lo.
- Sei que não. Mas cuidado para não se decepcionar.
Aquelas palavras tiraram completamente meu sorriso do rosto.
- Por que diz isso? – perguntei.
- Para que você não se esqueça de quem é e o que vai fazer na Ilha do Véu. Tenha sempre em mente, Lílian, que você não vai rever o menino que conheceu em Cabeceira, mas um rei que tem obrigações para com seu povo. E você também tem responsabilidades.
Ouvi as palavras de Ferus como se uma pedra estivesse sendo amarrada ao meu coração. Não pude dormir aquela noite e, antes da hora combinada estava aguardando a comitiva que me levaria à Ilha do Véu. Alix, Amine, Geriá e o mensageiro que descobri se chamar Gaudart. Todos eram filhos de Ferus e, portanto, meus tios. Partimos ainda de madrugada. Estava frio e a floresta parecia assustadora. O fato de que nenhum deles abria a boca para dizer absolutamente nada ainda tornava a viagem mais difícil e demorada. Para chegarmos à terra de Daniel precisávamos atravessar a Floresta Descomunal, a parte norte de Poço das Almas e, a etapa mais difícil, navegar pelos Mares Bravios. Eu passaria perto de minha mãe e não poderia parar para vê-la. Isso me incomodou bastante. Pensei no meu pai e segui meu caminho em silêncio. Depois de cinco dias a cavalo alcançamos a Praia das Ausências onde Orestes nos aguardava com uma pequena embarcação. Não tive tempo de conversar com ele, mas trocamos olhares e ele sorriu para mim. Acreditei que aquele era um sinal de que tudo estava bem. A esperança é uma tristeza compartilhada.
Depois de dois dias navegando pelos Mares Bravios aportamos na Ilha do Véu pela parte norte, aos pés do Monte Depo. Havia uma comitiva que eu acreditava ter sido mandada por Daniel para nos receber. Gaudart e Alix ficaram apreensivos com o numero de guardas que nos esperavam. Eram vinte homens armados e com expressões nada agradáveis. Também não me senti segura, mas não sabia o que esperar. Aos poucos eles abriram passagem e um homem baixinho e com uma barba bem longa se aproximou seguido por alguns guardas que seguravam o que parecia conter o corpo de um homem. Recuei. Alguma coisa ali não estava certa. Fiquei tão nervosa que não conseguia ouvir o que o homem falava com Alix. Só entendi as últimas frases:
- Vocês não são bem-vindos. Sumam daqui e levem esse assassino com vocês! Ele teve o que mereceu.
Os guardas depositaram o ataúde no chão e seguiram o homem. Tentei me aproximar, mas Alix não permitiu. Uma onda de ódio e desespero invadiu meu corpo e eu gritei para que ele me largasse. Assim que me vi livre dos braços de Alix corri para junto do caixão e afastei o lençol que o cobria. Uma dor indescritível atingiu meu corpo como um raio quando confirmei o que me coração não queria acreditar. Meu pai havia sido morto pelos continentais.


XVIII – Amor e ódio.


Não sei quanto tempo passei debruçada sobre o corpo inerte do meu pai. Senti um par de mãos fortes me levantando do chão. Não havia som. De repente tudo começou a voltar e um choro compulsivo arrebentou em meu peito. Alix me ergueu e aninhou-me em seus braços como meu pai ou vovô fariam. Entendi seu papel naquele instante. Levou-me em direção ao barco e, quando percebi que deixaríamos a ilha falei entre soluços que queria ver Daniel e saber o motivo de tudo aquilo. Porque ele havia faltado com sua palavra? Porque matar meu pai? Queria encará-lo e dizer o quanto o odiava, apesar de não estar muito certa disso. A resposta não veio de Alix, mas de Gaudart:
- A morte de seu pai já é a resposta de que precisamos Lílian. Eles acabaram de declarar guerra a Azagaia.
- Mas isso não faz sentido! Ele nos aguardava para um acordo de paz, porque colocaria tudo a perder para iniciar uma guerra que não fará bem a nenhum de nós? – perguntei.
- Realmente não faz o menor sentido. – disse Alix – Acho que um de nós deve permanecer na ilha e procurar o motivo dessa atitude. Isso não está me parecendo nada bom.
- Eu ficarei. – Gaudart respondeu – Conheço a ilha como a palma de minha mão. Já fiz muitas incursões por aqui, inclusive com Camilo. Ele foi um bravo guerreiro e excelente companheiro na batalha. Já me salvou das mãos dos inimigos por diversas vezes. É uma questão de honra descobrir o que aconteceu a ele. Levem a menina e o copo dele daqui. Vocês precisam passar por Poço das Almas e entregar o corpo de Camilo à Marina para que tenha um enterro digno. Eu cuido do que vocês deixarão para trás. O fato de terem matado Camilo é estranho, mas nos deixar vivos ainda me parece mais inexplicável ainda. Estarei com vocês em alguns dias. E Lílian? Sinto muito.
Agradeci e partimos. Fiquei ao lado do corpo do meu pai durante toda a viagem de volta. Ele parecia dormir. Por quanto tempo teria sofrido? Qual foi seu último pensamento? O que não dissemos um para o outro que ainda faltasse ser dito? Como eu poderia ficar sem sua voz grave narrando para mim as mais belas histórias do nosso povo? Eu aprenderia agora o significado de nunca mais. Algo pelo qual eu nunca havia esperado. Para o que eu nunca havia me preparado.
Na medida em que nos aproximávamos da costa de Poço das Almas, minhas forças pareciam se esgotar. Eu teria que lidar não somente com minha dor, mas com o sofrimento de minha mãe, meus avós, pessoas que eu amo e que não queria ver sofrer por nada nesse mundo. Nada daquilo fazia o menor sentido. Parecia um pesadelo. Por que motivo Daniel me convidaria à ilha para me entregar o corpo de meu pai? E quem era aquele homem de barba comprida e olhos de pedra que nos recebeu com um convite à guerra? Descemos do barco e entramos em uma pequena área da cidade que liga o litoral à fazenda de meu avô. É o caminho mais curto, mas também o mais difícil. Apesar de pouco populoso, passamos por diversos conhecidos durante nosso trajeto. Os olhares variavam de solidariedade a pavor, de acordo com o entendimento da pessoa com o que acabava de acontecer. Muitos viram em nossos olhos apenas dor. Os mais experientes viram a guerra. O sangue nos perseguia desde a Ilha do Véu, desde a fundação das cidades, desde antes da chegada dos fundadores, quando essa região era motivo de disputa entre continentais e planicianos. E se eu pudesse visitar o passado, com certeza descobriria que o sangue separava as pessoas desde muito antes disso. Eu odiei toda aquela batalha por chão, poder e dinheiro. Não passava disso. Todos ali queriam a garantia de que não seriam dominados por quem consideravam menos preparados que eles. Como num jogo de tabuleiro, éramos peças sendo movimentadas pela necessidade de sobrevivência. Decidi que não seria o próximo peão a sair do jogo. Queria a promoção a qualquer custo! Eu lutaria até o fim de minhas forças para ganhar essa batalha e colocar um ponto final em toda aquela estupidez.
Precisava encontrar Ferus e saber qual seria nosso próximo passo. Estava confusa demais para ver a situação com imparcialidade. Minha vontade era procurar Daniel, Ori, ou seja lá qual fosse o nome dele, e tirar a limpo o que aconteceu ao meu pai. Por outro lado eu imaginava que ter saído viva da ilha não parecia o tipo de coisa que acontece toda hora na vida de uma inimiga dos continentais. E bastava de sofrimento para minha família, pelo menos por hora. Já achei perigoso Gaudart ter ficado na ilha depois de nossa partida. De qualquer forma, eu precisava saber o que estava acontecendo. Enquanto me aproximava da fazenda de minha família, com Alix e Geriá carregando o ataúde com o corpo do meu pai, lembrei-me de ter visto Gaudart circundado o sopé do Monte Depo para entrar pelo outro lado, uma vez que alguns soldados permaneceram no local com a intenção de certificarem-se de que iríamos embora sem problemas.
Nem percebi quando a entrada da fazenda surgiu diante de nossas vistas. Amine foi quem primeiro anunciou nossa chegada. Ele ia adiante e entoou o cântico para o luto, que era comum em Azagaia. No mesmo instante os empregados da fazenda foram surgindo e tiravam seus chapéus na medida em que avistavam a cena de nosso retorno. Enquanto eu passava pela entrada de carvalhos que eu tinha me acostumado a observar na esperança de ver a caminhonete de papai, a vontade de não estar ali crescia em meu coração. Depois da curva de onde a entrada da casa principal ficava bem visível, levantei minha cabeça e vi parados na porta, minha avó, Berenice, Olímpio, Sara e Felipe. Caminhando em minha direção estavam vovô e Orestes. Mamãe corria mais à frente. O encontro foi consolador e terrível ao mesmo tempo. Minha mãe me abraçou primeiro e olhou bem tudo o que estava visível em meu corpo. Estava aliviada e desolada ao mesmo tempo. Vovô só olhou pra mim. Teríamos tempo de falar tudo o que poderia ser dito numa hora como essa. Naquele momento ele fez o que todo ancião do nosso povo faria diante de um irmão morto: pegou cinco pedras no chão que representavam as cinco cidades de Azagaia e colocou sobre o peito de meu pai como sinal das cidades pelas quais tinha lutado. Depois tomou o lugar de Geriá e carregou o genro pelo resto do caminho. Não chorou. Os homens de Azagaia não choravam em público.
O restante do dia foi ocupado pelos procedimentos para o enterro de papai. Eu estive ausente de tudo. Tranquei-me no quarto com Sara e Felipe. Não falávamos de nada, eles apenas estavam ali. Senti falta de abraçar Trevo numa hora dessas. Minha avó pediu a Orestes para buscar Flora em Cabeceira. Ele teria que ir escondido de meu tio, mas Orestes conhecia os caminhos de Azagaia melhor que ninguém. Era o único homem vivo famoso por entrar quando quisesse na Terra das Rotas Diagonais e sair ileso. Por muito tempo sua principal função era a de resgatar os desaparecidos no deserto dos desmemoriados, como chamávamos a Terra das Rotas Diagonais de vez em quando. Foi ele quem resgatou meu avô de lá. Meu pai também. E me resgataria um dia.
Vovó preparou bolinhos para as muitas pessoas que chegavam. Eu não tinha fome. Felipe comeu sozinho o prato cheio de bolinhos que Berenice levou para o quarto. Impressionante a capacidade dos homens de comer nos momentos mais inoportunos! Só ouvíamos o som da mastigação dele no quarto e isso me irritava. Acho que me concentrei naquela raiva porque era mais fácil que a dor. Lá fora a movimentação era grande. Olímpio substituía o patrão nas tarefas práticas para o enterro. A vovô ficou a dura tarefa de consolar os amigos quando ele mesmo não sentia forças para estar de pé. Alix e os irmãos haviam partido para avisar a Ferus e aos planicianos o que tinha acontecido. Com certeza eles estariam presentes no enterro na manhã do dia seguinte. Pensei se eu deveria avisar aos Amaral, mas me lembrei da arrogância de minha avó paterna quando fui procurá-la e achei melhor mantê-los longe disso. Até porque não daria certo um enterro com os Amaral e os continentais presentes. Meu pai não seria o único enterrado, com certeza. À noite, depois que a maioria das pessoas havia ido embora, desci e pedi a Berenice que preparasse uma sopa para mim. Foi revigorante. Fui para o quarto sozinha e dormi até o dia seguinte. Acordei com um barulho de muitas vozes e percebi que o sol nem havia nascido ainda.  Mamãe entrou em meu quarto apressada e vovó estava com ela. Levantei-me de um salto e olhei para as duas um pouco assustada.
- O que está acontecendo? – perguntei.
- Você não vai acreditar, Lílian, mas os Amaral vieram buscar o corpo de seu pai.

Antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, Olímpio entrou no quarto e fez sinal para que fizéssemos silêncio.
- Eles estão procurando por Lílian.  – ele disse. Querem Camilo e ela. Deram um prazo de meia hora, se não for obedecido invadirão a fazenda e a levarão à força.
- Eu não vou a lugar algum com...
- Lílian, não há tempo para discutirmos. Você precisará partir imediatamente, não temos a menor chance com você aqui. Se ficar será levada juntamente com o corpo de seu pai, e eu duvido muito que não tenha o mesmo fim que ele.
Não tive medo por mim. Infelizmente, minha mãe entrou em desespero.
- Por tudo que há de mais sagrado, Olímpio, salve a minha filha das mãos dessa família ingrata! – ela dizia tudo em meio a soluços e lágrimas. Não pude deixar de sentir uma dor aguda no coração. Odiava ver minha mãe sofrer.
- Não poderei fazer muita coisa, Marina. Só permanecer aqui e tentar retardar ao máximo a entrada deles. Mas isso será inevitável.
- Quer dizer que meus pais...
- Não posso te garantir nada. Só que você precisa levar  Lílian para longe daqui agora mesmo.
- Mas como sairemos daqui? Estamos cercados.
- Venham comigo. Lílian?
Ao ouvir meu nome obedeci instintivamente, mas não conseguia entender o que poderia acontecer aos meus avós. Ou não queria entender. Olímpio nos levou até uma passagem subterrânea que havia atrás da adega de meu avô. Era um corredor enorme e escuro com um aspecto terrível de casa de morcegos e ratazanas. Tive mais medo de entrar ali do que de enfrentar meu avô psicopata. Minha mãe também hesitou.
- Marina, agora escute o que vou falar com muita atenção. – a voz de Olímpio parecia tremida e isso era mais assustador ainda – Sigam essa passagem até o final o mais rápido que puderem. Vocês encontrarão uma porta de madeira com um gancho no meio. Puxe o gancho, empurre a porta e saia. Não olhem para trás. Não percam tempo. Vocês sairão na parte alta da fazenda, aos pés das Montanhas Rochosas. Circulem as pedras até encontrarem a entrada da Floresta Descomunal. Procurem abrigo por lá e esperem. Daremos um jeito de avisar a Ferus e ele as buscará. Não saiam de lá em hipótese alguma. Corram, agora!
Corremos o mais que pudemos, eu e minha mãe, por aquele corredor escuro e frio, com apenas umas brechinhas por onde a luz passava no alto. Obviamente essas aberturas foram feitas para iluminar o caminho, mas a noite seria impossível passar por ali para quem já não conhecesse bem a passagem. Por outro lado, não enxergar fez com que chegássemos mais rápido à porta de madeira para nos livrarmos daquele pesadelo. Fizemos tudo como Olímpio nos indicou e entramos na Floresta Descomunal. Agora era torcer para que Ferus nos encontrasse o mais rápido possível. 
Esperar requer algumas virtudes que eu não possuo: paciência, resignação e ausência total de ansiedade. O caso é que a vida tenta nos ensinar as lições que nos são mais difíceis. Para que sejamos pessoas melhores devemos superar obstáculos. Os meus sempre foram relacionados à impulsividade e indisciplina. Não há nada mais complicado no mundo pra mim que seguir regras. Não sou avessa às regras, sou inapta. Na verdade, eu até gostaria que fosse fácil. Queria abrir um manual e receber todas as respostas que preciso prontas, mas isso não é possível. E como não tenho a menor habilidade para agir de acordo com o esperado, faço o que acredito ser o mais apropriado para mim, de acordo com meus sentimentos. O conselho de Olímpio era para ficar na floresta até que Ferus fosse nos buscar, mas ficamos por horas escondidas e eu só conseguia pensar em como as coisas estariam na fazenda. E porque ninguém tinha vindo nos buscar até agora. Peguei um galho de uma árvore e escrevi na terra úmida um recado para que minha mãe soubesse que eu não tinha sido sequestrada e que ela deveria ficar no mesmo lugar para que eu a encontrasse e parti em direção à fazenda. Não havia notado que estávamos tão longe da casa de meu avô. Acho que andei uns 5Km a pé até avistar os jacarandás. Tudo estava muito silencioso e me lembro de ter pensado no quanto isso era um mau sinal. Passei pelos estábulos e pela vila dos empregados e não havia ninguém. Os cavalos não estavam em suas baias ou em qualquer outro local, não vi as crianças e, dos animais que costumavam perambular por ali durante o dia só vi uns porcos enlouquecidos e as galinhas e patos soltos no campo atrás da casa. Esse quadro acionou o botão de defesa em mim e entrei sorrateiramente pela porta dos fundos da casa principal que dava acesso à cozinha. A casa estava toda revirada e havia sangue em alguns lugares. Senti meu sangue congelar. O coração, ao invés de bater com toda a força, parecia ter deixado meu corpo. A boca ficou seca e eu cogitei a possibilidade de não continuar. Mas como eu poderia voltar sem saber o que tinha acontecido ali? E meus avós? E meus amigos?
Algumas decisões não permitem retorno ao ponto de início. Assim que saí da floresta e fui até a fazenda estava decidido que eu queria saber o que havia deixado para trás. Continuei em frente até que encontrei. O que não significa que tenha sido exatamente o que eu esperava. A casa revirada deixava claro que as coisas por ali não tinham sido fáceis. A cada marca de sangue eu só conseguia imaginar de quem poderiam ser. Andei até ver o primeiro sinal de que meu pressentimento estava correto. Um arrepio percorreu meu corpo da base da coluna até a nuca, irradiando para os braços. Orestes estava caído no chão da varanda, os pés ainda dentro da sala. Morto! Com certeza. Não chorei. Fui até ele bem devagar. Aos poucos, os corpos de vários amigos e conhecidos foram surgindo diante de mim como se eu estivesse no meu pior pesadelo. Olímpio, Aramis, Berenice, Antunes e muitos outros empregados da fazenda. Meus avós! Corri por toda a casa e arredores e não encontrei nada. Bom sinal. Se tivessem sido mortos estariam ali. O corpo do meu pai também havia desaparecido. De repente, contornando o pequeno lago que ficava em frente à casa principal eu vi uma cabeça conhecida e uma onda de choque me atingiu imediatamente: - Felipe?! Não! Oh, meu Deus, o Felipe não, por favor! Que não seja verdade! Infelizmente era meu querido amigo. Um garoto ainda. Quem poderia ser tão cruel a ponto de matar um menino de pouco mais de quinze anos?! Enquanto eu caminhava em sua direção, uma sombra enorme começou a surgir diante de mim e eu girei para trás.
- Ferus! Como me encontrou?!
- Você não deveria estar aqui, menina desobediente. A ordem era para que ficasse na floresta até que eu as buscasse.
- Mas como você sabe disso se o Olímpio está morto?
- Sua mãe está lá dentro. Ela veio comigo. E eu recebi a mensagem do Olímpio. Infelizmente, tarde demais para que o que houve aqui fosse evitado.
- E o que faremos agora?
Antes que Ferus pudesse me responder, um gemido nos chamou a atenção. Ficamos em silêncio por alguns segundos até que ouvimos a voz de Felipe, fraquinha, sussurrar novamente:
- Lílian. 
Corri em direção a Felipe e ajoelhei a seu lado. Meu amigo estava muito machucado. De uma forma bem estranha pensei em Flora. Também pensei em como me sentiria se fosse Daniel ali, estendido na terra úmida, abandonado à morte em uma luta que nem era dele. Não deveria temer por sua vida. Afinal de contas, ele era o responsável pela morte do meu pai. Se não por ação, com certeza por omissão! Incrível a capacidade humana de divagar por pensamentos inoportunos nos momentos mais delicados da vida. Incrível como eu poderia ser a miss universo nesses pensamentos! Ferus me afastou com as mãos e voltei à realidade. Ergueu Felipe no colo. Carregou-o para dentro de casa. Quando mamãe nos viu congelou entre a porta interna da sala e a cozinha. Ficou por um tempo que me pareceu logo parada dando-me a impressão de que o tempo também havia parado. Sensação estranha. Finalmente, ela despertou do choque com as palavras de Ferus:

- Marina, traga água e algumas toalhas. Todas as toalhas que encontrar que estiverem limpas. Coloque uma grande quantidade de água para ferver também. Lílian venha aqui e desocupe essa mesa. Depois vá até o quintal e colha algumas folhas de vandrana e traga algo com o que eu possa aquecê-las. Procure um lençol limpo e uma tesoura. Precisarei que você corte esse lençol em tiras. Vamos! Andem rápido!
Minha mãe e eu fizemos tudo o que Ferus havia nos indicado. Depois que todos os ferimentos de Felipe haviam sido cuidados, arrumei um dos quartos para que ele dormisse. Ferus nos alertou sobre a necessidade do convalescente descansar antes de responder a qualquer pergunta sobre o que havia acontecido ali. Felipe estava fraco demais. Ainda tínhamos muitas providências a tomar. Precisávamos recolher todos os corpos e dar um enterro digno a eles, lavar a casa e tirar as marcas de sangue que estavam espalhadas por todo lado, avisar aos parentes, convocar os príncipes dos planicianos para uma reunião para decidirmos que resposta daríamos aquela barbárie e, a mais importante de todas, descobrir o que aconteceu aos meus avós e à Sara. Não havia sinal de nenhum dos três na fazenda e isso era um grande motivo de preocupação. Antes de iniciarmos a “limpeza”, como disse minha mãe, Ferus se afastou e eu o acompanhei. Caminhou até onde estava seu cavalo e acariciou o corpo do animal como se o preparasse para a missão que confiaria a ele. Aproximei-me com cuidado a tempo de ouvi-lo sussurrar na orelha de Ulisses:
- Vá agora, meu amigo, e traga-me Alix.
E o cavalo partiu para a Floresta Descomunal.


XIX – Ataque ao flanco do rei.


Depois que Ulisses partiu em busca de Alix, minha mãe e eu limpamos toda a casa, enquanto Ferus fazia os preparativos para os enterros. Não foi nada fácil. Se você nunca precisou tirar manchas de sangue de paredes e assoalhos da própria casa não faz a menor ideia do quanto é feliz. Eu só conseguia pensar no que teria acontecido a meus avós. Se não estavam entre os mortos havia uma grande chance de que tivessem sobrevivido. Mas onde estariam? Fugiram? Ferus acreditava que eles estivessem na aldeia. De qualquer forma as respostas viriam até nós. Precisávamos esperar. Quando me deitei àquela noite para dormir não consegui fechar os olhos apesar de estar exausta. Então, durante a madrugada, levantei-me e fui para o quarto de Felipe.
Empurrei a porta devagar. O quarto ainda mergulhava no silêncio da madrugada. Lá fora o vento formava uma melodia triste e altissonante quando passava pelas folhas dos jacarandás. O cheiro de vandrana se misturava ao de sangue e à lavanda usada tanto para afastar os escorpiões como para conferir às roupas de cama um perfume mais agradável que o mofo dos tecidos guardados por muito tempo. Felipe dormia profundamente. Andei até o sofá que ficava em frente à cama e deixei-me abandonar entre as almofadas. Queria ser a primeira pessoa a falar com ele quando acordasse. O que quer que tenha acontecido ali, eu saberia antes de qualquer acordo de silêncio que Felipe tivesse que fazer a Ferus. Era minha chance de descobrir a verdade sobre alguma coisa naquela loucura toda. O cansaço era tanto que minha cabeça começou a doer. Mas não cedi em nenhum momento e permaneci dura, impassível, acordada. Antes do amanhecer, ouvi gemidos e Felipe começou a dar sinais de não estar dormindo profundamente. Fui até a cama e me sentei na pontinha com toda delicadeza que uma pessoa ansiosa por falar com alguém que dorme poderia fazer. Felipe abriu os olhos e deu um salto seguido de um grito de dor.
- Shiiiiiiiii! Quieto! Quer acordar Poço das Almas inteira?! – sussurrei.
- Lílian! Que bom te ver! Sonhei que ainda estava sendo perseguido.
Ele falou isso e voltou a deitar com alguma dificuldade.
- Pois é, Felipe, você pode me contar o que houve aqui?
- Claro. Foi terrível! Foi a pior experiência que tive na vida. A primeira vez que encarei o ódio. Que bom que não estava aqui.
- Meus avós foram...
- Mortos? Não! Mas foram levados como prisioneiros. Acredito que seu tio pense que você irá buscá-los. Sinto muito, Lílian. Não pudemos fazer muita coisa além de retardar um pouco a entrada dos homens que acompanhavam Constantino Amaral. Se você estivesse aqui teria morrido e, muito provavelmente, “Seu” Silvestre, Dona Maurícia e sua mãe também. Seu tio está preocupado com a profecia que diz que uma menina irá unificar Azagaia quando libertar Ferus da maldição da eternidade. Enquanto você viver representará um risco a ele. Você correu um grande risco hoje.
- Que me importa ter sobrevivido se tantas vidas foram sacrificadas em meu lugar? Tudo isso para libertar um homem de uma maldição e unificar um país? Não te parecem motivos insignificantes diante de tantas perdas? Não consegui dormir essa noite com as lembranças dos corpos de tantos amigos espalhados pelo lugar onde costumávamos brincar até outro dia. Acho que nunca mais dormirei tranquilamente. E você? Todo quebrado. Quase foi morto também! É um milagre que tenha sobrevivido. Se meu tio quer o poder que fique com ele e faça bom proveito! Não quero mais sentir essa dor insuportável que sinto agora. Meu pai e meus amigos estão mortos! Meus avós sequestrados.
- Acho que não entende. Se você não unificar Azagaia e permitir que seu tio governe muito mais gente será dizimada em guerras infinitas por anos intermináveis como no passado. Além do mais, ele tem aliados entre os Continentais e acabará Imperador ou algo parecido de toda a região. O problema é maior que nós, Lílian. Muito maior que nossos dramas particulares. A Pedra Marcada contém segredos que ainda desconhecemos. Além de libertar Ferus da maldição ela guarda um mapa que indica as rotas por onde podemos viajar com segurança pela Terra da Rotas Diagonais, como passar pela montanha Cabeça de Cavalo e alcançar o país além e ainda pode libertar os prisioneiros das Torres Consagradas que estão há anos no castelo de Buhr no centro das Terras das Rotas Diagonais. Você conhece essas histórias, não?
- Sim. Achava que eram lendas, mas descobri que não há lendas em Azagaia.
- Lílian, nenhum morador de Azagaia pode voltar a viver aqui se deixar nossa região. A Pedra guarda o segredo do véu que nos separa do País Além. Acredita-se que muitos esperam seu governo para reencontrar entes queridos que se perderam há anos.
- Mas essas pessoas devem estar mortas!
- Aí é que está! Depois que um morador de Azagaia deixa nossa região ele não pode morrer. Sofre de um mal parecido com o de Ferus. Só poderá encontrar seu destino se voltar a viver aqui. Nossa terra reclama seus moradores. Ela não permite que nenhum de nós consiga paz em outro canto e, com seu tio no poder, nem aqui poderemos encontrar descanso. Não permita que seu pai e o meu tenham morrido em vão. Não desista da gente, Lílian.
- Isso mesmo, Lílian, não desista de cumprir seu destino. Garanto que não adiantará muito tentar resistir a ele – era Ferus. Como sempre chegando sem ser convidado e nem por isso sendo discreto.
- Você não sabe bater na porta? – respondi tentando mudar o foco do assunto.
- Você nem imagina as coisas que não sei! Agora saia já daí e vista-se. Vamos enterrar seus amigos.
Fiz conforme ele havia tão gentilmente orientado e fui para meu quarto me arrumar. Coloquei o primeiro vestido escuro que encontrei sem nem perceber que não era preto, mas azul marinho. Fiz um rabo-de-cavalo e lavei meu rosto. Desci as escadas correndo e vi a porta da biblioteca aberta. Resolvi entrar e descobrir o que tinha sido destruído num lugar tão importante para meu avô. Curiosamente, a sala estava bagunçada, com papéis e almofadas espalhados pelo chão, mas não havia sinais de destruição. De repente, um barulho me fez ligar o botão de alerta. Pequenas batidas vinham de trás da estante de biografias. Seriam ratos? Não pareciam batidas de ratos. Eram cadenciadas e obedeciam a um padrão como uma senha. Pa pa pa pa pa pam! Cheguei o mais perto que pude e perguntei:
- Tem alguém aí?
Do outro lado uma voz conhecida respondeu:
- Lílian, é você?
- Sou eu! O que você está fazendo dentro da estante do meu avô? Como foi parar aí?
- Abra pra mim. É só puxar o castiçal em cima da primeira prateleira.
Fui até o castiçal de prata de minha avó e puxei o mais que pude. Uma pequena abertura surgiu diante de meus olhos entre a estante e a parede ao lado da janela.
- Sara!
- Lílian!
Abracei minha amiga como se não nos víssemos a anos. Que alívio ver que ela estava bem! De uma maneira muito particular pude ficar feliz apesar dos últimos acontecimentos.
- Como você foi parar ali, menina?! – perguntei.
- Sua avó me colocou aí dentro quando percebeu que as coisas seriam muito piores do que imaginávamos. O problema é que a abertura interna é alta demais para uma criança e eu não consegui alcançar.
- Que bom que você esteve segura!
- E os outros?
Engoli seco e minha garganta doeu. Olhei para minha amiga com firmeza e falei:
- Estão todos mortos. Com exceção de meus avós que desapareceram.
- Como?
- Sinto muito, Sara. Não sei o que dizer...
Ficamos as duas quietas por um longo tempo.
- Meu pai?
- Sim.
- Meu irmão?
- Não! Desculpe. Felipe está ferido, mas está bem. Descansando lá em cima.
Um suspiro profundo saiu do peito de Sara e ela falou com voz embargada:
- Leve-me até ele.
Subimos as escadas e fomos até o quarto de hóspedes que Felipe ocupava desde o dia anterior. O reencontro dos irmãos foi emocionante. Não pude conter as lágrimas e chorei. Chorei por meu pai, por Berenice, Orestes, Olímpio, Sara e Felipe. Pelos meus avós, por minha mãe. Pensei que nunca fosse parar de chorar. Mas foi restaurador. Senti que meu corpo ficou mais leve. Precisava desabafar a dor de tantas perdas. O choque não havia permitido que eu entendesse a situação antes, mas vendo meus amigos num misto de dor e alívio, pude entender que nunca estamos sozinhos. E que há equilíbrio até em momentos desoladores como aquele. Depois de alguns minutos escutamos um alvoroço de patos lá fora e minha mãe entrou no quarto anunciando:
- Alix está vindo e não está sozinho. 
Não consegui acreditar no que vi. Não era possível contar quantos homens se dirigiam para o casarão antigo dos Gutierrez. Alix vinha na linha de frente, Ulisses estava sem cavaleiro ao seu lado, e muitos outros se juntavam a eles formando uma extensa massa de guerreiros com expressões faciais que já me amedrontavam mesmo sabendo que vinham para ajudar. Mamãe parecia aliviada. Os homens estavam sérios e Sara e eu tínhamos interrogações no rosto. Fomos todos para frente da casa recebê-los.

- Salve, meu filho, meu herdeiro e continuador! - disse Ferus - Um dos fortes que darão ao meu nome honras quando eu não mais estiver entre os viventes! O que o traz aqui com seus irmãos e com outros que não conheço?
A pergunta foi dele, mas confesso que estava esperando a resposta com a mesma urgência e o mesmo estranhamento.
- Salve, meu pai! Que suas palavras sejam poderosas para atravessar os anos e alcançar os ouvidos do futuro! Estou aqui acompanhado de meus irmãos e dos guerreiros de Tornados, Redenção e Poço das Almas. Nossos vizinhos escolheram os mais fortes e habilidosos entre seus filhos e nos procuraram para dizer que é chegada a hora. Não poderemos esperar até que a menina complete a idade adequada. A guerra é inevitável. Cabeceira já mandou suas condições e nos provoca com sua audácia.
- E que condições são essas? – perguntei.
- Eles exigem uma troca. Estão com Silvestre e Maurícia. – E Alix abaixou a cabeça ao dar essa notícia.
Minha mãe deu um grito sufocado por suas mãos à boca. Flora ficou chocada. Somente Ferus e eu sabíamos o que Constantino Amaral pretendia com aquele sequestro.
- Eles querem a mim, não é mesmo? – interrompi o silêncio e minha voz saiu enfraquecida pelo medo. Não do que poderia me acontecer, mas do que seria dos meus avós se Ferus não aceitasse as condições da família Amaral.
- Isso está fora de discussão. – Alix se adiantou e respondeu pelo pai.
- Concordo, meu filho, mas o que vocês sugerem que façamos? Qualquer atitude precipitada colocará a vida de Silvestre em perigo. Você sabe que não permitirei que isso aconteça. Também não darei minha permissão a uma guerra que exponha Lílian antes do poder que a revelação da pedra dará a ela. Qualquer coisa fora desse tempo é arriscada demais. Sugiro que façamos o seguinte: cada um de vocês escolha o seu representante. A fazenda é grande e há espaço para todos. Que os outros descansem e alimentem seus cavalos e a si mesmos. Os representantes se reunirão comigo e decidiremos a melhor forma de livrar Azagaia desses impostores. Além do mais, nossa guerra não é contra nossos irmãos, mas contra os continentais e sua resistência à paz.
- Boa é a palavra de Ferus! Façamos conforme seu conselho. – bradou um dos guerreiros.
- Viva Ferus! – gritaram os planicianos a uma só voz.
- Viva!- responderam os demais.
Era como se eu estivesse mergulhada num sonho. Nada daquilo parecia possível, mas tudo era muito real.
O pátio da fazenda ficou tomado por homens apeando de seus cavalos, desamarrando suas bagagens, levando os animais para a estalagem, dando-lhes bebida e comida. Os criados foram até o rio Ité para buscar água para dar de beber a seus senhores. A diferença entre eles era perceptível até para os mais distraídos. Os planicianos possuíam um andar altivo, a postura ereta, os passos firmes e graciosos. Os moradores de Azagaia eram mais brutos, possuíam sangue nos olhos e não desejavam tanto a paz como Ferus. Pareciam dispostos a qualquer coisa que envolvesse destruir com a família Amaral. Eu deveria sentir conforto, mas pensei se meu pai concordaria com a destruição de sua família. Meu avô era o único que poderia tirar minhas dúvidas, mas ele não estava ali e eu teria que compreender e aceitar. Pensei que ficaria de fora da reunião, então comecei a ajudar com água e comida para todos. Depois de alguns minutos, Alix veio me chamar e disse que eu deveria votar na decisão dos representantes.
Entrei na casa com a sensação de que nenhuma outra decisão seria tão importante em minha vida como aquela. A sala de visitas parecia um quartel general. Passei os olhos rapidamente pelos presentes e achei curioso que houvesse um representante para Poço das Almas.
- Quem é você? – perguntei imediatamente.
- Meu nome é Valdívio Gutierrez. Sou irmão de seu avô.
Lembrei-me do que vovô havia me falado sobre ele ser meu tutor um dia e compreendi que ele não poderia ficar de fora de uma reunião tão importante.
- Lílian – disse Ferus – Decidimos que você ficará sob minha guarda na aldeia durante os dois anos que faltam para sua maioridade. Nesse período tentaremos manter a ordem e acabar com essa divisão em Azagaia. Os representantes sairão amanhã cedo em direção a Cabeceira para resgatar seus avós e eu garanto que só voltarão com os dois. Provavelmente, Silvestre e Maurícia se juntarão a nós na aldeia. Isso é tudo o que precisa saber agora. Tudo bem pra você?
- E adiantaria dizer que não? – falei.
- Não. Mas se você tiver uma sugestão melhor nós teremos prazer em ouvi-la.
Acenei com a cabeça negativamente e minha boca estava amarga ao ter de admitir isso.
- Foi o que pensei – Ferus continuou. Valdívio, pode explicar seu plano agora.
Então meu tio avô abriu sobre a mesma mesa que havia servido de maca para Felipe algumas horas antes um rolo de papel que eu pude identificar como um mapa de Azagaia. Acima dele, em letras garrafais, estava escrito: Ataque ao flanco do rei. Valdívio explicou que se tratava de um plano simples, porém audacioso.
- Faremos um cerco à Cabeceira de três dias. Em cada um deles Constantino pensará que um de nossos homens entrou na cidade para tentar capturar Silvestre e a esposa sem obter sucesso. Depois disso, pediremos uma audiência e retiraremos a tropa dos arredores da cidade. Enquanto os Amaral estiverem reunidos conosco, alguns de nossos homens entrarão na cidade disfarçados de moradores e resgatarão meu irmão e minha cunhada. Vocês devem estar se perguntando como tenho certeza que não morreremos, como farei Constantino pensar que tentamos incursões que não acontecerão e como colocaremos homens entre os do povo sem chamar atenção. Essa é a parte interessante: Heitor Amaral está conosco. Ele entregará a família em troca da garantia de que será poupado.




XX – Não se engane: nada é eterno.



A chuva caía fina sobre meu rosto e braços. Como pequenos beliscões de fadas brincalhonas. As crianças corriam pela aldeia de uma tenda à outra desafiando as mães, que conversavam e preparavam a comida alheias às algazarras dos pequenos. Bastava que uma delas percebesse a bagunça que faziam os filhos para que todos fossem persuadidos a um comportamento aceitável por meio de puxões de orelha e cabelos. A gritaria era inevitável nessas horas. Os homens, por sua vez, não se intrometiam na educação dada aos filhos. Eles eram da mãe até a hora de passar pela cerimônia de ingresso na vida adulta. A maioridade dos planicianos era aos treze anos. A partir dessa idade as funções na tribo eram definidas e o casamento arranjado. Como a maioria era descendente de Ferus, os casamentos aconteciam entre os planicianos e os moradores das cidades vizinhas à Floresta Descomunal. Depois que os noivos eram escolhidos havia um período de noivado que durava três anos ou mais. Depois desse tempo, o casamento se realizava na aldeia com as bênçãos de Ferus. As planicianas acompanhavam seus maridos para as cidades deles e isso fazia com que o povo da Floresta Descomunal possuísse uma grande rede de colaboradoras, espiãs e agentes secretas em toda a região. Foi essa rede que permitiu que as cidades se unissem para tirar meu tio Constantino da liderança de Azagaia. As estrangeiras que se casavam com os planicianos perdiam completamente o contato com seus parentes. Era uma medida de segurança, com toda certeza. Ferus sabia estabelecer regras eficazes para a perpetuação de sua família.
Depois que a chuva deu uma trégua os meninos foram se lavar no rio. Acompanhei com os olhos o grupo de garotos se distanciando com Trevo atrás como se pertencesse a eles, mas alguma coisa desviou minha atenção. Um movimento repentino fez com que as mulheres se levantassem juntas e compactas como uma formação romana de defesa. Mas, ao invés de se defender, levantaram-se para socorrer. Gaudart chegava de sua incursão na Ilha do Véu. Corri em direção ao tumulto, as pernas tremendo, o corpo formigando. Ele foi acomodado no chão mesmo. Estava um pouco machucado, mas bastante abatido.
- Tragam ervas! Rápido! – disse Daudana. Era uma das esposas de Ferus. A mãe de Gaudart.
- O que está acontecendo com ele? – perguntei.
- Foi envenenado. – respondeu Mariart.
A movimentação na aldeia foi crescendo até se tornar uma massa única de enfermeiros. Tanto alvoroço tirou minha mãe da tenda em que estava vivendo desde que viemos para a aldeia. Até havia me esquecido que ela estava ali conosco. Não saía para nada, quase nem comia. Odiava estar ali e pertencer àquela história. Curiosamente, os acontecimentos recentes nos afastaram um pouco. Acho que não sabíamos como conversar diante de tantas novidades. Falaríamos de meu pai? De meus avós? Seria remexer em feridas ainda muito abertas. Feridas que causavam muita dor. 
Gaudart estava perdido. O veneno já havia entrado em seu sistema circulatório e era questão de tempo até que a hora dele chegasse. Parecia que a temporada de perdas havia sido aberta. Para cada rosto que eu olhava podia enxergar dor e tristeza. Aquilo já estava me fazendo desejar deixar de ser quem eu sou. Queria estar em outro lugar, ser outra pessoa, viver em companhia de outra gente. Queria voltar para Cabeceira e continuar sendo aquela menina que gostava de sorvete de jabuticaba. Infelizmente isso não era possível, não podíamos voltar ao passado e mudá-lo para que atendesse aos nossos desejos. Também não podíamos fazer nada por Gaudart, mas ele ainda podia fazer por nós e por ele mesmo. Depois que se despediu de todos os familiares e amigos pediu para ficar a sós comigo. Estava bem debilitado. Havia sangue saindo de seus poros, seu corpo queimava, os olhos estavam saltados. Abaixei-me em sua direção e coloquei minha orelha bem perto de sua boca a tempo de ouvi-lo sussurrar: - Vá até Ori. Ele saberá nos ajudar.

Aquela declaração me confundiu. Como Ori poderia nos ajudar? Ele era inimigo, havia colaborado na morte de meu pai e, provavelmente, estava apoiando meu tio na tentativa de golpe ao poder em Azagaia. Por outro lado, eu sabia que poderia confiar em Gaudart. A não ser que o veneno tivesse alterado sua noção de realidade. Não seria impossível. Minha cabeça girou e eu pensei que fosse desmaiar. Olhei mais uma vez para Gaudart buscando respostas mais completas para minhas dúvidas recentes, mas ele estava partindo. Uma dor estranha cortou meu peito como se algo abrisse caminho em direção à minha garganta. Tentei devolver a dor para o lugar de onde havia saído, mas foi inútil. Um grito horrendo saiu de dentro de mim, misturado às lágrimas e ao gosto de sal na boca. Chorei compulsivamente. Nunca tinha visto a vida escapar dos olhos de uma pessoa até aquele momento. Gostaria de nunca ter visto. Gostaria ainda mais de nunca precisar ver novamente, mas a vida não é um texto que escrevemos sozinhos. Saí da tenda de Gaudart e deixei-o por conta de seus familiares. Um ódio ainda maior tomou conta de mim e eu decidi naquele exato momento que não deixaria ninguém me impedir de ver Daniel e tentar esclarecer quem ele realmente era, o que ele pretendia.

O enterro de Gaudart aconteceu no dia seguinte, debaixo de uma das mais fortes chuvas que eu já havia testemunhado na vida. Uma coisa me chamou bastante a atenção. Os planicianos enterram seus parentes com todos os seus pertences, incluindo a tenda, roupas, armas, tudo mesmo. E seu filho mais velho acrescenta ao final do primeiro nome a inicial de seu pai. Tarol agora se chamaria Tarolg. Simples assim. Pensei em como meu avô se chamaria caso Ferus morresse. Silvestref? Então me lembrei que Silvestre deveria ser um nome adotado pelos Gutierrez. Claro! Silvestre: o que veio da selva. Como não pensei nisso antes? Qual seria o verdadeiro nome do meu avô? Ouvi alguém chamar meu nome atrás de mim e me virei. Iliones se aproximou e disse:
- Ferus te chama. Os homens estão partindo para resgatar seu avô.
Fui até a tenda de Ferus com o coração aos pulos. Isso daria certo? Tinha que dar. Sei que parece egoísta o que pensei naquele instante, mas não me sentia pronta para perder mais ninguém. De longe pude distinguir Valdívio e os guerreiros que não eram planicianos reunidos com Ferus. Eram poucos, alguns representantes. Provavelmente os outros estariam esperando ali perto. A aldeia ficaria vazia sem os guerreiros e os voluntários. Pensei no quanto seria oportuno para escapar da vigilância sobre mim e fazer uma visitinha surpresa a Daniel. Ao me aproximar, Valdívio falou comigo o que queria:
- Lílian, precisamos que você escreva uma carta se comprometendo a fazer uma troca entre você e seus avós. Ela será entregue a seu tio como parte de uma negociação que será falsa, claro. Escreva que também exige o corpo de seu pai. Isso dará mais veracidade à carta.
- Mas vocês não resgatarão meu pai? – perguntei.
- Não há a menor possibilidade, menina! Pense! Vamos invadir Cabeceira e resgatar seus avós. Como poderíamos ainda desenterrar seu pai? Nem sabemos onde ele está enterrado. E, pelo tempo que já se passou isso não seria muito agradável.
Confesso que fiquei um pouco decepcionada, mas compreendi que seria impossível mesmo.
- Você tem razão. Desculpe-me, foi uma esperança idiota.
- Nenhuma esperança é idiota, Lílian. – Alix tentou me consolar.
- Bem, escreverei a carta em poucos minutos. Aguardem.
Fui até minha tenda e escrevi o que eu faria realmente se disso dependesse a liberdade de meus avós. Algo me dizia que eles nunca cumpririam com a parte deles caso houvesse um acordo. Só por isso não insisti em tentar uma troca, apesar de saber que Ferus jamais aceitaria. Entreguei a carta e me despedi dos planicianos e de Valdívio. Alix deixou um colar comigo. Disse que me protegeria.
- Acho que você precisará de proteção por esses dias. – falou.
- Você acha que atacarão a aldeia? – perguntei.
- Não sei. Por enquanto é só um pressentimento. Cuide-se!
- Pode deixar.
Os homens foram embora e a aldeia mergulhou em um silêncio aterrador aquela noite.

**************************************
Felipe havia sido transportado para a aldeia ainda muito abatido. Felizmente, as mulheres cuidaram dele com suas ervas e sabedoria milenar. Fizeram por um estranho o que não puderam fazer por Gaudart. Em pouco tempo ele já podia se sentar em frente a sua tenda e observar o movimento das crianças e mulheres que mantinham o lugar funcionando com suas tarefas. Estava hospedado com Uriel, um dos filhos mais novos de Ferus. Com a ausência de seu anfitrião, que fora resgatar meus avós, Felipe sentia-se mais sozinho e eu e Sara passamos a fazer companhia a ele. No dia seguinte à partida dos rapazes, contei de minha necessidade de encontrar Daniel e descobrir o que Gaudart pretendia me dizer com a revelação de que eu deveria confiar nele. Felipe ouviu tudo o que eu tinha para falar e teve uma ideia que poderia resolver meus problemas. Disse que Cabeceira e a Ilha do Véu tinham estabelecido um comércio promissor nos últimos tempos. Seu pai mesmo havia contado a ele que Cabeceira estava exportando alimentos e animais em troca de mão-de-obra barata e alguns acordos vantajosos para ambos os lados. Todas as manhãs partiam navios de Cabeceira para a ilha e um dos comandantes era um antigo amigo de meu avô e de Orestes. Com certeza ele não se negaria a levar uma carta ao rei Ori. O problema seria chegar à Cabeceira.
- Eu tive uma ideia! Mas é muito arriscada. – falei.
- No que você pensou? – perguntou Felipe.
Sara nos ouvia em silêncio e com uma cara que denunciava seu pavor ao que quer que fosse que estivéssemos planejando.
- Ulisses!
- Você não está pensando...
- Claro que sim! Pense. Ulisses é um cavalo encantado. Ele vai a qualquer lugar para o qual for designado e cumpre suas missões com perfeição! Poderia me levar até Cabeceira sem problemas. A não ser o fato de que demoraria dois dias pelo menos. Se Ferus perceber poderá me alcançar no caminho.
- E se você usar uma rota alternativa?
- Eu levaria dias ou meses para chegar lá. Você sabe como é Azagaia.
- Verdade.
- Temos que ganhar tempo. Ao menos uma noite de vantagem.
- Já sei! – disse Sara, nos deixando surpresos que ainda estivesse por ali.
- Qual a sua ideia, irmãzinha? – Felipe disse com certo ar de deboche.
- Fique com essa cara de bobo que eu não contarei nada.
- Pelo amor de Deus!- interrompi os irmãos – Vocês podem deixar as implicâncias fraternas para depois?! Fale seu plano, Sara.
- Bem, Ferus não sabe a data de meu aniversário, não é mesmo?!
- O que seu aniversário...?
- Quer me ouvir, Felipe?
- Cale a boca, Felipe! Continue Sara.
- Como eu estava dizendo... Podíamos dizer a ele que amanhã é meu aniversário e que eu gostaria de comemorar com vocês e Trevo numa noite na cabana da floresta.
- Que ideia sensacional! – gritei eufórica.
- Só tem um contratempo. Você perderá um tempo voltando aqui para pegar Ulisses.
- Não será preciso, querida irmã. Já vi que você tem uma ideia boa por século! É só Lílian ordenar que Ulisses nos espere na cabana.
- Vocês são os melhores amigos que uma garota pode ter!

Procurei Ferus conforme havia combinado com Sara e Felipe. Resolvi chegar devagar e sondar o espírito dele naquela manhã. Pedi ao menino para me anunciar e me surpreendi quando ele disse que eu poderia entrar, pois Ferus me esperava. Quase não tive coragem de falar sobre a noite na cabana, parecia que ele poderia ler meus pensamentos.
- Bom dia, Ferus!
- Olá, Lílian. Não sei te dizer se é um bom dia. Ainda não tive notícias de Valdívio.
- Isso também me aflige um pouco. Mas tenho certeza de que tudo sairá conforme o planejado. Afinal de contas, as mulheres da aldeia me disseram que Alix nunca saiu de uma batalha sem a vitória nas mãos.
- É verdade. Alix e eu... Meus filhos são um orgulho para mim.
- Falando em seus filhos... Tenho uma pergunta a te fazer.
- Faça. Já te conheço o suficiente para saber que você sempre tem perguntas. Não é exatamente uma novidade.
- Hum... Que bom que está de bom humor. Depois da pergunta tenho um pedido.
Quando falei “pedido” as sobrancelhas dele se arquearam discretamente.
- Bem, veremos o que poderei fazer. Vamos à pergunta!
- Qual o verdadeiro nome do meu avô? – mandei de um só golpe.
- Só isso?! Que tipo de pergunta é essa?
- Qual é Ferus?
- Mayon. Por quê?
Quando ele citou o nome um dispositivo foi acionado em meu cérebro, mas preferi deixar para pensar nisso depois.
- Nada. Só curiosidade. Posso fazer o pedido?
- Faça.
- Amanhã é aniversário de Sara e gostaríamos de comemorar do nosso jeito. Ela perdeu o pai e quase perdeu o irmão...
- Não precisa apelar para meus sentimentos. Você sabe que não sou de piedades.
- Acho que é sim! Mas o que queremos é passar uma noite na cabana: eu, Sara, Felipe e Trevo. Queremos contar histórias de terror e morrer de medo, depois rir do nosso medo pela manhã. Essas coisas.
- Parece irresistível!
- Não seja ranzinza. Não temos duzentos anos e achamos a vida um tédio!
- Não acho a vida um tédio. Mas tudo bem. Vocês têm a minha permissão desde que voltem amanhã pela manhã.
- Mas não precisamos acordar muito cedo, não é?!
- Nem muito tarde. Agora vá! Tenho umas coisas a fazer. 
- Outra coisa, quando cheguei aqui o rapaz me disse para entrar porque você me aguardava. O que queria?

- Ah, sim. Já ia me esquecendo. O que Gaudart te disse antes de morrer?
Pensei em dizer a verdade, mas naquele momento isso poderia denunciar o lugar para onde eu iria. Então resolvi omitir a informação sobre confiar em Daniel.
- Ele queria falar alguma coisa sobre o tempo que passou na Ilha do Véu, mas estava com muita dificuldade e não conseguiu dizer nada.
- Entendo. Você não me esconderia caso ele tivesse dito algo, não é?
- Porque eu faria uma coisa dessas?
- Desculpe. Acostumei-me a desconfiar das pessoas. Obrigado. Pode ir agora.
Fiquei feliz com a permissão de Ferus. Pensei que seria muito mais difícil. Estranho. De qualquer forma, a revelação do nome do meu avô me deixou um pouco anestesiada e não pensei em outra coisa pelo resto do dia. Tanto foi verdade que só me lembrei de falar sobre a decisão de Ferus a Sara e Felipe depois do almoço. Organizamos tudo e repassamos o plano diversas vezes. Fui até o estábulo e sussurrei a Ulisses que me encontrasse na cabana dali a duas horas. Já tinha ouvido falar que cavalos são inteligentes, mas Ulisses era fenomenal. Peguei minhas coisas e uma provisão para a viagem e fui até a tenda de meus amigos. Dali a pouco eu estaria na estrada, rumo à Cabeceira do Rio Seco, no meio de uma batalha para a liderança de Azagaia onde meu tio queria minha cabeça para estabelecer seu governo. Se Ferus me pegasse no meio do caminho eu estaria perdida. Precisava que tudo saísse conforme havia planejado. Antes de sair, porém, passei na tenda que minha mãe estava hospedada para vê-la uma última vez antes de me aventurar numa travessia por Azagaia e os Mares Bravios até a Ilha de meus prováveis inimigos. Mesmo em companhia de Ulisses era bem arriscado o que eu estava prestes a fazer. Entrei devagar na tenda. Minha mãe dormia e eu pude ver uma menina escapulindo de seu rosto. Fazia tempo que eu não flagrava minha mãe feliz. Com o que estaria sonhando? Tive um ímpeto de ir beijá-la e enroscar meus dedos em seus cabelos até dormir, mas a força que me afastaria dela era poderosa. Era minha busca por mim mesma. 
Menos de três horas depois de ter saído da aldeia eu estava na estrada, montada em Ulisses, rumo à Cabeceira do Rio Seco. Logo no início da viagem percebi que não seria fácil passar mais de um dia andando por montanhas, atravessando corredeiras e tentando não ser capturada pelos planicianos ou cabeceirenses. Se você é o tipo de pessoa que aceita conselhos, ouça-me! Se colocar em perigo não é uma atitude muito inteligente. Garanta que seja pelos motivos mais justos possíveis. Algumas vezes, na vida, nós não podemos ficar sem respostas. Compreendo que seja assim. Mas certifique-se que sejam respostas fundamentais, caso contrário, não se aventure por florestas e montanhas com um cavalo roubado de um homem de mais de duzentos anos.

Minha sorte é que Ulisses é bem resistente. Seu nome não foi dado por acaso. Assim como o herói grego, ele possuiu uma capacidade muito grande de vencer os obstáculos impostos. Cavalgou durante uma noite inteira, colocando-me numa distância relativamente segura da aldeia. Apesar de termos parado para dormir e comer algumas vezes, mais por minha causa que por ele, chegamos a Cabeceira na tarde do terceiro dia, o que é um ótimo tempo para um cavalo e uma menina. Fomos pela banda oeste da cidade, na fronteira entre Cabeceira e Tornados. Passamos despercebidos porque eu estava vestida com umas roupas de Felipe. Achamos que seria mais seguro. Em pouco mais de meia hora eu estava no porto. Despedi-me de Ulisses quase não acreditando que havíamos conseguido.
- Agora volte para a aldeia, meu amigo. E cuide-se! – sussurrei ao seu ouvido.
Em nenhum momento, no entanto, me ocorreu que Ulisses tivesse me obedecido muito prontamente e que isso deveria ser estranho.
O resto do caminho eu fiz a pé. Não estava longe. Em mais quinze minutos estava em frente ao navio Sereia de Cabeceira. Não era propriamente um navio, pelo menos não desses que nos levam a cruzeiros magníficos como os que eu já havia feito com meus pais. Era uma escuna de casco de madeira, dotada de dois mastros e um motor. Confesso que, nesse momento, pensei em fazer o caminho de volta e me contentar com minhas dúvidas. Mas, felizmente, sou dessas pessoas que, quando colocam algo na cabeça, não há nada que nos faça desistir. Procurei o homem com a descrição que Felipe havia feito: alto, magro, corpo largo e bem socado, com uma grande barba grisalha e três dedos faltando na mão esquerda. Tinha um aspecto assustador à primeira vista, mas os olhos eram doces.
- Sr. Nicolas Justino?
Ele olhou pra mim com um ar de estranhamento, não sei se por ver uma menina vestida de menino num porto cheio de homens rudes ou se por ouvir alguém se dirigir a ele por seu nome de batismo. Talvez fosse pelos dois motivos.
- Comandante Beluga, por favor.
- Que seja. Comandante Beluga, boa tarde.
- Boa tarde, menina?
- Oh, sim! Menina. Chamo-me Lílian e preciso de sua ajuda. Venho da parte de Silvestre Gutierrez e Orestes.
Ele apertou os olhos azuis e pequeninas rugas se formaram ao redor deles. Esperei que dissesse alguma coisa, mas ficou em silêncio. Continuei:
- Meu nome é Lílian Amaral.
Só aí ele abriu um sorriso e disse depois de respirar bem fundo:
- Então a senhorita não precisa me pedir nada. Qualquer coisa que deseje será uma ordem pra mim.
Fiquei bem mais tranquila depois dessa reação. O Comandante Beluga me convidou a entrar em sua embarcação e conversamos sobre o que eu precisava e como ele poderia me ajudar. Combinamos tudo o que deveríamos fazer nas próximas horas, para o caso de alguém vir em meu encalço. Eu ficaria na escuna e ele diria que estava com um ajudante. Isso era bem comum, principalmente depois das chuvas, quando as famílias perdiam tudo nas enchentes e mandavam seus filhos em busca de trabalho para reconstruir a vida arrastada pelas águas. Na manhã seguinte partiríamos para a Ilha do Véu e no fim da tarde eu estaria na terra de Ori Tirésias Amadeus III.
A experiência de estar por sua própria conta é interessante. Você só sabe do que é capaz quando precisa sobreviver e não está rodeada de proteção e carinho. Carreguei a escuna com o Comandante, pois ele achou mais seguro trabalharmos à noite e, quando deitei numa rede no dormitório da escuna, foi como se meu corpo tivesse sido chumbado ao tecido grosso e puído da cama suspensa. Dormi até as quatro da manhã, quando o comandante me acordou para seguirmos viagem.
Apesar do nome, Mares Bravios, as águas do oceano que separavam o continente da ilha não eram nem um pouco violentas. Esse nome era uma menção às guerras que já foram travadas em pleno mar. Foi uma viagem tranquila e chegamos antes do previsto. Quando terminamos de descarregar a embarcação, Beluga trouxe uma caixa de madeira enrolada em seda que depositou em minhas mãos enquanto dizia aos guardas que observavam o movimento dos trabalhadores do porto:
- Tenho uma encomenda para o magnífico rei e soberano Ori III. Ele pediu que fosse entregue com certa urgência. Enquanto termino de conferir a mercadoria vocês poderiam conduzir meu ajudante ao palácio?
Um dos guardas falou:
- Pode deixar conosco. Entregamos a ele assim que terminarmos nosso plantão.
- Infelizmente isso não será possível. – disse Beluga – O rei me ordenou que fosse entregue em mãos. Qualquer desobediência será considerada traição. Vocês não estariam desobedecendo a uma ordem do rei, não é mesmo?
Os guardas se entreolharam e um deles deu de ombros.
- Tudo bem. Eu levo o rapaz enquanto você fica aqui. - falou se dirigindo ao companheiro. E olhando para mim disse: - Mas só poderei ir até a porta do palácio. Lá entregarei você a outro guarda que o conduzirá à presença do rei.
Eu não disse nada. Peguei a caixa e a apertei contra meu peito. Beluga foi ao meu ouvido e disse:
- Não se preocupe, Ori está acostumado a me pedir encomendas. Achará que é algo que trouxe com atraso e te receberá. Mas não se demore. Temos que partir ainda essa noite.
- Ouça. Se eu não voltar em uma hora você deve partir e avisar a Ferus onde estou e o que me aconteceu.
- Tudo bem, menina. Mas volte. Será menos um trabalho para mim.
Concordei com a cabeça e dei um sorriso nervoso. Segui o guarda e em pouco tempo estava no interior do palácio dos antigos continentais, expulsos pelos planicianos e forasteiros da terra que tinha sido tão deles quanto é nossa hoje em dia. Levaram-me até um salão riquíssimo, com um pé direito duplo e paredes forradas de tecido dourado com desenhos de pássaros e folhagens. Permaneci de pé por uns quinze minutos, ao fim dos quais, Daniel, ou melhor, o rei Ori, surgiu na sala trazendo o sol com ele. Tentei pensar na possibilidade dele ser culpado da morte de meu pai para odiá-lo e acalmar meu coração que tamborilava descompassadamente, mas foi em vão. Quando ele se aproximou seus olhos ganharam uma expressão de surpresa e alegria ao mesmo tempo. Segurou um sorriso no meio do caminho e ordenou que nos deixassem a sós. Eu estava diante do menino que conheci em Cabeceira novamente.
- Salve o rei! – falei zombeteiramente.
- Pensei que nunca mais nos veríamos. – ele disse.
- Não se engane: nada é eterno. Nunca mais é um tempo que não existe em Azagaia.
Sorrimos e nos abraçamos. Agora o tempo corria contra nós. Precisávamos alcançá-lo.



XXI – Resistência.

Estou prestes a lutar a maior batalha da minha vida até agora e tudo o que me passa pela cabeça são as lembranças do que me trouxe até aqui. Se ao menos ele estivesse ao meu lado...
Os guerreiros que me acompanham no campo de batalha já estão há dois anos nessa guerra e não demonstram o menor sinal de que pretendem desistir, mas eu confesso que daqui de cima, olhando o acampamento e contabilizando as famílias que estão privadas de seus pais, maridos e filhos, minha vontade é a de voltar agora para casa, abraçar Trevo e dormir até que tudo tenha acabado. Só que meus problemas não irão desaparecer se eu fugir. São do tipo que precisam ser enfrentados. Estou aqui, no olho do furacão, e não tenho a menor ideia da minha capacidade de ir até o fim. Quanto tempo terei que aguentar? Se ao menos ele estivesse aqui!

- Não temos tempo para abraços e conversas esclarecedoras. Tenho que partir em menos de uma hora.
- Eu sei. Você já disse – ele falou em um tom de lamento tão sofrido que poderia ter me convencido a ficar se eu não tivesse outras responsabilidades.
- Preciso que me responda que participação você teve na morte do meu pai. Preciso ouvir de você.
- Nenhuma. As coisas aqui estão complicadas. A história é longa. Basta a você que eu diga...
- Claro que basta! Não diga mais nada. Desculpe-me. Eu nunca deveria ter desconfiado de você. No fundo eu nunca desconfiei.
- Acha que não sei disso? Você não estaria aqui se pensasse que eu matei seu pai.
- Na verdade estou aqui porque Gaudart me disse que eu deveria confiar em você.
- Hum, isso merece um castigo. Prometo pensar em algo no futuro.
- Escute! Azagaia está em guerra e acredito que você não fosse apoiar meu tio se a decisão dependesse de você. Correto?
- Corretíssimo.
- Então o que está havendo aqui? Por que você não toma suas próprias decisões? Que tipo de rei é você?
- O tipo de rei que possui um irmão que pretende me matar a qualquer momento.
- Davi?
- Não. Um filho do meu pai. Não posso te contar agora. Tomaria todo o nosso tempo.
- Quais as chances dele conseguir o que deseja? – perguntei.
- Já escapei de dois atentados. Desconfio que ele esteja por trás da morte do meu pai. As coisas não estão nada fáceis aqui.
- E se você se refugiasse em algum lugar? Onde estão sua mãe e Davi?
- Eles estão seguros. Quer dizer... Estão em Cabeceira. Incógnitos. Mudaram de nome e vivem modestamente numa aldeia perto da Terra das Rotas Diagonais. O que você sugere que eu faça? Onde eu poderia me refugiar. Depois da coroação meu rosto ficou conhecido por todos. Onde quer que eu vá serei reconhecido e capturado.
- Não na Floresta Descomunal.
Daniel ficou mudo por um tempo. Depois que recobrou o raciocínio perguntou:
- Você acredita que Ferus me daria abrigo?
- Tenho certeza. Ele pensa que nós podemos ajudá-lo de certa forma. Seria proteger a si mesmo cuidar da vida do único homem que pode salvá-lo de uma maldição.
- Como assim?
- Explico outra hora. Agora tenho que ir. Mas como faremos para resolver seu problema? Você conseguiria fugir daqui sozinho?
- Faça o seguinte: peça a Beluga para me encontrar no lado oriental do Monte Nepo daqui a dois dias, no pôr-do-sol. Só não poderei ir para Cabeceira. Seria muito perigoso. Seu tio e meu irmão são aliados.
- Vá para a casa da fazenda em Poço das Almas. Não há ninguém lá. Passe a noite escondido em um lugar seguro. Tem uma passagem no escritório do meu avô que você poderá usar. Deixo as orientações com Beluga. No dia seguinte darei um jeito de te buscar com Ferus. Assegure-se de que ficará bem até lá.
- Ficarei. – ele disse, enquanto abria aquele sorriso perfeito que eu conhecia tão bem.
Um guarda foi chamado e me levou até uma das saídas do castelo. Corri o mais que pude para chegar ao barco a tempo de partir com Beluga. Quando vi o comandante parado no cais, de pé com uns marinheiros, certamente jogando conversa fora, senti um alívio parecido com a volta para casa depois de uma longa viagem.
Ao me aproximar do capitão eu disse:
- Quase não cheguei a tempo.
- Eu jamais partiria sem a filha de um dos meus melhores amigos.
- Você conhecia meu pai?
- Menina, quem não conhecia seu pai? Temos que ir. Conto no caminho umas histórias sobre Camilo. Pode ser?
- Claro! Eu amo ouvir histórias! Sobre meu pai seria perfeito.


Entramos na embarcação e partimos. Por um bom tempo, Beluga contou algumas das muitas aventuras de Camilo Amaral que ele viu ou ouviu de conhecidos. Aquelas saídas noturnas de meu pai faziam mais sentido agora. Minha mãe chorando também. Ela temia por ele, por mim e por ela mesma. Pouco antes de chegarmos à terra firme, Beluga me fez uma pergunta que eu não queria ouvir.
- Menina, já pensou na reação de Ferus quando você voltar à Floresta Descomunal? Ele deve estar bem aborrecido com sua fuga.
Meus dedos começaram a tremer e esfreguei as mãos para tentar diminuir o desconforto.
- Está com frio? – ele me perguntou.
- Pra te falar a verdade estou sim.
- Lá embaixo tenho cobertores. Pegue um e suba. Deixarei você no litoral de Poço das Almas em alguns minutos. Como fará para chegar à floresta?
- Não se preocupe. Darei um jeito. O lugar onde vai me deixar é uns cinco quilômetros de distância da fazenda do meu avô. Posso ficar lá até amanhã pela manhã e depois entrar na floresta. Achar o caminho para a aldeia é que será complicado.
- E porque você não usa seu colar?
- Não entendi.
- Sou um contrabandista, garota. Conheço os objetos mais intrigantes da história de Azagaia. Sei das relíquias e do que se fabrica atualmente. Posso conseguir quase todos eles no mercado informal. Garanto a você que o pingente que está usando é uma bússola planiciana. Vale o peso do seu corpo em ouro!
- E qual a função dela?
- Essa é boa! Quem quer que tenha te dado esse pingente sabia que você precisaria voltar para a aldeia. Ela te leva de volta pra lá. Não sei como, mas sei que leva qualquer pessoa para a aldeia esteja onde estiver. Nada pode acontecer a você enquanto não chegar ao seu destino, ou seja, a aldeia dos planicianos.
- Quem me deu isso foi um dos filhos de Ferus. Alix.
- Aquele safardana?! Me deve dois cutelos de prata. É um dos caras mais leais que conheço. Diga a ele que ainda quero os cutelos.
- Você realmente conhece todo mundo, não é?
- Todo mundo é muita gente, mas conheço as mais importantes.
- Você conhece meu tio Constantino?
- Sim. Sujeito intragável. Tome cuidado com ele. Mataria a própria mãe se ela não fosse muito mais esperta que ele.
- Eu a conheço. Achei muito chata.
- Chata? Ela era chata quando era criança. Aquela mulher é uma víbora! Eh, desculpe. Não queria falar mal da sua avó.
- Não se desculpe. Também acho tudo isso e muito mais dela.
- Bem, chegamos.
Quando olhei para frente reconheci o litoral de Poço das Almas. Uma parte pouco habitada e, justamente por isso, ainda muito bonita. Havia uma vila de pescadores com festas anuais maravilhosas ali perto. Não me lembrava bem aonde. Desci da escuna e Beluga me deu uma bolsa de pano com dois pães e uma garrafa de água.
- Cuide-se, menina. – falou.
- Pode deixar. - respondi – Obrigada por tudo. Quando essa loucura toda acabar farei outra visita. E não se esqueça de trazer Daniel daqui a dois dias.
- Não esquecerei. E quanto à visita, eu cobrarei!
Comecei a caminhar em direção à casa da fazenda. Em pouco mais de uma hora eu estaria na casa dos meus avós. Pensei em pernoitar lá, mas estava curiosa sobre a bússola planiciana e resolvi que tentaria usá-la ainda hoje. Apressei o passo e tentei pensar na desculpa que daria a Ferus quando o encontrasse novamente. Torci para que Ulisses tivesse encontrado o caminho de volta. Se algo tivesse acontecido ao cavalo, nem sei. Nem percebi quando passei pelos estábulos em direção à entrada principal da casa. Passei direto. Também atravessei de uma vez a entrada de carvalhos e fui até o limite da fazenda com a floresta. Precisava descobrir o que aquele pingente poderia fazer por mim.

Obviamente que eu esperava que algo interessante acontecesse, mas nada do que eu tinha pensado poderia me preparar para o que viria. Assim que pus os pés no limite entre os jacarandás e a floresta, um vento repentino sacudiu e agitou a folhagem diante de mim abrindo uma trilha. Pisquei os olhos duas vezes, esfreguei-os outras tantas, e, depois de me certificar que não estava tendo alucinações, coloquei cuidadosamente um pé diante do outro, até que a floresta se fechasse nas minhas costas. Agora, ou eu iria adiante, ou teria que ficar onde estava até que alguém me encontrasse. O que poderia significar permanecer ali para sempre. Caminhei por um tempo que me pareceu curtíssimo, mas amanhecia quando avistei a aldeia. De pé na frente da própria tenda estava Ferus. Com certeza ele me aguardava. Senti um calafrio. Antes, porém, de pensar em me explicar, ouvi uma voz grave e muito familiar me chamar no lado oposto ao de Ferus.
- Vovô?!
Corri na direção do meu avô o mais rápido que pude. Lembrei-me de outra corrida há alguns anos. Uma corrida em que eu também buscava o abraço de um homem muito importante para mim. Subitamente me veio à memória meu pai machucado, deitado na areia da praia na Ilha do Véu. Cheguei chorando ao colo do meu avô.
- Ôôô... Mas que choro é esse, minha flor? Não estou aqui?
- E a vovó? – perguntei.
- Está na tenda com sua mãe. Menina, você está encrencada. Saiba que nem eu poderei livrar você da sua mãe dessa vez.
- Todos estão bem?
- Marac está ferido, mas passa bem.
- E Alix?
- Esse nunca se machuca. Não precisa se preocupar com ele.
Dei um meio sorriso pensando no que vovô falou sobre Alix. Senti orgulho. Pensei em falar logo sobre a vinda de Daniel, mas precisava enfrentar mamãe primeiro. Entrei na tenda e ela me olhou aliviada. Isso não era garantia nenhuma de que minhas orelhas estavam a salvo de uns puxões, mas é sempre bom saber que o amor é maior que a raiva.
- Mãe? – tentei argumentar.
- Qualquer palavra sua só me fará desejar um castigo maior. Você enlouqueceu menina?! Quer me matar? Seu pai morre, seu avô é sequestrado e você resolve desaparecer por dias? Onde você se meteu? O que fez durante esse tempo? Como se alimentou? Por onde andou? Com quem?
- Mãe, eu pensei...
- Quem te deu autorização para pensar qualquer coisa...
- Fui eu. – disse Ferus. Olhei para ele e pensei que, se não fosse sua interrupção, mamãe poderia fazer perguntas por dias.
- Eu não sabia que Lílian tinha recebido uma missão. – minha mãe gaguejou.
- Foi uma pequena missão. Nada de importante.
- Mas, sendo assim, por que você não me disse nada? Por que me deixar preocupada?
- Eu disse que não deveria se preocupar. Acho melhor se acostumar, Marina. Sua filha ainda passará muito tempo longe de você em perigos muito maiores que uma pequena viagem.
Olhei para as personagens daquele diálogo sem saber se ria ou preparava o couro para umas bordoadas. Finalmente, Ferus me pediu para segui-lo até sua tenda. Se eu deveria enfrentar um dos dois, que fosse o que não poderia me bater.
- Por que você me defendeu da minha mãe?
- Eu não te defendi da sua mãe. Simplesmente permiti que você partisse sabendo para onde iria e o que estava buscando. Se eu permiti, a responsabilidade também é minha.
- Como você soube?
- Quando perguntei o que Gaudart tinha dito a você antes de morrer eu sabia que você estava mentindo ao me responder que não havia dado tempo. Ele ainda falou com a mulher e os filhos depois que você saiu. Comentei com Alix sobre minhas desconfianças e ele resolveu te dar a bússola planiciana. Na verdade, não pensamos que você saberia usá-la para retornar, mas ela também serve de localizador para quem a usa. Sabíamos o tempo todo onde você estava e imaginei que tivesse partido em busca de uma resposta qualquer de Ori.
- E por que vocês não tentaram me impedir?
- Porque o nosso caminho, Lílian, ninguém pode fazer no nosso lugar. Ori é o teu destino. Nada do que eu fizer poderá mudar isso. Além do mais, a bússola te protegeria até que você estivesse de volta. 
- Minha mãe nunca se acostumará com isso. Tenho certeza.

- Acostumada ou não ela terá que aceitar. Nem eu poderia te impedir de viver o que está preparado para você.
- Falando em futuro, tenho um pedido a fazer que envolve um assunto de seu interesse.
- E o que seria?
Contei a Ferus sobre os atentados a Ori (não conseguia me acostumar a esse nome), sobre nosso encontro e o que decidimos sobre sua fuga. Pedi que mandasse alguém buscá-lo na casa de vovô.
- Ele pode ficar aqui, não é? – perguntei.
- Claro. – Ferus respondeu com um ar de preocupação.
- Alguma coisa errada?
- Não exatamente. Preciso que me prometa uma coisa.
- Hum?
- Você retomará seu treinamento e a presença de Ori não será um empecilho para sua preparação.
- Prometo. Isso não será um problema.
- Combinados?
- Combinados.
Os dois dias até a chegada de Ori foram angustiantes. Pensei que seria muita sorte se conseguisse fugir e tive medo dele ser capturado. Tive pesadelos com meu pai e Ori. Sonhei que eles eram a mesma pessoa e que eu tinha perdido os dois na praia da Ilha do Véu. Sonhei com Gaudart me falando que ele estava enganado e que Ori não era de confiança. Depois sonhei com o mar de vidro e que eu observava enquanto a minha cópia se afogava desesperadamente. Acordei em prantos. Chorei tanto que Alix escutou e veio ver o que tinha acontecido.
- Tudo bem com você? – ele disse.
- Não sei dizer. Estou sentindo um aperto no peito. Um medo de que as coisas não saiam como imaginei.
- E quem disse que nossa imaginação é a melhor resposta?
- Agora você me pegou. Sempre pensei que meus desejos fossem o melhor pra mim. Eu não desejaria algo de ruim para mim mesma.
- O fato de você desejar algo de bom para si não garante que seja o melhor. Nossa visão é muito limitada, Lílian. Falando nisso, você ama mesmo esse menino, Ori?
- Sim. Com todas as minhas forças. Quando o vi pela primeira vez percebi que minha vida não seria mais interessante sem ele ao meu lado. Tentei rejeitá-lo porque ele parecia muito arrogante, mas estava enganada. É a pessoa mais doce que já conheci.
- Não parece.
- Eu sei! Não é louco? Ele parece não se importar, mas é o oposto. Isso me lembra um pouco você.
- Eu?
- Exato! Engraçado que eu só notei isso agora.
- Não me pareço em nada com um continental, Lilian! Não há nada pior para um planiciano que essa comparação. Você tem cada coisa.
- Não fique zangado comigo! Além do mais, não há motivos para tanto. Ele é um cara muito legal. Vocês serão amigos.
- Bem, numa coisa nós somos iguais. Nós dois gostamos muito de você. 
A maneira como Alix fez essa declaração, seu tom de voz e a forma como me olhava sinalizaram que eu estava em um terreno perigoso. Qualquer palavra errada naquele momento poderia magoá-lo ou incentivá-lo. Não sabia o que fazer. Escolhi o silêncio.

- Não se preocupe Lílian, – Alix continuou – entendi quando você disse que o ama. Na verdade, nem eu sei exatamente o que sinto. Só sei que sinto um desejo enorme de te proteger e garantir que esteja bem. Foi isso que quis dizer quando falei que gosto de você.
- Fico aliviada, Alix. Também te adoro e não quero que se magoe. Além do mais, somos parentes e você já tem sua família.
- Isso não significa muita coisa aqui, Lílian. Não se esqueça de que posso ter quantas esposas quiser e, entre os planicianos, só não podemos nos casar com irmãs, pais, filhos e as mulheres dos outros.
Olhei para Alix um pouco assustada e ele riu. Isso acabou com o clima constrangedor e continuamos a conversar sobre os planos para o futuro.
- E quando voltaremos com os treinos, menina?
- De acordo com Ferus eu já deveria ter voltado. Podemos começar hoje se quiser.
- Hoje não posso. Tenho que fazer uma pequena viagem. Estarei de volta em três dias.
- Para onde vai?
Alix me olhou diretamente e falou:
- Segredo.
Fiz uma cara de insatisfeita na hora. Todos na aldeia sabiam de minha objeção a segredos. Sou uma das pessoas mais curiosas que existe em Azagaia. Só perco para Flora.
- Bem, começaremos quando voltar. Se você voltar.
- É claro que voltarei! Não sei como você ainda tem dúvidas com relação a isso.
- Outro dos mistérios dos planicianos. Por que dizem que você sempre volta ileso das batalhas e missões que participa? E não me diga que é um segredo.
- Não é um segredo. É mais uma característica. Nasci no bicentenário de meu pai. Todos os filhos de Ferus nascidos nesse ano são invulneráveis.
- Por quê?!
- Não sabemos. Só percebemos com o passar dos anos. Talvez isso aconteça de tempos em tempos.
- Isso significa que você também é imortal?
- Infelizmente não. Há uma brecha.
- E você não vai me contar qual é?
Alix deu um sorriso e saiu. Odeio essa mania das pessoas de me esconder as coisas mais importantes.
Enquanto Alix se afastava, Felipe veio em minha direção e disse que havia uma movimentação estranha na tenda de Ferus. Imaginei que pudesse ser Daniel e fui para lá imediatamente. De longe pude notar que  alguns dos rapazes que Ferus mandou para a fazenda do meu avô esperavam para ser atendidos por ele. Não vi Daniel. Continuei andando um pouco mais desanimada por não ver quem eu esperava. Ainda assim eu queria notícias. Daniel já deveria ter chegado à fazenda e a presença dos soldados de Ferus não poderiam indicar outra coisa. Meu coração acelerou e minha garganta ficou seca. O que poderia ter acontecido?
- Onde está Daniel? – perguntei a Marac.
- Na fazenda. Viemos dar a notícia a Ferus.
- E porque ele não veio com vocês?
- Houve um imprevisto, Lílian. Ori sofreu uma emboscada e está ferido. Não se preocupe que tudo está sob controle. Viemos buscar Daudana para cuidar dele. Você também poderá ir. Ori pediu para vê-la.
Depois da palavra “ferido” eu não pude ouvir mais nada. Fiquei atônita. Pedi a Sara para pegar algumas roupas minhas e colocar numa mochila. Queria partir imediatamente.
- Se Ferus está autorizando minha partida sem questionamentos é sinal de que Daniel não está nada bem. Estou enganada?
- Ele está muito machucado, mas não é nada irreversível. Deixe de desespero e se comporte como a menina forte que eu sei que você é. Vamos?
- Espere um minuto. Preciso me despedir de minha mãe e dos meus avós.
- Estaremos esperando nos estábulos. Não demore.
Corri até a tenda de minha mãe e expliquei a ela rapidamente a situação, depois fui até meus avós e repeti as palavras que havia dito à mamãe. Vovó foi até uma pequena prateleira que servia de criado-mudo pegou uma chave e me acompanhou até a saída da tenda. Depositou a chave na minha mão e disse:
- Ao chegar à fazenda vá até meu quarto e arraste minha cama. Você encontrará uma alça de ferro no assoalho, puxe-a e encontrará uma pequena maleta. Pegue a maleta e abra com essa chave. Entregue a Daudana. Ela saberá o que fazer.
- O que há nessa maleta, vovó?
- São remédios, querida. Do tipo que Ori precisa agora. Vá.
Encontrei os rapazes onde havíamos combinado. Ulisses estava me esperando para ser montado. Guardei a chave dentro da blusa, bem perto do coração. Alguma coisa me dizia que a vida de Daniel corria perigo e eu não estava disposta a perder mais ninguém que eu amava. 
Chegamos rápido à fazenda. Estar em companhia das pessoas certas tem um valor inestimável. Com os planicianos qualquer distância se torna curta. Eles conhecem todos os segredos da região, os atalhos... Além do mais, a magia da floresta está a favor deles. São os filhos da natureza.

Apeei e corri até o quarto de vovó antes de qualquer outra coisa. Peguei a maleta no local indicado e procurei por Daudana. Indiquei a cozinha a pedido dela e subi as escadas pulando degraus para chegar o mais rápido possível ao quarto onde estava Ori. Quando me aproximei da porta diminuí os passos e respirei fundo. Tive medo. Estava certa de que minha história era perder pessoas que amo. Encarar a morte não é fácil, quando ela faz uma visita é natural que nos sintamos desprotegidos por um tempo. Tudo o que nos rodeia se torna frágil aos nossos olhos. Eu esperava a próxima passagem dela e sabia que seria com todos os que eu amava. Sabia que eu seria a última a ser levada. Como uma escolhida para assistir meu mundo desmoronar. O que mais me angustiava era ignorar quem seria a próxima vítima. Se Ori partisse agora, nada mais faria sentido pra mim. Não seria justo. Empurrei a porta do quarto devagar e olhei com cuidado. Primeiro a base da cama, as cobertas enrolando um par de pernas, o criado-mudo com itens de primeiros-socorros misturados a livros e uma jarra de água, depois as almofadas e travesseiros até que uma voz surgiu de dentro do quarto abafado:
- Você vai entrar ou não?!
Reconheci a voz dele e me lembro de ter sentido um alívio enorme. Se a disposição para me constranger ainda estava firme é porque a situação não poderia ser tão grave. Dei um golpe só no que restava da porta para abrir encostando-a a parede. Olhei para o centro da cama e a primeira coisa que pude notar foi o sorriso franco de dentes perfeitos de Ori. Ele estava bem. Segurei as lágrimas e fiz um gesto em sua direção, mas fui contida por Beluga. Só então notei a presença do comandante no quarto.
- Ele ainda não pode receber tanto carinho, Lílian. – falou o comandante.
- O que foi que houve? Posso saber?
- Claro! – respondeu Ori – Da maneira mais resumida possível, ok?
Fiz que sim com a cabeça.
- Quando os soldados da guarda pessoal do rei perceberam que eu havia desaparecido do palácio foram até meu irmão e denunciaram minha fuga. Ele ordenou imediatamente minha captura e eu fui encontrado e levado para sua presença. Como castigo, Uriac achou interessante que eu fosse arremessado nas águas geladas dos Mares Bravios do alto do Penhasco das Almas. Minha sorte é que havia um amigo entre os soldados que mandou avisar a Beluga. Não pudemos evitar minha queda, mas o comandante me encontrou nas pedras poucas horas depois. Não fosse por ele e eu estaria morto.
- Tudo culpa minha! – falei – Se eu não tivesse inventado essa fuga você estaria inteiro agora.
- Estou inteiro, Lílian. Deixe de dramas. Estou inteiro e livre! Agora só precisamos libertar Azagaia e a ilha do Véu. A boa notícia é que as duas coisas são uma só, na verdade. Meu irmão e seu tio estão juntos nessa.
- Eu já havia chegado a essa conclusão. Depois que você estiver melhor nós tomaremos providências para acabar com o poder desses dois tiranos.
- Você não está entendendo, Lílian. Já mandei chamar o grupo de resistência em Cabeceira. Devem estar vindo para cá nesse exato momento. O soldado que me ajudou veio comigo e Beluga, mas partiu para Cabeceira assim que desembarcamos.
- Grupo de resistência?
- Exato! Davi, Michelle, Flora, Paulo e Sérgio, alguns outros que ainda não conheço, e minha mãe, claro.
- Você só pode estar brincando comigo?
- Lílian, tive hemorragia interna há dois dias, quebrei duas costelas, fraturei braços e pernas, cortei o supercílio. Tudo isso porque meu meio irmão quer me matar para reinar em meu lugar. Além do mais, meu pai foi assassinado e eu nem tenho certeza de quem o matou. Minha mãe e irmãos estão foragidos. Meu povo está sofrendo. Acha mesmo que estou com disposição de brincar?
- Não. Desculpe.
- Não precisa se desculpar. Só quero que você entenda uma coisa: a inocência acabou. Estamos no meio de uma guerra. Se não formos fortes seremos mortos. 


XXII – O casamento.


Acordei angustiada no meio da noite. Fazia um calor insuportável e todos dormiam. Olhei no quarto de Ori - decidi que o chamaria pelo verdadeiro nome a parti de agora - e ele parecia dormir profundamente. Desci as escadas devagar e saí pela porta dos fundos. Havia um lago perto da casa principal onde Sara, Felipe e eu costumávamos brincar no verão. Achei uma boa ideia dar um mergulho nas águas geladinhas do Terena para refrescar o corpo e espantar as preocupações que habitavam meus sonhos ultimamente. Levei um roupão para não voltar molhada a casa e mais nada. Os companheiros de Alix estavam acampados por todo lado e precisei fazer muito silêncio para não ser pega. Esgueirei-me pela parede da varanda e, assim que saí da zona de visão dos planicianos, corri o mais que pude. O vento frio jogava meus cabelos para trás e secava o suor que escorria de minhas têmporas antes que alcançassem o pescoço. O vento sempre me traz uma sensação de liberdade irresistível. Não queria parar de correr, mas o lago não era muito distante da casa. Assim que cheguei às margens do Terena olhei para as águas escuras diante de mim e senti saudades das brincadeiras dos anos anteriores. Quase pude ver Sara e Felipe ali comigo. A infância é um presente que não sabemos que ganhamos até que seja tarde. Mergulhei o mais profundo que consegui. Queria deixar minhas preocupações no fundo do Terena. Seria possível? Quem pode garantir? Nadei de volta à tona me sentindo mais leve. Quando cheguei à margem, porém, o velho e inquebrável vidro impedia minha passagem mais uma vez. Comecei a engolir água rapidamente e senti quando minhas forças deixavam meu corpo escapando pelas extremidades dos meus dedos. Simplesmente deixei que o corpo afundasse.
Abri os olhos e já era de manhã. Todas as vezes que sonhava com o mar de vidro acordava exausta. O barulho lá fora indicava que a movimentação na casa já estava a todo vapor. A resistência! Levantei de um salto e desci as escadas correndo. No meio da sala pude ver Flora e todos os meus medos ficaram esquecidos. 
- Não acredito que você esteja aqui! Que saudades! – falei.

Ela veio em minha direção e ficamos abraçadas por alguns minutos em silêncio.
- Quanto tempo, minha amiga! Há anos penso em vir te visitar, mas as coisas se complicaram muito em Cabeceira. Lílian, você não reconheceria nossa cidade agora.
- Eu sei Flora. Conheço você o suficiente para saber que jamais deixaria de me ver sem um motivo muito justo. Além do mais, eu também não pude estar com vocês. Não foi fácil para nenhum de nós.
Olhei ao redor e meus amigos estavam todos ali. Pela primeira vez tive uma sensação gostosa de unir dois lugares que eu amava.
- Infelizmente, os motivos que nos trazem aqui não são nada bons. – disse Paulo, se levantando para me abraçar.
Pouco a pouco, fomos nos cumprimentando e falando dos anos que ficamos separados. Parecia uma reunião de escola, mas não era. Lá fora, em algum lugar, homens que deveriam nos proteger buscavam meios de nos aniquilar. A vida cobra cedo para algumas pessoas. O que mais me angustiava era não saber se um dia teríamos paz. Se alguém me dissesse, naquele momento, que tudo ficaria bem um dia, talvez fosse mais fácil suportar. Mas ninguém ali poderia garantir isso. Não ainda. Ferus tinha mais de duzentos anos e nenhum deles foi de paz. O que tem de errado com os homens para viverem em constante estado de insatisfação? Se é que há erro nesse desejo eterno de superar limites. Na verdade não tenho nada contra. O que me incomoda é a falta de diplomacia, a intolerância, a desumanidade. Você pode escalar um monte, pular de um precipício, atravessar um oceano, que eu vou entender que é uma busca por superação. Mas isso de matar uma pessoa porque se considera superior a ela é uma coisa que não entra na minha cabeça. Nunca entrou. Não entrará. Farei o possível para defender a mim e aos que eu amo, mas odeio a situação em que fui inserida. Não ter escolhas é a maneira mais rápida e segura de fazer uma pessoa se sentir fracassada. É isso que eu sinto quando penso nessa guerra: frustração.
Passamos aquela tarde colocando todos a par dos acontecimentos. Na prática, a Resistência é que teve que me colocar a par da nova situação política de Azagaia. Muitos de nossos conhecidos em Cabeceira foram exilados. Pessoas que eu conhecia desde que era uma garotinha. Aprendi a andar na pracinha em frente à minha casa em Cabeceira. Agora ela era um monte de escombros, assim como a minha casa. Sobre o muro que dona Domingas usava para apoiar os cotovelos quando queria fazer algum comunicado sobre a vida dos outros na cidade, o governo colocou uma placa com os dizeres: “Para que as próximas gerações se lembrem do que acontece aos que não são fiéis à Cabeceira do Rio Seco”. Como assim? Não havia homem mais fiel à cidade que meu pai! E o cenário de horror não parava por aí. A sorveteria de seu Eusébio havia sido interditada por acusação de colaborar com a desordem entre os moradores da cidade. Dona Domingas trabalhava para o governo, como informante, claro. A mãe de Catarina também estava do lado deles. Os pais de Flora também foram obrigados a buscar abrigo na cidade vizinha e a família de Paulo e Sérgio estava fazendo companhia à rainha Araceli numa aldeia perto das Terras das Rotas Diagonais. Enquanto as pessoas falavam só conseguia pensar no peso de minha responsabilidade. Há situações na vida que a gente não pode se isentar de fazer nossa parte ou estaremos sendo injustos.
- Bem, Lílian – interrompeu Flora – Temos mais uma novidade para te contar, mas essa é boa.
- Então contem logo! Toda boa notícia é bem-vinda! – respondi.
- É difícil falar assim, sem explicações completas... Algumas coisas aconteceram sem que você tomasse conhecimento... Quer dizer... Não estávamos nos vendo e... Preciso pensar em como dizer sem parecer rude.
- Não estou entendendo. É uma boa notícia ou não?!
Percebi que todos trocavam olhares como de comparsas em um crime e imaginei que boa coisa não poderia vir daquela hesitação toda de Flora.
- Fala logo Flora!
- Calma Lílian!
- Gente, a maneira mais fácil de deixar uma pessoa nervosa ao dar uma notícia é pedir que ela mantenha a calma! Tá me deixando com medo.
Felipe interrompeu:
- Lílian, o que Flora está tentando dizer é que nós ficamos muito tempo longe um do outro, mas assim que nos vimos hoje de manhã todo o sentimento estava intacto e eu a pedi em casamento.
- Mas essa notícia é ótima! Porque não me disse logo?! E quando pretendem se casar? Nem devem ter pensado nisso ainda. Eu e minhas mil perguntas!
- Na verdade, pensamos numa data sim, Lílian. – disse Flora.
- Ah, é? E quando seria?
- Será! Amanhã no fim da tarde.
- O quê? Vocês enlouqueceram? Essa é boa! Amanhã? Com uma guerra prestes a acontecer e gente morrendo? É brincadeira, não é? Só pode.
- Não é brincadeira, Lili. E eu sabia que você se comportaria desse jeito.
- Mas vocês só têm dezessete anos!
- Eu tenho dezoito, Lílian. E Felipe é mais velho. Nossos pais se casaram até mais novos que nós. E estamos antecipando o casamento justamente por causa da situação. Há uma guerra lá fora e Felipe passou perto da morte uma vez. Ele irá lutar pela redenção de Azagaia, mas gostaria de um pouco de felicidade. Acho justo. Você deveria ter ficado feliz por nós! Porque todo esse drama?
- Não sei. Fui pega de surpresa, acho. Desculpe amiga! Foi o susto. Mas estou feliz, claro! Desde que você me garanta que terá tempo pra mim...
- Sua criança ciumenta! Eu sabia que era ciúme. Deixe de bobagem. Você será minha madrinha. Tem um vestido, não tem?
- A gente dá um jeitinho. 
Depois da notícia do casamento de Flora e Felipe não se falava em outra coisa na fazenda. Era como se não houvesse mais guerra, dor e separação. Estávamos em outro mundo. Um mundo onde o amor sempre vence. Até Ferus designou uma comitiva para cuidar dos preparativos. Não sei de onde surgiu tanta comida, mas estava feliz por isso. Preparamos o local da cerimônia perto do lago, na entrada da fazenda. Fui até o porão com os meninos e juntamos o maior número de lampiões que encontramos. Pensei em colocarmos nos carvalhos da entrada para iluminar o lugar com charme. Limpamos as mesas de madeira e tiramos as toalhas de vovó das gavetas para lavar. Felipe estava radiante, mas ninguém se comparava a Flora. Parecia que um raio de sol tinha feito seu coração de casa. Alix chegaria a tempo e seria meu par, uma vez que Ori ainda não estava em condições de se levantar. E eu ainda precisava procurar um vestido pra mim.

O dia seguinte foi ocupado com o restante dos preparativos para a cerimônia. Felipe foi com Sérgio à cidade buscar o juiz de paz. Flora estava com vovó fazendo ajustes no vestido. Mamãe e eu estávamos na cozinha preparando a comida. Eu sempre escolhia a melhor parte. Michelle estava conosco e enrolava os docinhos. É verdade que comia um e enrolava dois, mas ajudava bastante. Paulo estava silencioso e isso me intrigou a manhã toda. Sumiram na floresta atrás de Marac e outros planicianos. Com tantas coisas a fazer acabei não dando atenção a Ori. Ele acompanhava tudo da janela de seu quarto, mas não era a mesma coisa. Tinha nos olhos um pouquinho de amargura por não poder estar com a gente. Essa manhã ele havia deixado a cama e andava bem devagar pelo quarto. Achei prematura a decisão, mas Daudana disse que seria bom pra ele ir se levantando aos poucos. A rainha Araceli havia chegado com Davi de madrugada e estavam no quarto com ele.
Na hora do almoço, servimos macarrão que era a coisa mais prática a ser feita. Os homens reclamaram a falta de carne, mas dar de comer a mais de duzentas pessoas não é tarefa simples. Além da comida de Ori que tinha que ser separada. Foi um dos dias mais cansativos de minha vida! E olha que escrevo isso numa trégua de trinta dias de uma guerra de quatro anos! Ao terminarmos de organizar tudo só havia tempo para tomar banho e descer para a cerimônia. Quando eu estava no banho, porém, ouvi uma movimentação estranha na frente da casa e me lembro de ter imaginado que fosse a chegada de convidados. Quando saí do quarto e olhei pela janela pude constatar que estava errada. O mistério do sumiço de Paulo com os planicianos estava solucionado. Eles haviam fabricado uma pequena, mas muito linda ponte para o lago da fazenda. E vários homens agora os ajudavam a instalá-la para que a noiva pudesse atravessá-la a caminho do altar. Foi o presente de casamento dos planicianos. E de Paulo, claro. O sorriso que eu vi no rosto dos meus amigos e parentes quando a ponte foi colocada no lugar era o que eu queria ver todos os dias da minha vida. Alguns momentos de felicidade são tão curtos que quase não podemos identificá-los imediatamente. Alguns somente a memória pode nos trazer com o tempo. Ainda pude ver Michelle e mamãe prendendo angélicas e gérberas nas treliças em torno da pequena ponte. Fechei a cortina e comecei a me arrumar sentindo muita falta de Berenice. Trevo me olhava de soslaio, como se estivesse lendo meus pensamentos.
Quando finalmente desci, o sol estava se pondo e os lampiões começavam a brilhar no crepúsculo. Parecia o cenário de um sonho. Havia flores por todos os lados e as cadeiras estavam decoradas com fitas coloridas. Nem acreditei que tudo isso havia sido organizado em dois dias! Eu usava um vestido rosa que ganhei de vovô dois anos antes, mas estava apertadíssimo por conta dos músculos que adquiridos no treinamento com Alix. Quase não podia respirar. Caminhei até o altar improvisado e olhei ao redor a procura do meu par. Nem pude acreditar em meus olhos quando vi Alix andando em minha direção. Os cabelos compridos estavam presos por um rabo deixando o rosto anguloso e queimado pelo sol mais destacado. Ele vestia o terno de alguém, mas caminhava com tanta elegância que dava a impressão de fazer isso todos os dias. Veio sorrindo em minha direção e eu não pude deixar de comentar:

- Está muito elegante, titio.
- E você está linda. Mas deixemos os adjetivos de lado que o seu namoradinho nos observa da janela.
Olhei para a janela do quarto de hóspedes e Ori sorriu pra mim.
- Como você sabia?
- Os homens são todos iguais, Lílian. Eu também estaria de olho na minha namorada se não pudesse andar e ela fosse linda como você.
- Que coisa mais cafajeste a se dizer!
- Eu sei. Desculpe-me.
- Como uma simples observação pode fazer um homem bonito voltar a ser um selvagem!
- Eu sou um selvagem, Lílian. Não é uma ofensa dizer isso a meu respeito.
Vovó começou a tocar o violino, que havia sido o único instrumento sobrevivente do ataque de Constantino à fazenda, anunciando a entrada da noiva. Ficamos em silêncio e puder notar em Felipe um sorriso nervoso. Como aquele moleque com quem eu brincava quando cheguei à Poço das Almas  pode ter se tornado um adulto sem que eu percebesse? Como o tempo passa e não nos damos conta! Havia um travo de nostalgia naquela cerimônia pra mim. Vovô trazia a noiva e Michelle vinha logo atrás segurando a cauda do vestido. A tradição dizia que quem segurava a cauda do vestido era a próxima a se casar. Flora estava linda. Com um vestido branco, de renda e feito exclusivamente para ela pelas mãos habilidosas de minha avó e Daudana. O véu tinha sido de uma das esposas mais novas de Ferus e media três metros. As noivas não seguram flores em Azagaia como em outros lugares. Aqui nós entramos com algum objeto que lembre nossa infância. Como Flora não havia saído de Cabeceira com seus pertences, emprestei Trevo e ela entrou com ele devidamente encoleirado. O juiz foi breve e em menos de uma hora todos se reuniram em torno das mesas de madeira cheias de comida e ornamentadas com frutas e flores. Como manda a tradição a festa tem duração de três dias, mas os noivos partem para a lua-de-mel na primeira noite de comemorações.
- Lílian, você pode me acompanhar até o quarto e me ajudar a tirar esse vestido? – perguntou Flora por volta de meia-noite.
- Claro. – respondi – Mas para onde vocês irão a essa hora? Não dormirão aqui?
- Ah, não. Ganhamos de Alix uma hospedagem na cabana particular dele nas Montanhas Rochosas. Passaremos uma semana lá. Presente de padrinho.
Só então me ocorreu que eu deveria dar um presente de madrinha. As noivas costumam usar aqui alguma joia de ouro e berilo na noite de núpcias. Lembrei-me de ter uma tornozeleira com um pingente dessa pedra e entreguei a Flora.
- Espero que dê muita sorte a vocês – disse.
- Tenho certeza que dará. Obrigada por tudo, amiga.
- Obrigada pelo quê? Não fiz nada.
- Se não fosse você e sua família eu não teria conseguido me casar hoje.
- Se não fôssemos minha família e eu Azagaia estaria em paz.
- Ah, que pretensiosa! Essa guerra é muito anterior a você. É anterior até a nossa presença aqui, Lili. Não se culpe. Aproveite os momentos felizes como esse, daqui a pouco eles serão somente lembranças.
Naquele instante, Flora estava me dando uma das mais valiosas lições que aprendi na vida. E eu nem havia percebido. 
O restante da noite foi dividido entre as danças e comemorações do casamento e a mesa de doces que eu e Sara atacamos sem piedade. Fomos para a cama com o dia amanhecendo para só acordarmos perto da hora do almoço.

O dia seguinte de um casamento em Azagaia é comemorado com muita comida e uma série de competições entre homens e mulheres. O objetivo dos jogos é promover o encontro de jovens que serão os próximos noivos. Como eu já estava com meu coração ocupado, não me inscrevi em nenhuma modalidade. Queria passar a tarde com Ori. Ele estava um pouco chateado por não ter participado do casamento e eu percebi que havia um pouco de amargura por eu não ter ficado nem um minutinho em sua companhia. Achei que seria uma boa forma de pedir desculpas se eu ficasse com ele durante as competições daquele dia, mas estava enganada. Ori não estava em seu quarto quando fui procurá-lo. Ao invés de obedecer as recomendações médicas e descansar, ele simplesmente havia desaparecido! Avisei aos rapazes, mas antes mesmo que pudéssemos sair à sua procura ele surgiu montado em um dos cavalos da fazenda, com aquele ar arrogante que eu bem conhecia, apesar da fisionomia abatida de convalescente. Corri até ele, segurei as rédeas do cavalo e implorei que apeasse e voltasse para o repouso, mas vi em seus olhos que estava decidido a cometer uma loucura. Falou comigo como se eu fosse uma estranha e a dor que senti na hora era parecida com a de perder alguém.
- Saia da minha frente, Lílian. Não se deve impedir o caminho de um rei.
Atendi seu pedido e observei. Ori foi até Alix e disse em tom desafiador:
- Soube que vocês têm uma corrida de cavalos famosa aqui. Gostaria de participar.
Alix olhou pra mim e compreendeu que se tratava de uma disputa de egos. Não era o tipo de homem que se acovarda diante de um desafio e perguntou:
- Você está em condições de competir, rapaz? Não é um trajeto fácil. Se você voltar atrás será um sinal de inteligência e não de covardia.
- Um rei nunca volta atrás de suas decisões. Está feito. Posso participar?
Olhei para Alix e fiz sinal para que não permitisse, mas os homens são insuportáveis quando o que está em jogo é o poder.
- Aceito o desafio. Prepare-se. A corrida começa em alguns minutos.
Ainda tentei apelar para Ferus e meu avô, mas eles disseram que não poderiam impedir Ori de fazer o que quisesse. Ele não era mais um menino e deveria aprender com seus erros. Não fiquei para ver o resultado daquilo. Subi e me tranquei em meu quarto com Trevo e Sara. O prêmio eram duas barras de ouro e o Ulisses. O ouro não era nada, mas Ulisses valia o risco. A corrida começou e ficamos todos apreensivos na fazenda. Pedi a Tibério, um dos genros de Ferus, que seguisse Ori e o trouxesse de volta caso desmaiasse pelo caminho. Mesmo assim estava uma pilha de nervos. Uma hora depois, a agitação das pessoas indicava que o vencedor estava próximo. O que eu sentia era um misto de ódio e desejo de estar errada em acreditar que ele sairia machucado dessa competição idiota. Só queria que Ori entendesse que o poder dele não me atraía nem um pouco. Mas até eu ficava em dúvidas sobre isso de vez em quando. De repente, escutei uma voz conhecida me chamando embaixo de minha janela e meu coração descompassou.
- Aqui está seu prêmio, Lílian Amaral!
Quando finalmente criei coragem e olhei pela janela lá estava ele, todo empoeirado e segurando as rédeas de Ulisses em uma das mãos:
- Fico com o ouro, mas você merece o cavalo. Considere um presente de noivado.
E Ori abriu pra mim um daqueles sorrisos perfeitos que só ele tem. Logo depois Alix chegou seguido de Marac. Pude perceber que ele não estava nada satisfeito com o resultado da corrida.
Desci e recebi meu prêmio. Dei um beijo de agradecimento e todos aplaudiram. Ori sussurrou em meu ouvido:
- Eu jamais deixaria você ir para uma batalha sem um cavalo que te trouxesse de volta. Não sou louco, Lílian. Sei muito bem as chances que tenho e sabia que poderia trazer Ulisses pra você. Aliás, o que me incentivou foi o que descobri essa manhã. Ulisses não é o nome original desse cavalo. Nome dele é Zaldi. Exatamente.  Ulisses é o cavalo de Agassi. Apostei com Ferus que ganharia a competição se o prêmio fosse o cavalo imortal da filha de Goshat e ele concordou que Ulisses não poderia estar em melhores mãos que as nossas.
- Caso Alix ganhasse, o cavalo continuaria entre os planicianos e Ferus não perderia nada. – completei.
- Exatamente.
- De qualquer forma foi um risco muito grande. Você ainda não está completamente recuperado da queda. Poderia ter morrido!
- Falando nisso, preciso voltar para a cama e beber minha dose de vandrana. Meu corpo todo está dolorido. É melhor não arriscar.
Pedi a Paulo e Sérgio que ajudassem Ori a subir e chamei Daudana. Ela cuidou de tudo e em pouco tempo Ori estava dormindo. Fiquei ao seu lado e acabei pegando no sono debruçada sobre suas pernas. Poderia passar a eternidade ali, mas a felicidade é uma nuvem que se desfaz tão rápido quanto se forma. O jeito era esperar pela próxima.



XXIII – Batalha do Vale de Lahur.


O tempo passou  sem que nos déssemos conta. Felipe e Flora voltaram da lua-de-mel e, na mesma tarde, estávamos todos treinando com Alix junto aos jacarandás. Com os cuidados de Daudana, Ori se recuperou mais rápido do que imaginávamos e se revezava com Alix nas orientações sobre técnicas de luta. É bem verdade que ele só nos orientava. Mesmo recuperado, ainda não tinha condições de fazer exercícios mais pesados. Vovô, Ferus e alguns anciãos nos davam aulas de história e estratégia. Marac nos ensinava sobrevivência em zonas de perigo. Passamos alguns apertos, mas sempre havia uma mesa de gostosuras de vovó ao final do dia. Naquela época ainda não tínhamos a exata noção do que estava por vir. Sentíamo-nos como escoteiros num acampamento de verão. Tínhamos o gosto pela aventura sem saber que não há nada de doce ou prazeroso num campo de batalha. Éramos crianças.
Alguns meses depois do casamento, os representantes das cidades de Tornados e Redenção vieram à fazenda e se reuniram com Ferus, Alix, vovô e Ori. Passaram horas no escritório de vovô e a casa permaneceu todo esse tempo mergulhada em um silêncio aterrador. Havia um peso nos olhares e as bocas pareciam seladas pela expectativa do que poderiam ser aquela reunião. Nós tivemos medo pelo que vimos nos olhares dos mais velhos, daqueles que já haviam experimentado da guerra todas as perdas e angústias que ela proporciona. Quando a noite ameaçou invadir as janelas do grande casarão dos Gutierrez, os homens saíram um a um do escritório, se despediram com apertos de mão silenciosos e partiram, deixando nossos homens com expressões graves estampadas nos rostos. Foi Ferus quem falou, quebrando o silêncio:
- Reúnam todos ao amanhecer na frente da casa. Temos um comunicado a fazer.
Nem é preciso dizer o quanto aquelas palavras colocaram todos nós em estado de alerta. Com certeza algo grave estava acontecendo.

 (continua)

 






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