XIII- A guerra foi declarada.
A Floresta Descomunal é lindíssima, enorme e
sedutora. Tem as mais altas e antigas árvores da região e cheira à vida quilômetros
antes de chegarmos aos seus limites. A manhã em que meu avô me levou para
conhecer Ferus tinha um gosto de Natal. Havia pinheiros na fazenda e o perfume
que exalava deles é exatamente o que chamo de cheirinho de Natal desde criança.
Quando desci para a conversa com vovô estava muito curiosa, agora só o que eu
sentia era medo. Não sei bem se medo de encontrar uma criatura lendária e
declaradamente perigosa, ou de descobrir que sou a escolhida para unificar
Azagaia e liderá-la em uma guerra secular com apenas 16 anos. Até então eu nem
sabia da existência de moradores ali, mas não achei nada impossível. Aliás,
estava começando a acreditar que, em Azagaia, tudo era possível.Mesmo assim, o
pavor era tanto que até as perguntas fugiram de minha cabeça, dando lugar a um
pedido constante “Deus, por favor, faça com que eu não seja essa menina!”. Não
sou covarde e até gosto de aventuras, mas isso é totalmente diferente de ir ao
rio pegar umas pedras ou encontrar o namorado às escondidas perto de casa. Se
eu fosse a escolhida, toda a minha vida seria diferente! E eu nunca poderia me
imaginar numa situação dessas! Depois que vovô acabou de falar, Orestes entrou
na sala com uma cara de alguém que está muito preocupado e vovô fez sinal para
que eu desse licença. Saí imediatamente. Orestes e vovô juntos sempre são indícios
de algo sério. Depois de algum tempo que me pareceu uma eternidade, vovô me
chamou e me fez sentar em sua frente novamente. Tinha a fisionomia muito grave,
as rugas em sua testa e em volta de seus olhos estavam mais acentuadas, a boca
estava crispada e ele esfregava as mãos sobre as próprias coxas enquanto
suspirava. Nunca havia visto “seu” Silvestre assim e isso me deixou mais
nervosa ainda. Não pude suportar o suspense e quebrei o silêncio.
- Pelo amor de Deus, vovô! O
que Orestes te disse para te deixar tão nervoso? É alguma coisa com o meu pai?
Vovô?!
- Acalme-se querida. Algumas
coisas mudaram para nós.
- Algumas coisas mudaram como?
- O rei Amadeo foi assassinado
ontem à noite em seu quarto. A guerra foi declarada. Azagaia precisa mais do
que nunca de um líder e a família Amaral instituiu seu tio para nos
representar. Precisamos ir até Ferus com o máximo de urgência e descobrir o que
fazer com você agora.
- Mas vovô, talvez seja melhor
que a família Amaral cuide disso. Eu sou uma criança ainda.
- Lílian, seu pai está na Ilha
do Véu. Foi capturado há dois dias. Você sabe que ele não está totalmente
recuperado e isso o torna uma presa fácil. Seu tio odeia Camilo por causa de
sua mãe e só estava esperando uma oportunidade para se vingar. É bem possível
que ele use a vida de seu pai como barganha para promover a paz. Precisamos
correr.
Quando vovô terminou de dizer
isso eu simplesmente concordei com a cabeça e andei até a porta. Meu medo era
tão grande que não tive palavras. Meus pensamentos não se organizavam em minha
cabeça e só me lembro de ter pensado que desmaiaria de pavor. Não sei como tive
forças para me manter de pé.
As pessoas costumam dizer que,
em momentos de crise, alguns costumam reagir fazendo algo e outros ficam
passivos. Bem, eu sou um híbrido. Posso reagir de qualquer uma das maneiras,
inclusive mudando de uma para outra, dependendo da minha compreensão sobre o
assunto. Eu e vovô caminhamos lado a lado, em silêncio, até o bosque de
Carvalhos que limita a fazenda da Floresta Descomunal. Antes de entrar vovô me
aconselhou:
- Lílian, preciso que preste
atenção ao que vou lhe dizer agora. Fique sempre perto de mim, não olhe Ferus
nos olhos, não o desafie nem demonstre qualquer tipo de arrogância em seus
gestos ou palavras. Não tente enganá-lo. Um homem com o tempo de vida dele
raramente se deixaria enganar. Tenha respeito por suas crenças, histórias ou
costumes. Não corra de nada. E, principalmente, mantenha a boca fechada. Só
responda ao que lhe for perguntado. Seja objetiva. Entende o que quero dizer?
- Sim, vovô – respondi. Mas a
verdade é que as orientações dele me deixaram ainda mais certa de que eu não
deveria estar ali. Isso não tinha a menor chance de acabar bem.
- Comporte-se e tudo terminará
bem. – ele completou.
Concordei com a cabeça, mas eu
sabia que ainda havia muita coisa entre aquela entrevista e o fim disso tudo.
No íntimo eu tinha certeza. Curioso como temos percepções diferentes sobre as mesmas
coisas, dependendo do que estamos passando. A primeira vez que entrei na
floresta era uma menina e queria desafiar o perigo, testar minha coragem,
sentir um medo que acreditava estar controlando. Agora, entrava como uma minúscula
partícula do universo, pequena, frágil, finita e amedrontada partícula. Sentia
que, se Ferus não me liquidasse com seus olhos ou uma de suas zarabatanas
venenosas, o medo que eu sentia de perder as pessoas que amo me faria implodir.
Respirei fundo e tentei me controlar ao máximo.
Á medida em que íamos nos
distanciando da fazenda, podia ouvir meu coração batendo na garganta seca. A
floresta se tornava mais escura, as árvores mais altas e algumas plantas que eu
desconhecia começaram a aparecer presas às árvores, como se tivessem sido imobilizadas
durante uma dança qualquer. Também havia muito barulho de animais. A impressão
que tive era de que avisavam nossa chegada. De repente, meu avô parou e fez um
sinal para que eu também me detivesse. Então ouvi a folhagem se mexendo e
percebi que alguém se aproximava.
Ferus se colocou de pé diante
de mim e de vovô de uma maneira que o deixava num plano mais alto que a gente.
Lembro-me de ter pensado no que isso tinha de estratégico e achei desnecessário.
Ele já era bem alto e assustador. Tinha uma cara de felino, os cabelos muito
finos e compridos estavam presos para trás por uma espécie de tiara de presas
de animais. Devia medir algo bem perto de dois metros e seu corpo era largo e
musculoso. Eu ainda o analisava quando
ele começou a falar.
- Olá Silvestre! – sua voz era
firme, grave, mas surpreendentemente agradável.
- Ferus! – respondeu vovô –
Você já deve saber o que aconteceu.
- Sim. Eu soube a algumas
horas, mas ainda não estou inteirado de tudo. A menina pode ouvir o que temos
que conversar?
- Acho que agora teremos que
colocá-la a par das coisas. Eu realmente não esperava que matassem o Amadeo dessa
forma. Ele estava muito bem protegido.
- Parece que não o suficiente.
Também lamento muito Silvestre, mas não é hora de nos entregarmos ao desespero.
– e, falando isso, Ferus olhou discretamente para mim.
- É verdade. Você está coberto
de razão. Só não tive tempo ainda para assimilar tantos acontecimentos... Vamos
em frente!
Ferus abriu um meio sorriso
que estreitou ainda mais seus olhos. Era bonito sorrindo.
- Lílian o seu nome? – ele me
perguntou como que para começar um assunto.
- Sim senhor. – respondi olhando
bem dentro de seus olhos. Pude notar que meu avô me desaprovava. Ferus se dirigiu
para meu avô e fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Então é assim? – perguntei apavorada
– Não tenho que passar por um teste ou descobrir algo na Pedra Marcada... Simplesmente
você me olha e sou eu?!
- Bem, não é a Pedra que
determina se você é a escolhida. – Ferus me interrompeu - Existem muitas informações distorcidas nessa
história. Algumas plantadas por mim, outras inventadas por todos os outros.
Menina...
- Lílian! – agora foi minha
vez de interrompê-lo. Os olhos de meu avô pareciam que saltariam das órbitas.
- Tudo bem. – disse Ferus – É justo.
Lílian, você ainda é muito jovem, acredito que ainda não conheça a força que
tem uma pessoa quando ama?
- Isso foi uma pergunta? –
falei.
- Ora, garota. Basta com essa
insolência! – meu avô bradou, fazendo com que eu me estremecesse um pouco.
- Deixe-me cuidar disso, certo Silvestre? – e a voz de Ferus
era extremamente calma. Fiquei em silêncio, mas minha atitude arrogante foi
quebrantada quando percebi que havia dor nas palavras proferidas por aquele
homem. Seus ombros eretos agora estavam levemente encurvados, e pude notar que
todo o seu rosto se contraía numa expressão de derrotado.
- Pois bem. – ele continuou – Há muitos anos eu me apaixonei
pela filha do líder dos Continentais. Agassi. Ela era doce, inteligente,
generosa... Todas as qualidades que uma princesa deve possuir eram naturais
nela. Nos conhecemos no Campo dos Refugiados. Eu havia atravessado a Terra das
Rotas Diagonais a pedido de meu pai. A poucos metros do Poço Profundo, desmaiei
de fome e sede. Agassi me observava de longe e viu quando caí. Imediatamente,
ela veio com suas acompanhantes, deram-me água fresca, um bocado de pão e
frutas, e esperaram que eu tivesse condições de me por de pé. Agassi mesma foi
quem me ajudou a subir em seu cavalo e, na garupa dela, fomos para a caverna
mais próxima. Ali ela cuidou de mim durante três dias, até que eu tivesse
condições de seguir viagem. Quando nos despedimos, perguntei a ela como faria
para encontrá-la de novo. E ela me respondeu: “- Leve meu cavalo. O nome dele é
Zaldi. Ele te guiará de volta pra mim quando você lhe der isto.” E estendeu um
saquinho de seda com as pétalas de crisântemos ressecados. Pensei na hora que
os crisântemos representam a esperança e proteção e senti que meu coração já não
me pertencia.
Passaram-se dois anos até que eu pudesse sair a procura de
Agassi. Estive envolvido em muitas batalhas, vivia nos desertos ou em cavernas,
acampava com homens muito mais fortes e temidos que eu, guerreiros antigos a
quem eu devia respeito. As lutas eram tão duras e constantes que nem percebi a
passagem do tempo. Quando finalmente encontrei um período de trégua e recebi de
meu pai uma licença para cuidar de meus interesses, procurei o saquinho de crisântemos
e dei para que Zaldi cheirasse. Confiei no que Agassi havia me dito e deixei o
cavalo me guiar. Viajamos por dois meses atravessando Azagaia – porque, nesse
tempo ainda vivíamos todos nesse território que depois da guerra ficou para os
Forasteiros – até que cheguei ao acampamento das filhas do rei Goshat e
encontrei minha amada. Subi nas montanhas e enviei Zaldi. Esperei por dois dias
até que Agassi me encontrou. Quando chegou veio trazendo o sol e a felicidade
com ela. É impossível descrever o que eu sentia quando a via. A mulher mais
linda que já pisou estas terras. Bem, Planejamos uma fuga. Não havia a menor
possibilidade de ficarmos juntos com o aval de nossos pais. Nossas famílias já
haviam derramado sangue demais uns dos outros para haver entendimento. Haviam
trilhado um caminho sem volta. Pelo menos era no que acreditávamos. Além do
mais, os Continentais haviam conquistado a Ilha do Véu e, como recompensa ao
homem mais valente na batalha, o rei Goshat havia dado a mão de Agassi em
casamento. Está acompanhando, Lílian?
Fiz que sim com a cabeça. Àquela altura da história não
queria saber de mais nada, somente de como aquilo terminou e o que tinha a ver
comigo.
- Bem, juntamos alguns pertences e fugimos – continuou Ferus –
Para que tivéssemos uma chance de ficarmos juntos, deveríamos atravessar as
Terras das Rotas Diagonais. Amarramos ao corpo um saquinho com um punhado da
terra de Azagaia para que ficássemos protegidos contra o esquecimento que se
abate sobre quem entra desprevenido nessas terras mágicas e atravessamos a
fronteira. Achávamos que estaríamos a salvo, mas na quinta noite de viagem fui
acordado por Agassi e ela fez sinal para que eu continuasse calado. Estávamos
cercados. O pai de Agassi, seu noivo e mais novecentos homens haviam nos
alcançado. Não havia a menor possibilidade de fugirmos. Então ela me contou um
segredo que mudou minha vida: Agassi carregava um líquido no pingente de seu
colar que havia sido dado a ela pela mãe há muitos anos. Esse líquido era mágico
e permitia à pessoa que o bebesse viver eternamente até que seu último desejo
antes de bebê-lo fosse realizado. A partir daí sua vida estaria
desprotegida do encantamento e seguiria seu curso normal. Era quase uma
parada no tempo. Mas somente para quem bebesse. Na hora não pensei nas consequências,
só no quanto queria estar ao lado do meu amor. Desejei me casar com a mulher
que eu amava. Agassi fez o pedido dela e bebemos. Combinamos que eu fugiria
sozinho e depois retornaria para resgatá-la. Mas, algum tempo depois recebi a
visita de uma jovem montada em Zaldi. Meu coração estremeceu. Era uma das
criadas de Agassi. Entregou-me uma carta de despedida do meu amor. A carta dizia que depois da
captura, Goshat havia trancado Agassi em seus aposentos para aguardar o casamento, mas
descobriram que ela esperava um filho. Um filho do inimigo! Furioso, o rei
Goshat a sentenciou ao exílio nas Terras das Rotas Diagonais, onde ela morreu de
fome e sede. Eu não poderia acreditar naquilo por causa da proteção que tínhamos
do líquido mágico, mas a criada explicou que Agassi havia desejado que eu
fugisse em segurança. Enlouqueci! Você não pode imaginar o que senti! Depois que
ela morreu me enfiei nas piores batalhas na esperança de que alguém me mandasse
ao seu encontro, mas percebi que isso não poderia acontecer porque meu último
desejo jamais se tornaria realidade. Vivi a partir daí em busca de uma saída para
o que se tornou minha maldição. Venho perdendo pessoas há duzentos anos e nem
doente fico. Sabe o que é perder pessoas que amamos? É insuportável. Você deve
estar se perguntando o que tem a ver com isso. Certo? Bem, há pouco tempo
descobri que a única maneira de me libertar dessa vida é transferindo-a para
outro casal. Um que possa realizar o que não me foi permitido. Preciso de
descendentes que repitam nossa história e é aí que você entra.
XIV – O Segredo da Pedra Marcada.
O encontro com Ferus me deixou ainda mais confusa do que eu já
estava. Que loucura! Como eu poderia ajudá-lo? Ele cometeu erros que eu terei
que consertar? É isso mesmo?! Não é um pouco injusto que eu seja responsável
pelos erros de quem quer que fosse? Só havia um motivo para que eu não tivesse
virado as costas e o deixado falando sozinho depois daquela revelação mais do
que bombástica: meu pai! Tudo bem que a história dele até era bem comovente,
mas não era a minha história e eu não queria me comprometer com coisas tão
estranhas pra mim. Ferus não me importava, mas eu iria até o fim do mundo e
enfrentaria qualquer coisa pelo homem que sempre enfrentou tudo e todos por
mim!
Voltei para casa em silêncio, pensando na maneira mais
eficiente de fazer com que eles me contassem o que pretendiam fazer para
resgatar meu pai das mãos dos Continentais. Ferus pediu que meu avô me contasse
a outra parte da história justificando que havia ficado exausto com todas
aquelas lembranças. Realmente, ter duzentos anos de recordações não deve ser
nem um pouco relaxante. Quando retornamos à fazenda, Trevo me aguardava na
varanda e não parava de latir. Eu só não o repreendi porque me sentia culpada
por não estar dando a ele a atenção à qual estava acostumado. Aproveitei que precisava
de um pouco de sossego e levei Trevo comigo para o quarto na tentativa de organizar
os últimos acontecimentos e ver como eles poderiam se encaixar ao que eu já
sabia. Deitei em minha cama e Trevo se aconchegou aos meus pés. Fiquei olhando
para o ventilador no teto e tentando imaginar o que eu deveria fazer com o que
sabia até ali. As coisas ainda me pareciam bem confusas meia hora depois,
quando a porta se abriu devagar e eu vi uma bandeja entrando.
- Olá, Lílian – Berenice falou baixinho – Imagino que você não
tenha almoçado ainda e trouxe alguma coisa pra você comer. O que acha?
- Ah Berenice – respondi – Para ser bem sincera eu agradeço,
mas não estou com muita fome. Minha cabeça está girando e girando...
- Entendo. Posso te dar um conselho?
- Claro! – falei esperançosa.
- No seu lugar eu tentaria me alimentar, porque seria menos
um problema no qual pensar. Além do mais, se você precisar de energia para
tomar uma decisão e colocá-la em prática, onde acha que encontrará?
- Berenice, você nunca se cansa de sempre estar certa? –
falei enquanto me levantava e sentava diante da bandeja.
- Menina Lílian - e enquanto falava, Berenice ia colocando o
guardanapo em meu colo e suco no copo diante de mim. Ela é exatamente isso: uma
pessoa que consegue fazer dez coisas ao mesmo tempo. E todas muito bem feitas -
Não há segredo nenhum no que faço. É só observar os acontecimentos e esperar.
Geralmente eles se repetem, e nossas experiências de hoje tornam-se excelentes
conselhos amanhã. Agora vou deixar a senhorita almoçar em paz. Qualquer coisa
que precisar é só chamar. Ah! Já ia me esquecendo! Seu avô pediu para avisar
que foi até a cidade resolver algumas coisas, mas que estará de volta ao
anoitecer e terminará a conversa. Pediu também que você descesse até a
biblioteca e lesse o capítulo que está aberto sobre a mesa dele do Histórias Para
Ficar Acordada.
- Sei. Berenice?
- Pois não, Lílian?
- Você trabalha aqui há muito tempo?
- Não muito. Cheguei aqui pouco depois da partida de sua mãe.
- Da fuga dela. É o que quer dizer?
- Não sabia que você tinha conhecimento disso. Eu mesma só
fiquei sabendo pelos empregados. Mas não era isso que eu queria dizer. Falei da
partida dela mesmo. Como aconteceu e os motivos que a levaram a isso não são de
minha conta.
- Ficou chateada com alguma coisa que eu disse?
- Não. Não fiquei. Mas sei o que pretende e minha resposta é
uma só: não sei de nada. Não me faça perguntas Lílian Amaral. Não sou indiscreta
e não serei agora. Sabe o que acho? Que você deveria ler a história que seu avô
mandou.
- Por que diz isso?
- Porque acredito que lá você terá algumas das respostas que
precisa.
Berenice saiu sem dizer mais nada, me deixando com um
pulgueiro atrás da orelha e uma pressa doida de chegar à biblioteca. O que será
que me aguardava sobre a mesa de meu avô que poderia satisfazer uma curiosidade
de uns duzentos anos de histórias mal contadas?
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Quando cheguei diante da biblioteca de vovô - onde também
funcionava seu escritório quando despachava os assuntos administrativos da
cidade sempre que não queria se ausentar de casa – percebi que a grande porta
de madeira estava entreaberta. Empurrei-a devagar como se violasse um santuário.
Estranha essa sensação, mas era como se minha presença ali fosse um erro,
apesar de autorizada. Sobre a mesa de vovô pude ver o grande livro das lendas
de Azagaia aberto ao lado de uma pequena estátua de uma mulher segurando uma
balança em uma das mãos e uma espada na outra. As estantes eram abarrotadas de
livros, e minha avó já havia me garantido uma vez que ali só entravam os
exemplares que vovô havia comprado e lido. Nada emprestado, nada desconhecido.
Esse era o lema do meu avô para a maioria das coisas que entravam em sua casa.
Fui andando devagar, acostumando meus olhos ao ambiente um pouco mais escuro
que o restante da casa. Senti meu coração acelerar. Aquilo mais me parecia um
parque de diversões com tantos livros e segredos escondidos neles. Bateu uma
vontade doida de passar dias dentro daquela sala sem que ninguém me
interrompesse. Eu havia chegado ao fim da amarelinha.
Abri as cortinas para que entrasse luz suficiente para
iluminar a mesa, tomando o cuidado de não derrubar nenhum dos vasos de
porcelana de quase um metro de altura que ladeava cada uma das quatro janelas
pintadas de vermelho. Essa cor foi escolha de vovó e motivo para uma breve
separação do casal no início da vida a dois. As pessoas podem brigar pelas
coisas mais banais quando vivem juntas. Para demonstrar sua autoridade vovó
todo ano mandava pintar as janelas da mesma cor, apesar de ter me confidenciado
uma vez que já não as suportava mais.
Cheguei ao livro tão meu conhecido durante a infância. Vê-lo
me fez lembrar de papai e tive que segurar o choro por alguns minutos. Passei
os dedos por sobre as páginas lendo uma ou outra palavra onde meus olhos
batiam. Aproximei meu rosto delas e senti seu perfume. Ler para mim sempre foi
um ritual. Voltei até onde vovô havia marcado e o título me chamou muito a
atenção: O segredo da Pedra Marcada.
Eu já havia terminado de ler quando o carro de vovô
estacionou diante da casa. Ainda estava sentada na cadeira giratória de couro
quando ele entrou na biblioteca e, sem dizer nada, abriu um grande mapa de
Azagaia sobre a mesa. Levantei-me da cadeira e me aproximei com calma. Bem na
minha frente estavam as cinco cidades, a Floresta Descomunal, as Montanhas
Rochosas, os Mares Bravios, a Ilha do Véu e as Terras das Rotas Diagonais.
Linhas de várias cores indicavam rios, estradas, a extensa linha férrea
cortando todo o território como uma cicatriz de um arranhão recente. Notei que havia
pontos vermelhos espalhados pelo mapa e aproximei minha mão devagar para abrir um
dos cantos enrolados pensando haver ali alguma legenda.
- São os locais onde travamos alguma batalha. – interrompeu meu
avô.
- Mas são tantos! – respondi surpresa.
- É assustador, não é?! Esse território é repleto de sangue e
luta. Perguntei uma vez a Ferus quando tudo isso começou e nem ele soube me
responder. Só disse que é muito anterior a ele. Acredito que não vá acabar tão
cedo.
- O senhor acha que mesmo que eu seja a escolhida e consiga
unificar Azagaia isso não vá acontecer?
- Não tenho certeza. Honestamente.
- E o que o senhor pensa em conseguir então?
- Uma longa trégua. Suficiente para que seus filhos tenham
paz. Já é alguma coisa, não?
- Não sei dizer. Vovô?
- Sim, Lílian?
- Eu li o que me mandou.
- E o que achou?
- Bem, recapitulando: de acordo com Ferus, ele e Agassi foram
amaldiçoados depois que beberam um líquido que ela carregava em seu pingente. O
líquido foi dado a ela por sua mãe, que era uma espécie de bruxa, sei lá. Eles deveriam fazer um
pedido e seriam eternos até que o desejo fosse realizado. Ele desejou ser feliz
ao lado dela, ela desejou que ele fugisse em segurança depois do cerco que seu
pai e noivo fizeram ao lugar em que acampava com Ferus. Até aí estou certa?
- Sim, continue.
- Bem, ela foi capturada e exilada nas Terras das Rotas
Diagonais com um filho na barriga. Morreu lá com esse filho. Ferus entrou em
desespero e não pode se juntar a ela porque seu desejo nunca será realizado.
Isso o torna eterno. Mas ele descobriu que, se ele passar a maldição para outro
casal e esse casal realizar o desejo ele estará livre. Suponho que o desejo de
um terá que ser substituí-lo nessa loucura toda e do outro terá que ser ficar
juntos.
- É uma boa suposição. Não havia pensado nisso. – respondeu vovô.
- Deixe-me terminar. No livro, está escrito que a Pedra
Marcada ocupa o lugar do Carvalho do Limite, que foi transplantado para o
jardim de Amora da Cantuária quando ela namorava o Coronel Amaral. Quando Amora
morreu, o Coronel Amaral, que é meu tataravô...
- Bisavô.
- Isso. Ele entrou nas Terras das Rotas Diagonais com o
Carvalho e viveu lá até sua morte alguns anos depois. Antes, escreveu na pedra
a frase que todos nós conhecemos tão bem: “O homem aprovado é um homem feliz.”
E tornou uma simples pedra na Pedra Marcada. Bem, na história, o segredo da
pedra é que ela é a chave para encontrar o Carvalho do Limite e o devolver ao
lugar de origem. O senhor faz ideia do motivo?
- Não. Para restabelecer a paz?
- Não acredito. Afinal, já havia guerra antes do meu
antepassado retirar o Carvalho de lá.
- E o que seria?
- Olha, talvez seja só uma suposição, mas me lembrei de uma
história que meu pai me contou há alguns anos. Ela dizia que havia nos limites
de Azagaia uma árvore mágica que podia realizar desejos se bebêssemos um líquido
extraído de seus galhos. Mas que ele só faria efeito se fosse extraído na
segunda lua nova do ano, debaixo da sombra das Montanhas Rochosas, no lugar
original onde fora plantado. Ou seja, não adiantava tirar uma muda ou
transplantá-lo. O senhor imagina que líquido era esse?
- Não há dúvidas. O líquido que estava no pingente do colar
de Agassi!
XV – O exílio.
A conversa toda com Ferus e meu avô, a preocupação com meu
pai e a saudade sempre crescente de Daniel se juntaram aos meus medos
anteriores e à ansiedade que era comum nos últimos anos e tiraram completamente
meu sono aquela noite. Sentei-me na cama e, por algum tempo pensei em como a
vida de Trevo era bem melhor que a minha. Ali no quarto, entretido com uma
bolinha laranja cheia de pontinhos brilhantes ele simplesmente não precisava de
mais nada. Só de mim e da bolinha, um pote de água e outro de comida e um
quintal onde pudesse correr à vontade durante o dia. Senti uma pontinha de
inveja. Pensei em tudo o que havia acontecido, nas coisas que eu havia
descoberto e, conforme as ideias iam tomando forma e peso em minha cabeça, mais
eu compreendia o quanto seria difícil resgatar meu pai da Ilha do Véu. Isso
estava me enlouquecendo!
O sol saiu do topo das Montanhas Rochosas de uma só vez
naquela manhã. Isso significava que o dia seria bem quente, apesar de ainda
faltar uns dois meses para o verão. Trevo não suportou a vigília e dormiu com a
bolinha pendurada na boca. Não tirei por medo de acordá-lo. Fui para o banho com
uma sensação de que não dormia há, pelo menos, duas semanas. Ouvi quando a
porta se abriu, e imaginei que fosse Berenice com meu café, mas, ao sair do
banheiro dei de cara com Ferus e fiquei completamente petrificada. Ele fez
sinal para que eu me sentasse e obedeci mecanicamente. Mesmo sabendo que não
era sua intenção me fazer qualquer mal, sua presença em meu quarto assim tão cedo me colocava no limite da
histeria.
- Bom dia, Lílian. – ele cortou o silêncio.
- Bom dia. Suponho que tenha acontecido alguma coisa, de
outra forma você não estaria aqui tão cedo. – respondi num misto de curiosidade
e preocupação.
- Sim. Aconteceu. Lílian, seu tio quer ter certeza de que seu
lugar como líder de Azagaia estará garantido e as pessoas começam a questionar
se não deveriam esperar pela escolhida para começar uma guerra. Ele colocou um
pelotão a caminho e pretende te manter prisioneira ou algo pior. Temos duas
horas até a chegada dele. Ainda não falei com seu avô porque precisava que você
compreendesse primeiro a gravidade da situação. Se você disser que pretende
ficar aqui, Silvestre não terá como te defender. A vida de todos aqui corre
perigo. Mas se você vier comigo, poderá ficar em segurança até que esteja pronta
para tomar seu lugar.
- Mas ir pra onde? – perguntei – E por quanto tempo?
- Você poderá ficar comigo e meu povo na floresta até que
complete dezesseis anos. Até lá não poderá fazer nada por aqui. E podemos usar
esse tempo para te treinar para a batalha.
- Espere. Preciso de um tempo para entender tudo isso.
- Infelizmente, menina, você não dispõe de muito tempo. E eu
também não faço o tipo de quem explica as coisas mais de uma vez. Ou você vem
comigo e ganha uma chance de continuar na luta por Azagaia, pelo seu povo, pelo
seu pai... ou estará nas mãos dos Amaral em instantes e eu não poderei fazer
mais nada. Não agora.
Desci as escadas depressa com Ferus atrás de mim. Quando
Berenice nos viu deu um grito de pavor e eu fiz sinal de que estava tudo bem.
- Vovô está na biblioteca, Berenice?
- Não. Está no quarto ainda. – ela respondeu.
- Chame-o aqui e diga o que viu. Ele virá depressa.
Berenice subiu as
escadas correndo enquanto eu procurava na biblioteca meu livro das Histórias
para Ficar Acordada. Não iria a lugar algum sem ele. Vovô apareceu em instantes
e colocamo-lo a par do que estava acontecendo. Olhei para ele com firmeza e
perguntei:
- Devo ir?
- Com certeza! – ele respondeu sem hesitar.
- E Trevo? Posso levá-lo?! Por favor?
- Se ele não nos atrasar pode. Mas ande rápido, já perdemos
tempo demais. – disse Ferus.
Coloquei algumas roupas na mochila, passei a mão sobre a
escrivaninha e peguei meu diário e algumas canetas. Sabia que não durariam três
anos, mas não podia ficar sem tentar. Durante todo o tempo a única coisa que me
incomodava era o fato de sair de um lugar onde Daniel poderia me encontrar.
Minha esperança era a de que ele saberia me achar, se quisesse. Olhei meu
quarto pensando no que eu poderia estar esquecendo, mas uma voz lá de baixo me
chamou e eu não tive tempo de pensar em mais nada.
- Lílian, eles já estão em Poço das Almas! Rápido!
Era meu avô. Senti a tensão em sua voz e corri escada abaixo
com a mochila em uma das mãos, o diário na outra e Trevo em meu encalço.
- Como chegaremos à floresta tão rápido?
- Iremos a cavalo. – Ferus respondeu. – Você saber montar, não
sabe?!
- Claro! - e olhando ao redor perguntei: Onde estão a mamãe e
a vovó? Tenho que me despedir delas!
- Não será possível, querida. As duas foram logo cedo à
cidade fazer compras. Darei um jeito de levá-las até você assim que for possível.
Prometo.
- Vamos! – Ferus ordenou.
- Tome conta dela! – meu avô se dirigiu a Ferus e falou em
tom de súplica.
- Você sabe que na floresta eu sou invencível. Nada poderá
atacá-la em minha tribo. Se você e sua família precisarem de abrigo sabe como
me achar.
- Obrigado. – vovô respondeu mais tranquilo.
- Adeus vovô.
- Até breve, querida!
***********************************************
Em poucos minutos entrávamos na floresta Descomunal. As folhas das árvores batiam em meu rosto e ombros me deixando cheia de pequenos arranhões. Eu sabia que não muito atrás de mim, Trevo corria com todas as suas forças. Odeio fazer coisas que não compreendo, mas confiava em meu avô e não podia colocar minha família em risco, o resgate de meu pai, a paz em uma região que eu conhecia como meu lar... Os pensamentos se misturavam em minha cabeça como pequenos novelos emaranhados, sentia os nós se formando e apertando com força bem na altura das têmporas. O que será que aconteceu quando o exército do meu tio paterno chegou à fazenda e encontrou vovô sozinho? Sentia uma vontade louca de voltar, mas o instinto de sobrevivência é mais forte em mim que qualquer outro sentimento. O curioso é que de alguma forma tudo aquilo fazia algum sentido pra mim, lá no fundo do meu coração eu sabia que precisava passar por tudo o que passei, que era meu destino. Depois de um longo tempo cavalgando chegamos à aldeia de Ferus. Minha cabeça latejava, uma enxaqueca daquelas anunciava que não seria fácil me adaptar a esse universo desconhecido que eram os planicianos. Várias pessoas começaram a sair de todos os cantos e se juntar ao meu redor. Procurei por Trevo e não o encontrava, mas ouvia seu latido. Um rapaz de olhos grandes e sinceros segurou a rédea do meu cavalo e me deu as boas vindas. Em instantes tudo escureceu e eu não vi mais nada.
Em poucos minutos entrávamos na floresta Descomunal. As folhas das árvores batiam em meu rosto e ombros me deixando cheia de pequenos arranhões. Eu sabia que não muito atrás de mim, Trevo corria com todas as suas forças. Odeio fazer coisas que não compreendo, mas confiava em meu avô e não podia colocar minha família em risco, o resgate de meu pai, a paz em uma região que eu conhecia como meu lar... Os pensamentos se misturavam em minha cabeça como pequenos novelos emaranhados, sentia os nós se formando e apertando com força bem na altura das têmporas. O que será que aconteceu quando o exército do meu tio paterno chegou à fazenda e encontrou vovô sozinho? Sentia uma vontade louca de voltar, mas o instinto de sobrevivência é mais forte em mim que qualquer outro sentimento. O curioso é que de alguma forma tudo aquilo fazia algum sentido pra mim, lá no fundo do meu coração eu sabia que precisava passar por tudo o que passei, que era meu destino. Depois de um longo tempo cavalgando chegamos à aldeia de Ferus. Minha cabeça latejava, uma enxaqueca daquelas anunciava que não seria fácil me adaptar a esse universo desconhecido que eram os planicianos. Várias pessoas começaram a sair de todos os cantos e se juntar ao meu redor. Procurei por Trevo e não o encontrava, mas ouvia seu latido. Um rapaz de olhos grandes e sinceros segurou a rédea do meu cavalo e me deu as boas vindas. Em instantes tudo escureceu e eu não vi mais nada.
XVI – Os
Primeiros Sinais.
Acordei e olhei ao redor
estranhando o lugar. Havia me esquecido
que estava na aldeia dos planicianos. De qualquer forma, nada poderia explicar
o que senti quando olhei ao meu redor. Estupefação? Encantamento? Admiração?
Sim! Tudo isso e muito mais. Eu estava numa espécie de tenda, mas não aquelas
que fazemos para acampar, muito menos as cabaninhas de lençol que montamos em
nossos quartos quando brincamos com os amigos. Nada disso chegaria perto do
pequeno palácio onde eu repousava bem no meio da Floresta Descomunal. As
paredes eram grossas, muitos panos separavam o interior do aposento do mundo
externo dos planicianos. Mas eram colocados com tanta graça e leveza que
possuíam o equilíbrio perfeito entre a segurança da privacidade e o aconchego
de não estar sozinha. Eu estava sobre uma cama feita de jacarandá e coberta por
lindíssimas camadas de linho, almofadas estavam espalhadas por toda parte,
todas de seda com fios brilhosos desenhando tramas de pássaros e flores. Ao meu
lado havia uma mesinha que parecia ter sido engastada em uma única peça de
madeira; sobre a mesa repousava uma bacia de prata com o desenho de uma moça
dando água a um rapaz, cavalos e outras moças estavam ao redor deles.
Lembrei-me do que Ferus havia me contado sobre seu encontro com Agassi e tive
vontade de chorar. Também havia uma jarra de prata ao lado da bacia, e nela, o
próprio Ferus estava montado em um cavalo com crinas trançadas e longas. Havia
lampiões acessos em todos os cantos da tenda que pareciam feitos de ouro.
Quando coloquei meus pés no chão encontrei tapetes macios ao invés da madeira
da casa de vovô. A sensação de pisar em algo quente e macio era reconfortante. Ouvi
latidos de Trevo e corri em direção à abertura da tenta, mas, antes que eu a
alcançasse, a sombra de um homem enorme anunciou a presença de Ferus e eu
estanquei imediatamente.
- Está melhor? – ele disse, enquanto se dirigia a uma cadeira de espaldar
alto no canto direito da tenda.
- Sim. Estranho que eu não esteja mais com enxaqueca, geralmente elas
duram três dias quando aparecem. Sempre sofro de enxaqueca em momentos de
tensão. – Minha resposta soava fraca, como se eu não tivesse certeza do que
dizia.
- Não se preocupe aqui você dificilmente terá dores de cabeça tão
persistentes.
- Não entendi. – falei.
- Temos nossos remédios e, até onde sei, são bem mais eficientes que os
do seu mundo.
- Não me lembro de ter tomado nada. Aliás, não me lembro de absolutamente
nada depois de minha chegada. Ah, obrigada pelas acomodações. Sua tenda é muito
bonita.
- Essa tenda não é minha. Mandei prepará-la para sua chegada. Alguns
objetos são meus, mas são os melhores que temos aqui, e nunca receberíamos uma
descendente de Silvestre Gutierrez com algo que não fosse o melhor.
- Por quê?
Ferus simplesmente deu um sorriso e continuou:
- Vista-se e venha jantar conosco. Estão todos à sua espera.
- Todos quem?!
E ele saiu sem dizer mais nada.
Não tive opção senão fazer o que ele havia ordenado. Não me sinto à
vontade com ordens, mas acabei me acostumando a não controlar minha vida
convivendo com esses homens da minha família e agora até os conhecidos. Todos
com urgências bem maiores que os caprichos de uma adolescente. Fiquei em dúvida
sobre o que vestir para jantar numa aldeia de nômades guerreiros com um líder
que possuía mais de duzentos anos e tendas que pareciam pequenos palácios.
Coloquei meus jeans de sempre imaginando que roupa fosse o que menos importava
para aquela comunidade perdida no meio do mato. Estava enganada mais uma vez.
Não foi difícil encontrar o local do “jantar”, só precisei seguir a
música e minha intuição de que participaria de uma festa. Só não sabia o
motivo, mas aprendi rapidamente. Quando cheguei ao centro da aldeia as pessoas
vieram em minha direção, sorridentes, e
me entregando presentes, colocando tecidos e colares em meu pescoço, dançando e
cantando numa língua que eu não entendia. As moças me levaram até a cadeira
onde Ferus estava sentado. Ao seu lado outras cadeiras ocupadas pelo que depois
soube serem seus filhos. Contei dezesseis rapazes, mas esses eram somente os
primogênitos dessa geração. Só então compreendi o que ele quis dizer com “perder
pessoas queridas” ou algo do gênero. As moças que me serviram de guias estavam
vestidas com túnicas de linho puro bordadas com fios de ouro. Senti-me deslocada.
Não só pela roupa, mas pela alegria e intimidade com que me tratavam. É um
pouco desconcertante ser tratada com intimidade por desconhecidos. Sentei-me na
cadeira indicada. A mesa estava longe de onde me colocaram e eu me perguntei se
poderia comer logo, pois minha fome era enorme. As mulheres da aldeia traziam
os alimentos pra gente. Foi estranho. Mas a comida era deliciosa. Não procurei
saber quais eram os pratos, comi com a rapidez de uma prisioneira. Depois me
puxaram para dançar e eu pensei que fosse colocar toda a comida para fora, mas,
felizmente, a dança durou pouco. Ferus interrompeu a todos e falou com uma voz
impressionantemente audível por todo o arraial:
- Irmãos e irmãs, meus filhos, meu querido povo. É com enorme felicidade
que apresento a vocês a Escolhida! Seu nome é Lílian e ela ficará conosco até o
dia propício para seu comparecimento diante de seu povo como herdeira de
Azagaia e da profecia de Morian. Quero que ela seja tratada como irmã e filha
de cada um de vocês. Ela é neta de vosso irmão Silvestre e, como tal, merece
nosso melhor tratamento.
Ao ouvir aquelas palavras, todos aplaudiram e olharam pra mim mais
sorridentes ainda, se isso era possível. Eu estava atônita. Que profecia era
essa? Quem era Morian? E, o que me deixava ainda mais intrigada: porque Ferus
se referiu ao meu avô como “irmão” de seu povo? Encarei Ferus como quem fazia
todas essas perguntas com o olhar, mas não o encontrei no lugar onde deveria
estar. Tentei sair dali para ir atrás dele, mas o rapaz que segurou meu cavalo
quando cheguei veio em minha direção e sussurrou ao meu ouvido: - "Depois. Agora não é hora de respostas". Como se alguma vez na minha vida, minhas dúvidas coincidissem com as respostas que precisava!
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O nome dele era Alix. Fez sinal para que o seguisse e eu simplesmente me
deixei levar pela curiosidade. Era o mais jovem dos primogênitos. Entre os
planicianos todos os filhos mais velhos de cada mulher do líder tinham os
mesmos direitos de sucessão ao trono e divisão na herança. Para que um deles se
tornasse o líder do povo, Ferus deveria morrer, portanto, todos ali se
acostumaram a um pai longevo e sabiam que era grande a possibilidade de não passarem
de príncipes. Caso a profecia se cumprisse e Ferus se tornasse um mortal comum,
ainda assim teriam que passar pelas Provas Severas, uma sequência de testes de
onde só um dos herdeiros poderia sair vencedor. E o prêmio era o trono. Havia
alguma harmonia na maneira como viviam e eu julguei ser, em parte, fruto da
autoridade de Ferus. Pensei no meu pai. Onde estaria? Será que estava sendo bem
tratado? Fomos até a parte mais fechada da floresta, um lugar só reservado aos planicianos.
Era bem frio ali. As árvores altíssimas e de troncos muito grossos indicavam o
tempo de suas vidas. Era estranho imaginar que somente essas árvores poderiam
ser mais velhas que Ferus. Havia uma pequena trilha que serpeava entre as
pedras, onde apenas uma pessoa de cada vez poderia passar. Alix passou para as
minhas mãos um dos dois lampiões que ele trazia. O chão era recoberto de
pequenas plantas rasteiras e bromélias, orquídeas e briófitas subiam nos
troncos de todas as árvores. Havia uma neblina suave envolvendo nossos corpos e
todas as outras coisas ao redor. Os troncos dos jacarandás eram tão espessos
que seriam necessários ao menos quatro adultos para abraçá-los; o perfume de
mato fresco era estonteante, e, ao longe, podíamos ouvir as corujas e outros
animais anunciando a noite que começava a pesar sobre nossos ombros.
Paramos numa clareira e Alix estendeu sua capa sobre umas pedras para que
eu me sentasse. Lembrei-me de Daniel e de sua gentileza. Como eu poderia
suportar a distância? Será que a floresta permitiria a entrada dele? Quanto
tempo eu teria que esperar para vê-lo novamente? Olhei para a lua e suspirei.
Acho que Alix percebeu minha tristeza e quebrou o silêncio:
- A lua ou as estrelas? – ele disse.
- O quê?! – respondi – Não entendi.
- Você prefere a lua ou as estrelas?
- Acho que o conjunto da obra.
Ele riu. Nós rimos. Depois foi minha vez de perguntar:
- Alix, você pode me explicar o que está acontecendo? Qualquer coisa é
melhor que ficar no escuro. Não suporto mais tanto mistério. Estou a ponto de
explodir.
- Posso. Mas vou logo te avisando que só estamos aqui, porque Ferus me
pediu para conversar com você e esclarecer algumas coisas. Não sei se você já
notou, mas ele não é muito bom com conversas.
- Não achei tão ruim. Soube me contar direitinho a história dele com Agassi.
Mas é um pouco impaciente. Pensei que a idade trouxesse mais paz aos corações.
Ele é bem tempestuoso para quem é tão velho!
- Olha quem fala! – ele disse.
- Mas eu sou uma menina! E adolescente. Tenho todo o direito do mundo de
ser intempestiva.
- Pode ser. De qualquer forma, isso é uma qualidade em nosso mundo.
- Você vai começar a me contar alguma coisa ainda hoje?!
- Claro! Ouça com cuidado e não me interrompa. Temos pouco tempo até a
chegada dele.
Nem era preciso me dizer quem chegaria.
- Você observou a festa que fizeram na aldeia, claro. – ele continuou –
Essa festa é uma comemoração ao fato de termos te encontrado, com certeza, mas
não é só isso. Fazemos essa festa todas as vezes que um irmão ou irmã retorna
ao lar. - Um milhão de perguntas pipocaram em minha cabeça na mesma hora, mas
minha curiosidade era tanta que consegui respirar fundo e ouvir o que ele tinha
a dizer. – Sei que você está pensando: Ele enlouqueceu? Eu nunca estive aqui!
Não sou uma planiciana. Sou uma Gutierrez! Mas a verdade é que você nos
pertence. Você ocupou uma cadeira ao lado de Ferus no banquete. Essa cadeira
tem um dono. Ele se chama Silvestre Gutierrez.
Se eu pudesse ver meu rosto naquele momento acho que não me reconheceria.
Estava sentindo um misto de pavor, surpresa e incredulidade ao mesmo tempo.
Pela primeira vez desde que tudo começou pensei que poderia estar presa em um
pesadelo. O mais louco e criativo pesadelo que já havia tido em minha vida! Mas
me lembrei de Daniel e desejei que fosse tudo realidade.
- Lílian, o que tenho a te dizer é simples. – Alix continuou em um tom
firme, mas educado – Só uma união entre os descendentes de Ferus e Agassi é que
poderia substituir a deles no feitiço dos desejos. Pensamos que isso
aconteceria com sua mãe, mas ela se apaixonou por um Amaral. Então você
apareceu e a esperança voltou ao coração de Ferus. Como isso seria possível se
Agassi morreu esperando seu filho? Aí que a coisa se complica. A notícia que a
serva de Agassi levou a Ferus era enganosa. Agassi não havia morrido.
Infelizmente, a criança nasceu morta e a princesa foi mantida prisioneira no
palácio do próprio pai. Ela acreditava que a criada havia levado a Ferus a
notícia de que ela o esperava. Os anos se passaram e ele nunca chegou para
buscá-la. Depois de quase doze anos de cárcere, Agassi não suportou mais a
solidão e aceitou as condições de seu pai para ser posta em liberdade. Teria
que se casar com um homem que ele escolheria e providenciar um herdeiro para o
trono da Ilha do Véu. Ela se casou e teve um filho. Agassi morreu logo depois
do parto. Depois você ficará sabendo como descobrimos toda a história. O
importante é que você saiba que ela gerou descendentes e isso possibilita o
cumprimento da profecia.
- Eu não vou me casar com nenhum descendente de Agassi! – gritei. E minha
própria voz me assustou. – Já tenho um namorado e é com ele que quero ficar!
- Daniel Castilho? – a voz de Ferus perguntou atrás de mim.
- Como você...?!
Eu tinha lágrimas nos olhos quando me virei para Ferus e ele respondeu à
própria pergunta com a revelação mais louca de todos os tempos.
- O nome dele na verdade é Ori. É o príncipe herdeiro da Ilha do Véu e
descendente direto de Agassi.
XVII – Quebra de acordo.
Foi exatamente a partir dessa noite que comecei a sonhar com o mar de
vidro com mais regularidade. Impossível manter o inconsciente sob controle,
principalmente depois de sucessivas exposições a tão altos níveis de estresse.
Aquela revelação me deixou inquieta por três dias. Fui para a tenda e não saí
mais de lá até digerir toda a história. Isolamento. Dor. Confusão. Assim que
tomei uma decisão procurei Ferus e comuniquei a ele minha vontade: - Quero
vê-lo! – eu disse. Ferus não me negou a possibilidade de encontrar Daniel ou
Ori. Somente impôs suas condições, como era de se esperar.
- Você só poderá vê-lo quando estiver pronta. – falou.
- E quando será isso? – minha ansiedade era perfeitamente perceptível
enquanto eu falava.
- Quando você puder assumir seu posto de líder de Azagaia, depois que
você tiver unificado as cinco cidades e possuir a força política dos cinco
dirigentes.
- Mas isso só acontecerá quando eu tiver dezesseis?! Será daqui a três
anos!
- Dois anos e um mês, na verdade. Esqueceu-se de seu aniversário,
Lílian?!
- Mas como eu pude?! Havia mesmo me esquecido que farei catorze em menos
de um mês! Vocês estão me enlouquecendo!
- Não seja uma menina chorona. – ele continuou – Será bem melhor se você
sair de sua reclusão e começar a treinar com Alix para ser uma boa guerreira,
caso os planos de paz não saiam conforme o esperado. Se a profecia estiver
certa, você terá que enfrentar forte resistência. Seu tio paterno não entregará
o poder tão facilmente. Ele possui aliados que estão sob seu domínio por medo,
e essa é sua maior fraqueza. Vamos atacá-lo em seu ponto fraco: a soberba.
Prepare-se que os treinos começarão ainda hoje. Já perdemos tempo demais.
Sempre que Ferus impunha sua vontade, a minha era a de virar as costas e
sair. Simples assim. Mas meu pai estava em minha cabeça constantemente. Por ele
eu suportaria todos os Ferus do mundo. Alix chegou perto de mim sem que eu
percebesse e estremeci quando ele se fez notar. Ele sorriu.
- Ferus é realmente um nome perfeito para uma criatura tão insolente e
insensível. – reclamei.
- O nome dele não é Ferus – disse Alix.
- E você não vai me dizer logo qual é?! – perguntei impaciente.
- Eliab Akiva Ami III.
- Quer dizer que ainda existiram outros dois com esse nome?
- Ferus é um rei, Lílian. Natural que tenha herdado os nomes de seus
antepassados. Gostaria que demonstrasse mais respeito por nossa forma de vida,
nossa história. Você faz parte dela. Ainda não percebeu que é bisneta de Ferus?
- Desculpe-me. Não foi minha intenção te magoar. Por que ele mudou o
nome?
- Ele não mudou. Depois que um homem é amaldiçoado em nosso povo passa a
usar outro nome para não carregar a maldição para o nome original. Assim,
quando ele se livra do castigo, pode voltar a usar sua identidade sem medo de
algum sinal da maldição. Foram os anciãos da tribo que escolheram esse novo
nome. E desde então ele não parou de lutar para recuperar sua vida.
- Quer dizer que eu e Daniel teremos que herdar uma maldição?! Mas que
injustiça!
- Ferus jamais faria isso com uma descendente dele, Lílian. Você não sabe
nada sobre ele. Vocês ficarão por pouco tempo como representantes dele nessa
maldição. Assim que vocês concluírem o processo que os levará a herdar o
feitiço dos desejos, basta que se casem para que seja desfeito. E Ferus poderá morrer
em paz. E Toda a nossa região poderá ter paz.
(continua)
- Mas os planos...
- Os planos serão revelados quando você estiver mais madura para
compreendê-los. Não se preocupe.
- Só me preocupo com uma coisa. Quanto tempo meu pai terá que ficar sob o
domínio dos continentais até que possa ser libertado?
- Hum... Sobre isso só posso adiantar para você que Ferus já enviou
representantes que possam fazer um acordo com Ori para que a vida de seu pai
seja poupada. Acredite Lílian, se esse rapaz amar você não há porque se
preocupar. Ele não permitiria que seu pai sofresse qualquer dano. Não acha?
- Pensando por esse lado... Daniel não faria mal a meu pai, realmente.
- Pois então? Esvazie sua mente de preocupações e dedique-se ao
treinamento. Podemos começar?
- Sim. Prometo que serei dedicada.
Fomos para uma área da floresta um pouco mais adiante do local onde,
alguns dias antes, Alix e Ferus me revelaram que Daniel é Ori e que eu sou uma
planiciana. Meu Deus! Eu sou uma planiciana! Só agora me ocorreu que eu não
imaginava como a família Gutierrez pudesse ser descendente de Ferus. Mais uma
pergunta para acrescentar à minha interminável lista de mistérios que envolviam
minha família. Mas agora eu precisava me dedicar ao treinamento. Fiz uma
promessa e costumo cumprir a palavra empenhada. Caminhamos pelo o que me pareceu
uma hora mais ou menos e chegamos ao lugar onde eu me tornaria uma guerreira
planiciana, a menina que reclamaria a liderança de Azagaia, a Escolhida.
Passamos todo o dia sem comer ou beber nada, e Alix me ensinava posições que eu
deveria repetir ao ficar de pé ou deitada diante de um inimigo. Também me derrubou
ao chão várias vezes, de forma que eu estava cansada, dolorida, com fome, frio
e sede ao cair da tarde. De nada adiantava reclamar. De acordo com ele não
haviam banquetes no campo de batalha; nem banheiros, ou camas, ou qualquer
outra coisa que não fosse lutar para não morrer. Portanto, minha primeira lição
foi de resistência. Quando começou a escurecer e ele deu sinais de que a aula terminaria
eu pude sentir que minha cabeça estourava, meus braços e pernas estavam
trêmulos e todos os músculos do meu corpo pareciam que estavam prestes a se
descolar dos ossos. Um caos. Só o meu pai para me fazer resistir a tanta
brutalidade. Queria chorar, mas não faria isso na frente de ninguém. Voltamos
por um caminho diferente e eu reclamei que dessa forma eu nunca aprenderia a
andar por ali sozinha. A resposta foi desanimadora.
- Não se preocupe, voltaremos aqui muitas vezes durante esses dois anos.
Você acabará aprendendo. – disse Alix.
- Não existem feriados e finais de semana para os planicianos? –
perguntei.
Alix se limitou a me olhar com um ar de enfado e continuamos o caminho em
silêncio.
Os dias se sucederam com treinamentos cada vez mais pesados. Depois de vinte
e seis dias de testes físicos terríveis foi a vez do teste emocional. Alix me
comunicou que eu deveria ficar numa cabana no meio da floresta com água e
comida suficientes para três dias. Ao final desses dias eu deveria buscar o
caminho de volta à aldeia sozinha. A ideia era que eu ficasse incomunicável e que
contasse apenas com minha própria capacidade. Caso encontrasse alguém não
poderia me comunicar através de palavras, mas apenas de gestos. Compreendi e
aceitei o desafio. Alix me deixou em uma pequena cabana e partiu sem se
despedir, simplesmente virou as costas e sumiu entre a folhagem. As primeiras
horas foram terríveis, mas nada se compara com uma noite na floresta. Eu ouvi
todos os barulhos imagináveis. Não sei dizer se o som vindo das árvores e
arbustos se mexendo era do vento ou de algum animal, ou se Alix ou Ferus
estavam lá fora velando por mim. Só sei que uma noite nunca me pareceu mais
longa que aquelas que passei sozinha bem no meio da Floresta Descomunal. De dia
precisei dividir a comida e a água para que não ficasse sem ter como me
alimentar e o que beber durante esse período. Ninguém passou por lá. Depois de
algumas horas sem ter com quem conversar tudo o que eu queria era encontrar uma
pessoa, qualquer uma, para falar sobre qualquer coisa. O silêncio é
estarrecedor quando não temos opções de quebrá-lo. Passei a tarde do primeiro
dia cantarolando músicas que aprendi com Flora em Azagaia. Por onde ela
andaria? O que estaria fazendo? Como estaria minha amiga? Que saudades! Quando
a noite caiu mais uma vez eu entrei em desespero. Chorei, tremi, pensei que não
suportaria todos aqueles sons noturnos da floresta mais uma vez. Mas, no meio
da madrugada a porta da cabana se abriu e, antes que eu caísse dura naquele
chão de madeira, a cabeça de Trevo surgiu na base da porta e eu pude entender o
que é alívio de verdade. Não sem antes perceber que todo o meu corpo formigava.
Abracei meu amigo com lágrimas nos olhos. Percebi que havia algo pendurado em
sua coleira e passei a mão sobre seu pescoço. Encontrei um bilhete e abri.
Dizia o seguinte:
“E aí, menina corajosa, está sobrevivendo? Falta pouco. Aguente firme.
Use Trevo para retornar à aldeia. E destrua esse bilhete para que Ferus não
descubra que eu mandei ajuda”.
Alix
Sorri e pensei na fazenda, nas tardes debaixo dos jacarandás com Sara e
Felipe. Quando passamos por momentos difíceis, não é só a família que nos dá
forças para continuar. Os amigos também têm responsabilidades sobre nossa decisão
de continuar firmes. Lembrei-me de Flora, Sara, Felipe, e pensei que havia um
novo amigo para acrescentar a essa lista: Alix. É verdade que ele atendia aos
requisitos para amigo e família ao mesmo tempo, uma vez que fosse irmão do meu
avô. Que loucura! A noite terminou sem maiores problemas afinal, eu não me
sentia sozinha com Trevo ao meu lado. Amanheceu e eu pude retornar à aldeia.
Simplesmente segui o conselho de Alix e deixei que Trevo me levasse de volta. Nem
percebi o tempo passar enquanto caminhava.
Havia uma festa na aldeia dos planicianos. Não como aquela de meu
acolhimento, mas uma festa cheia de simbologias e rituais. Era a minha cerimônia
de iniciação, um rito de passagem ou algo do gênero. No dia seguinte seria meu
aniversário, mas essa não era uma data importante ali. O que interessava aos
planicianos era saber que eu possuía as mesmas qualidades que eles respeitavam
nas pessoas. Sem essas qualidades eu nunca seria uma semelhante, jamais seria
aceita. E eu consegui! A má notícia era que o treinamento para a guerra ainda não
havia começado. Para receber lições de uma guerreira eu precisava primeiro
provar ser uma. Eu teria o dia seguinte de descanso e, depois voltaria ao
treinamento, mas dessa vez com muito mais severidade. Preferi não pensar nisso
naquele momento. Para que todos pudessem notar minhas habilidades fizemos uma
simulação de luta entre mim e Alix. Foi interessante. Senti uma brisa de poder
bater em meu corpo e passar por mim como se eu fosse um filtro, alguma coisa
permaneceu. Depois comemos e bebemos até a madrugada. Fui para a tenda com
Trevo e um sorriso rasgado no rosto. Estava feliz.
O dia amanheceu debaixo de uma forte tempestade. A aldeia ficava em uma
parte mais alta da floresta, portanto estávamos a salvo de alagamentos. A região
de Azagaia é famosa por suas enchentes. A fazenda dos Gutierrez também ficava
em um terreno bem alto. Mas em Cabeceira, uma cidade que inundava com
facilidade, as casas eram construídas sobre camadas de pedras que as deixavam
mais altas. Será que minha casa ainda estava de pé? Será que um dia eu voltaria
ao meu lar?
Não saí da tenda durante toda a manhã. Ninguém veio me ver além de Zorax,
a moça que era responsável por atender minhas necessidades de comida e outras
questões de ordem prática. Zorax não era uma empregada como as que eu conheci
na minha cidade e na fazenda. Ela era uma voluntária. Alguém que acreditava
estar cumprindo uma missão ao facilitar a vida de um guerreiro. Só os
guerreiros possuíam uma assistente na aldeia. Achei ótimo!
Aproveitei o tempo livre para ler meu livro preferido e ver se conseguia
retirar mais informações a respeito da origem da guerra em Azagaia. Acabei
adormecendo sobre o livro. Acordei com uma voz muito familiar que me chamava com
carinho. Abri os olhos e pisquei muitas vezes até perceber que minha saudade não
havia me enlouquecido.
- Vovô! Que bom que está aqui!
- Senti sua falta, minha pequena!
Meu avô Silvestre ali era o melhor presente de aniversário que eu poderia
ganhar. Senti amparo em seu abraço caloroso. Senti o cheiro da fazenda e de
tudo o que ele representava. A chuva havia estiado e o ar estava fresco, o que
combinava perfeitamente com as lembranças que eu carregava. Olhei bem para o
meu avô e percebi que estava abatido. Fiquei preocupada, mas conheço Silvestre
Gutierrez tempo suficiente para saber que uma pergunta direta o faria recuar.
Então falei sobre mim, sobre os dias de treinamento, sobre o que Ferus e Alix e
todas as outras pessoas na aldeia haviam me dito... Ele ouvia tudo com muita
atenção e interrompeu poucas vezes para me fazer voltar ao assunto (porque
tenho essa mania de divagar). Depois que me senti pisando em terra firme
perguntei:
- Como estão as coisas na fazenda vovô?
- Agora tudo está mais calmo. Recebemos o apoio de todos os moradores de
Poço das Almas e Tornados se juntou à nossa causa. Resistimos com poucos, mas
valiosos homens. Expulsamos a família Amaral de nossas cidades e criamos um
pequeno exército que guarda nossas fronteiras. Você nem queira saber como foram
os primeiros dias. Sua mãe, sua avó e Berenice estão com muitas saudades.
Trouxe algumas coisas que elas prepararam para você. Algumas roupas também. Na
próxima vez que eu vier tentarei trazer sua mãe.
- Tudo bem, vovô. Até que aqui não é tão mal depois que a gente se
acostuma. Vovô?
- Pergunte Lílian.
- Como você pode ser filho de Ferus e de Pedro Gutierrez ao mesmo tempo?
- Estava esperando você perguntar. Até que demorou bastante! Bem,
obviamente que isso seria impossível. Só posso ser filho de um deles, certo?!
Fiz sinal de afirmativo com a cabeça e ele continuou:
- Pois bem, Ferus é o meu pai biológico, ou seja, temos o mesmo sangue.
- Eu sei o que significa vovô!
- Desculpe, não pretendia ser arrogante.
- E não foi. Vamos lá! Conte!
- Quando completei quatro anos, minha mãe apaixonou-se por Pedro
Gutierrez, e fugiu da aldeia para viver com ele. Era uma das esposas de Ferus e
meu pai pretendia tomá-la de volta. Mas quando chegou a essa mesma fazenda que
você conheceu, encontrou minha mãe tão feliz que não foi capaz de usar a força
para resgatá-la. Preferiu deixar claro que ela poderia voltar um dia se
precisasse e voltou para a aldeia decidido a tirá-la do coração. Quando chegou
aqui eu ardia em febre e fiquei assim por vários dias até que ela viesse me
ver. Com o consentimento de Ferus minha mãe me levou para viver com ela e Pedro
Gutierrez me recebeu como a um filho. Foi assim que me tornei herdeiro de dois
homens notáveis.
- Compreendo. Outra coisa? Lembra-se de ter me dito uma vez que Felipe e
Sara são planicianos? O que eles são da gente?
- São nosso povo. Orestes é meu voluntário e um grande amigo. Ele decidiu
me servir depois que me tornei um guerreiro. Com onze anos eu voltei para cá e
passei por tudo o que você está passando, Lílian. Tínhamos a mesma idade e já éramos
inseparáveis. Mas ele não quis passar pelos testes e preferiu ser voluntário.
- E do meu pai? O senhor sabe alguma coisa?
- Sei que ele está bem guardado. Fizemos um acordo e Ori é um rapaz de
palavra. Assim como o era seu pai, o rei Amadeo.
- Quando poderemos libertá-lo?
- Quando estivermos no comando de Azagaia e não oferecermos mais riscos à
Ilha do Véu.
- E quando será isso, vô?!
- Em breve, querida. Em breve.
- Tenho que passar pelo treinamento, não é?
- Não necessariamente, mas ajuda. Na verdade você precisa ter dezesseis.
Antes de atingir a maioridade você não poderá fazer nada. Poderíamos colocá-la
no poder antes disso, mas seria arriscado. Não queremos colocar tudo a perder,
não é mesmo?!
- Entendo. Mas é angustiante.
- O treinamento é importante porque você terá que enfrentar seu tio antes
de qualquer outra coisa. E ele não entregará o poder sem resistir. Redenção está
com ele. Temos Tornados. Agora é manter nossa cidade segura e esperar você
estar pronta.
- Acho que tive uma ideia!
- Fale querida.
- Tenho certeza de que Daniel, quer dizer, Ori, não se negaria a nos
apoiar em um plano para me consolidar na liderança de Azagaia e na unificação
das cinco cidades em um país que assinasse um acordo de paz com a Ilha do Véu.
Só preciso que me consigam uma audiência com ele.
- Lílian, você me deixa orgulhoso, sabia? Como não pensamos nisso antes?
- E quem poderia marcar esse encontro?
- Ferus.
Conversamos com Ferus sobre minha ideia, que ele julgou excelente. Vovô
voltou para a fazenda e eu continuei na aldeia com meu coração mais consolado
por ter notícias de minha família e pela esperança de poder reencontrar Daniel.
O menino lindo que me achava uma pirralha, que eu chamei de fantasma na
primeira vez que o vi, porque não sabia que já estava em meu coração. O garoto
que nunca mais saiu da minha cabeça, o príncipe escondido. Aquele sorriso
perfeito dele não poderia ser de alguém sem coroa mesmo. A nobreza combinava
com ele nos gestos, na beleza, no caráter. Confesso que queria meu pai de volta
mais que tudo na vida, mas que esse não era o único motivo para desejar um
encontro entre mim e Daniel Castilho. Eu precisava saber se ainda havia algo
entre nós. E se ele já tivesse me esquecido? Com o passar dos dias, minha
esperança crescia na mesma proporção do medo de ser rejeitada. Imaginava diálogos
em que ele me declarava seu amor incondicional e outros em que me mandava para
a prisão junto de meu pai. Algumas vezes sonhava que havia uma princesa ao lado
dele na sala do trono e que ele me recebia de longe. Outras vezes, acordava no
meio da noite com a voz dele me chamando. Ah, como amar pode ser torturante
algumas vezes! Isso tudo em meio aos treinamentos cada vez mais pesados a que
eu era submetida. Alix parecia desaprovar minha ida à Ilha do Véu. Achava arriscado.
Ferus, ao contrário, estava satisfeitíssimo e parecia compartilhar da mesma
ansiedade que eu, por motivos diferentes, claro. Depois de duas semanas, o
mensageiro que Ferus havia mandado à Ilha do Véu retornou à aldeia. Vi quando
ele passou correndo entre as mulheres que lavavam as crianças à beira do rio e
acompanhei com os olhos até que ele parou em frente à tenda de seu líder. Em menos
de um minuto já não estava mais ali, mas no interior da tenda informando a
decisão do príncipe Ori. Meu corpo formigou como nos velhos tempos. Mais uma
vez senti que nada me pertence, nem mesmo o caminho que desejo trilhar é uma
escolha só minha.
Não consegui resistir e caminhei até a entrada da tenda de Ferus para
aguardar uma notícia. Alix me observava de longe e eu pude perceber que havia
desaprovação em seu olhar. Não pude lidar com ele naquele momento. O amor tem
isso de exigir toda a nossa concentração. E ali eu estava concentrada nos dois
amores de minha vida: Camilo Amaral e Daniel Castilho. Quando o mensageiro saiu
da tenda não se surpreendeu com minha presença ali. Ao invés disso falou que
Ferus me aguardava e continuou seu caminho. Entrei imediatamente.
- Como sabia que eu estava aguardando aí fora? – perguntei.
- Prepare-se para partir amanhã antes do nascer do sol. Ori concordou com
uma audiência.
No mesmo instante meu sorriso se abriu fazendo com que Ferus estreitasse
os olhos.
- Obrigada. – eu disse – Não irei decepcioná-lo.
- Sei que não. Mas cuidado para não se decepcionar.
Aquelas palavras tiraram completamente meu sorriso do rosto.
- Por que diz isso? – perguntei.
- Para que você não se esqueça de quem é e o que vai fazer na Ilha do
Véu. Tenha sempre em mente, Lílian, que você não vai rever o menino que
conheceu em Cabeceira, mas um rei que tem obrigações para com seu povo. E você
também tem responsabilidades.
Ouvi as palavras de Ferus como se uma pedra estivesse sendo amarrada ao
meu coração. Não pude dormir aquela noite e, antes da hora combinada estava
aguardando a comitiva que me levaria à Ilha do Véu. Alix, Amine, Geriá e o
mensageiro que descobri se chamar Gaudart. Todos eram filhos de Ferus e,
portanto, meus tios. Partimos ainda de madrugada. Estava frio e a floresta
parecia assustadora. O fato de que nenhum deles abria a boca para dizer
absolutamente nada ainda tornava a viagem mais difícil e demorada. Para
chegarmos à terra de Daniel precisávamos atravessar a Floresta Descomunal, a
parte norte de Poço das Almas e, a etapa mais difícil, navegar pelos Mares
Bravios. Eu passaria perto de minha mãe e não poderia parar para vê-la. Isso me
incomodou bastante. Pensei no meu pai e segui meu caminho em silêncio. Depois
de cinco dias a cavalo alcançamos a Praia das Ausências onde Orestes nos
aguardava com uma pequena embarcação. Não tive tempo de conversar com ele, mas
trocamos olhares e ele sorriu para mim. Acreditei que aquele era um sinal de
que tudo estava bem. A esperança é uma tristeza compartilhada.
Depois de dois dias navegando pelos Mares Bravios aportamos na Ilha do
Véu pela parte norte, aos pés do Monte Depo. Havia uma comitiva que eu
acreditava ter sido mandada por Daniel para nos receber. Gaudart e Alix ficaram
apreensivos com o numero de guardas que nos esperavam. Eram vinte homens armados
e com expressões nada agradáveis. Também não me senti segura, mas não sabia o
que esperar. Aos poucos eles abriram passagem e um homem baixinho e com uma
barba bem longa se aproximou seguido por alguns guardas que seguravam o que
parecia conter o corpo de um homem. Recuei. Alguma coisa ali não estava certa. Fiquei
tão nervosa que não conseguia ouvir o que o homem falava com Alix. Só entendi
as últimas frases:
- Vocês não são bem-vindos. Sumam daqui e levem esse assassino com vocês!
Ele teve o que mereceu.
Os guardas depositaram o ataúde no chão e seguiram o homem. Tentei me
aproximar, mas Alix não permitiu. Uma onda de ódio e desespero invadiu meu
corpo e eu gritei para que ele me largasse. Assim que me vi livre dos braços de
Alix corri para junto do caixão e afastei o lençol que o cobria. Uma dor
indescritível atingiu meu corpo como um raio quando confirmei o que me coração
não queria acreditar. Meu pai havia sido morto pelos continentais.
XVIII – Amor e ódio.
Não sei quanto tempo passei debruçada sobre o corpo inerte do meu pai.
Senti um par de mãos fortes me levantando do chão. Não havia som. De repente tudo
começou a voltar e um choro compulsivo arrebentou em meu peito. Alix me ergueu
e aninhou-me em seus braços como meu pai ou vovô fariam. Entendi seu papel
naquele instante. Levou-me em direção ao barco e, quando percebi que deixaríamos
a ilha falei entre soluços que queria ver Daniel e saber o motivo de tudo
aquilo. Porque ele havia faltado com sua palavra? Porque matar meu pai? Queria
encará-lo e dizer o quanto o odiava, apesar de não estar muito certa disso. A
resposta não veio de Alix, mas de Gaudart:
- A morte de seu pai já é a resposta de que precisamos Lílian. Eles
acabaram de declarar guerra a Azagaia.
- Mas isso não faz sentido! Ele nos aguardava para um acordo de paz,
porque colocaria tudo a perder para iniciar uma guerra que não fará bem a
nenhum de nós? – perguntei.
- Realmente não faz o menor sentido. – disse Alix – Acho que um de nós
deve permanecer na ilha e procurar o motivo dessa atitude. Isso não está me
parecendo nada bom.
- Eu ficarei. – Gaudart respondeu – Conheço a ilha como a palma de minha
mão. Já fiz muitas incursões por aqui, inclusive com Camilo. Ele foi um bravo
guerreiro e excelente companheiro na batalha. Já me salvou das mãos dos inimigos
por diversas vezes. É uma questão de honra descobrir o que aconteceu a ele.
Levem a menina e o copo dele daqui. Vocês precisam passar por Poço das Almas e
entregar o corpo de Camilo à Marina para que tenha um enterro digno. Eu cuido
do que vocês deixarão para trás. O fato de terem matado Camilo é estranho, mas
nos deixar vivos ainda me parece mais inexplicável ainda. Estarei com vocês em
alguns dias. E Lílian? Sinto muito.
Agradeci e partimos. Fiquei ao lado do corpo do meu pai durante toda a
viagem de volta. Ele parecia dormir. Por quanto tempo teria sofrido? Qual foi
seu último pensamento? O que não dissemos um para o outro que ainda faltasse
ser dito? Como eu poderia ficar sem sua voz grave narrando para mim as mais
belas histórias do nosso povo? Eu aprenderia agora o significado de nunca mais.
Algo pelo qual eu nunca havia esperado. Para o que eu nunca havia me preparado.
Na medida em que nos aproximávamos da costa de Poço das Almas, minhas
forças pareciam se esgotar. Eu teria que lidar não somente com minha dor, mas
com o sofrimento de minha mãe, meus avós, pessoas que eu amo e que não queria
ver sofrer por nada nesse mundo. Nada daquilo fazia o menor sentido. Parecia um
pesadelo. Por que motivo Daniel me convidaria à ilha para me entregar o corpo
de meu pai? E quem era aquele homem de barba comprida e olhos de pedra que nos
recebeu com um convite à guerra? Descemos do barco e entramos em uma pequena área
da cidade que liga o litoral à fazenda de meu avô. É o caminho mais curto, mas
também o mais difícil. Apesar de pouco populoso, passamos por diversos
conhecidos durante nosso trajeto. Os olhares variavam de solidariedade a pavor,
de acordo com o entendimento da pessoa com o que acabava de acontecer. Muitos viram
em nossos olhos apenas dor. Os mais experientes viram a guerra. O sangue nos
perseguia desde a Ilha do Véu, desde a fundação das cidades, desde antes da
chegada dos fundadores, quando essa região era motivo de disputa entre
continentais e planicianos. E se eu pudesse visitar o passado, com certeza
descobriria que o sangue separava as pessoas desde muito antes disso. Eu odiei
toda aquela batalha por chão, poder e dinheiro. Não passava disso. Todos ali
queriam a garantia de que não seriam dominados por quem consideravam menos
preparados que eles. Como num jogo de tabuleiro, éramos peças sendo
movimentadas pela necessidade de sobrevivência. Decidi que não seria o próximo
peão a sair do jogo. Queria a promoção a qualquer custo! Eu lutaria até o fim
de minhas forças para ganhar essa batalha e colocar um ponto final em toda
aquela estupidez.
Precisava encontrar Ferus e saber qual seria nosso próximo passo. Estava
confusa demais para ver a situação com imparcialidade. Minha vontade era
procurar Daniel, Ori, ou seja lá qual fosse o nome dele, e tirar a limpo o que
aconteceu ao meu pai. Por outro lado eu imaginava que ter saído viva da ilha não
parecia o tipo de coisa que acontece toda hora na vida de uma inimiga dos
continentais. E bastava de sofrimento para minha família, pelo menos por hora.
Já achei perigoso Gaudart ter ficado na ilha depois de nossa partida. De
qualquer forma, eu precisava saber o que estava acontecendo. Enquanto me
aproximava da fazenda de minha família, com Alix e Geriá carregando o ataúde
com o corpo do meu pai, lembrei-me de ter visto Gaudart circundado o sopé do Monte
Depo para entrar pelo outro lado, uma vez que alguns soldados permaneceram no
local com a intenção de certificarem-se de que iríamos embora sem problemas.
Nem percebi quando a entrada da fazenda surgiu diante de nossas vistas.
Amine foi quem primeiro anunciou nossa chegada. Ele ia adiante e entoou o cântico
para o luto, que era comum em Azagaia. No mesmo instante os empregados da
fazenda foram surgindo e tiravam seus chapéus na medida em que avistavam a cena
de nosso retorno. Enquanto eu passava pela entrada de carvalhos que eu tinha me
acostumado a observar na esperança de ver a caminhonete de papai, a vontade de
não estar ali crescia em meu coração. Depois da curva de onde a entrada da casa
principal ficava bem visível, levantei minha cabeça e vi parados na porta,
minha avó, Berenice, Olímpio, Sara e Felipe. Caminhando em minha direção estavam vovô e Orestes.
Mamãe corria mais à frente. O encontro foi consolador e terrível ao mesmo
tempo. Minha mãe me abraçou primeiro e olhou bem tudo o que estava visível em
meu corpo. Estava aliviada e desolada ao mesmo tempo. Vovô só olhou pra mim.
Teríamos tempo de falar tudo o que poderia ser dito numa hora como essa.
Naquele momento ele fez o que todo ancião do nosso povo faria diante de um irmão
morto: pegou cinco pedras no chão que representavam as cinco cidades de Azagaia
e colocou sobre o peito de meu pai como sinal das cidades pelas quais tinha
lutado. Depois tomou o lugar de Geriá e carregou o genro pelo resto do caminho.
Não chorou. Os homens de Azagaia não choravam em público.
O restante do dia foi ocupado pelos procedimentos para o enterro de
papai. Eu estive ausente de tudo. Tranquei-me no quarto com Sara e Felipe. Não
falávamos de nada, eles apenas estavam ali. Senti falta de abraçar Trevo numa
hora dessas. Minha avó pediu a Orestes para buscar Flora em Cabeceira. Ele
teria que ir escondido de meu tio, mas Orestes conhecia os caminhos de Azagaia
melhor que ninguém. Era o único homem vivo famoso por entrar quando quisesse na
Terra das Rotas Diagonais e sair ileso. Por muito tempo sua principal função
era a de resgatar os desaparecidos no deserto dos desmemoriados, como chamávamos
a Terra das Rotas Diagonais de vez em quando. Foi ele quem resgatou meu avô de
lá. Meu pai também. E me resgataria um dia.
Vovó preparou bolinhos para as muitas pessoas que chegavam. Eu não tinha
fome. Felipe comeu sozinho o prato cheio de bolinhos que Berenice levou para o
quarto. Impressionante a capacidade dos homens de comer nos momentos mais
inoportunos! Só ouvíamos o som da mastigação dele no quarto e isso me irritava.
Acho que me concentrei naquela raiva porque era mais fácil que a dor. Lá fora a
movimentação era grande. Olímpio substituía o patrão nas tarefas práticas para o enterro. A vovô ficou a dura tarefa de consolar os amigos quando ele mesmo não sentia forças para estar de pé. Alix e os irmãos haviam partido para avisar a Ferus e
aos planicianos o que tinha acontecido. Com certeza eles estariam presentes no
enterro na manhã do dia seguinte. Pensei se eu deveria avisar aos Amaral, mas
me lembrei da arrogância de minha avó paterna quando fui procurá-la e achei
melhor mantê-los longe disso. Até porque não daria certo um enterro com os
Amaral e os continentais presentes. Meu pai não seria o único enterrado, com
certeza. À noite, depois que a maioria das pessoas havia ido embora, desci e
pedi a Berenice que preparasse uma sopa para mim. Foi revigorante. Fui para o
quarto sozinha e dormi até o dia seguinte. Acordei com um barulho de muitas
vozes e percebi que o sol nem havia nascido ainda. Mamãe entrou em meu quarto apressada e vovó
estava com ela. Levantei-me de um salto e olhei para as duas um pouco assustada.
- O que está acontecendo? – perguntei.
- Você não vai acreditar, Lílian, mas os Amaral vieram buscar o corpo de
seu pai.
Antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, Olímpio entrou no quarto e
fez sinal para que fizéssemos silêncio.
- Eles estão procurando por Lílian. –
ele disse. Querem Camilo e ela. Deram um prazo de meia hora, se não for
obedecido invadirão a fazenda e a levarão à força.
- Eu não vou a lugar algum com...
- Lílian, não há tempo para discutirmos. Você precisará partir
imediatamente, não temos a menor chance com você aqui. Se ficar será levada
juntamente com o corpo de seu pai, e eu duvido muito que não tenha o mesmo fim
que ele.
Não tive medo por mim. Infelizmente, minha mãe entrou em desespero.
- Por tudo que há de mais sagrado, Olímpio, salve a minha filha das mãos
dessa família ingrata! – ela dizia tudo em meio a soluços e lágrimas. Não pude
deixar de sentir uma dor aguda no coração. Odiava ver minha mãe sofrer.
- Não poderei fazer muita coisa, Marina. Só permanecer aqui
e tentar retardar ao máximo a entrada deles. Mas isso será inevitável.
- Quer dizer que meus pais...
- Não posso te garantir nada. Só que você precisa levar Lílian para
longe daqui agora mesmo.
- Mas como sairemos daqui? Estamos cercados.
- Venham comigo. Lílian?
Ao ouvir meu nome obedeci instintivamente, mas não conseguia entender o
que poderia acontecer aos meus avós. Ou não queria entender. Olímpio nos levou
até uma passagem subterrânea que havia atrás da adega de meu avô. Era um
corredor enorme e escuro com um aspecto terrível de casa de morcegos e
ratazanas. Tive mais medo de entrar ali do que de enfrentar meu avô psicopata. Minha
mãe também hesitou.
- Marina, agora escute o que vou falar com muita atenção. – a voz de Olímpio parecia tremida e isso era mais assustador
ainda – Sigam essa passagem até o final o mais rápido que puderem. Vocês
encontrarão uma porta de madeira com um gancho no meio. Puxe o gancho, empurre
a porta e saia. Não olhem para trás. Não percam tempo. Vocês sairão na parte
alta da fazenda, aos pés das Montanhas Rochosas. Circulem as pedras até
encontrarem a entrada da Floresta Descomunal. Procurem abrigo por lá e esperem. Daremos um jeito de
avisar a Ferus e ele as buscará. Não saiam de lá em hipótese alguma. Corram,
agora!
Corremos o mais que pudemos, eu e minha mãe, por aquele corredor escuro e
frio, com apenas umas brechinhas por onde a luz passava no alto. Obviamente essas
aberturas foram feitas para iluminar o caminho, mas a noite seria impossível
passar por ali para quem já não conhecesse bem a passagem. Por outro lado, não
enxergar fez com que chegássemos mais rápido à porta de madeira para nos
livrarmos daquele pesadelo. Fizemos tudo como Olímpio nos indicou e entramos na
Floresta Descomunal. Agora era torcer para que Ferus nos encontrasse o mais rápido
possível.
Esperar requer algumas virtudes que eu não possuo: paciência, resignação
e ausência total de ansiedade. O caso é que a vida tenta nos ensinar as lições
que nos são mais difíceis. Para que sejamos pessoas melhores devemos superar
obstáculos. Os meus sempre foram relacionados à impulsividade e indisciplina. Não
há nada mais complicado no mundo pra mim que seguir regras. Não sou avessa às
regras, sou inapta. Na verdade, eu até gostaria que fosse fácil. Queria abrir um
manual e receber todas as respostas que preciso prontas, mas isso não é possível.
E como não tenho a menor habilidade para agir de acordo com o esperado,
faço o que acredito ser o mais apropriado para mim, de acordo com meus
sentimentos. O conselho de Olímpio era para ficar na floresta até que Ferus
fosse nos buscar, mas ficamos por horas escondidas e eu só conseguia pensar em
como as coisas estariam na fazenda. E porque ninguém tinha vindo nos buscar até
agora. Peguei um galho de uma árvore e escrevi na terra úmida um recado para
que minha mãe soubesse que eu não tinha sido sequestrada e que ela deveria
ficar no mesmo lugar para que eu a encontrasse e parti em direção à fazenda. Não
havia notado que estávamos tão longe da casa de meu avô. Acho que andei uns 5Km
a pé até avistar os jacarandás. Tudo estava muito silencioso e me lembro de ter
pensado no quanto isso era um mau sinal. Passei pelos estábulos e pela vila dos
empregados e não havia ninguém. Os cavalos não estavam em suas baias ou em
qualquer outro local, não vi as crianças e, dos animais que costumavam
perambular por ali durante o dia só vi uns porcos enlouquecidos e as galinhas e
patos soltos no campo atrás da casa. Esse quadro acionou o botão de defesa em
mim e entrei sorrateiramente pela porta dos fundos da casa principal que dava
acesso à cozinha. A casa estava toda revirada e havia sangue em alguns lugares.
Senti meu sangue congelar. O coração, ao invés de bater com toda a força,
parecia ter deixado meu corpo. A boca ficou seca e eu cogitei a possibilidade
de não continuar. Mas como eu poderia voltar sem saber o que tinha acontecido
ali? E meus avós? E meus amigos?
Algumas decisões não permitem retorno ao ponto de início. Assim que saí da floresta e fui até a fazenda estava decidido que eu queria saber o que havia deixado para trás. Continuei em frente até que encontrei. O que não significa que tenha sido exatamente o que eu esperava. A casa revirada deixava claro que as coisas por ali não tinham sido fáceis. A cada marca de sangue eu só conseguia imaginar de quem poderiam ser. Andei até ver o primeiro sinal de que meu pressentimento estava correto. Um arrepio percorreu meu corpo da base da coluna até a nuca, irradiando para os braços. Orestes estava caído no chão da varanda, os pés ainda dentro da sala. Morto! Com certeza. Não chorei. Fui até ele bem devagar. Aos poucos, os corpos de vários amigos e conhecidos foram surgindo diante de mim como se eu estivesse no meu pior pesadelo. Olímpio, Aramis, Berenice, Antunes e muitos outros empregados da fazenda. Meus avós! Corri por toda a casa e arredores e não encontrei nada. Bom sinal. Se tivessem sido mortos estariam ali. O corpo do meu pai também havia desaparecido. De repente, contornando o pequeno lago que ficava em frente à casa principal eu vi uma cabeça conhecida e uma onda de choque me atingiu imediatamente: - Felipe?! Não! Oh, meu Deus, o Felipe não, por favor! Que não seja verdade! Infelizmente era meu querido amigo. Um garoto ainda. Quem poderia ser tão cruel a ponto de matar um menino de pouco mais de quinze anos?! Enquanto eu caminhava em sua direção, uma sombra enorme começou a surgir diante de mim e eu girei para trás.
Algumas decisões não permitem retorno ao ponto de início. Assim que saí da floresta e fui até a fazenda estava decidido que eu queria saber o que havia deixado para trás. Continuei em frente até que encontrei. O que não significa que tenha sido exatamente o que eu esperava. A casa revirada deixava claro que as coisas por ali não tinham sido fáceis. A cada marca de sangue eu só conseguia imaginar de quem poderiam ser. Andei até ver o primeiro sinal de que meu pressentimento estava correto. Um arrepio percorreu meu corpo da base da coluna até a nuca, irradiando para os braços. Orestes estava caído no chão da varanda, os pés ainda dentro da sala. Morto! Com certeza. Não chorei. Fui até ele bem devagar. Aos poucos, os corpos de vários amigos e conhecidos foram surgindo diante de mim como se eu estivesse no meu pior pesadelo. Olímpio, Aramis, Berenice, Antunes e muitos outros empregados da fazenda. Meus avós! Corri por toda a casa e arredores e não encontrei nada. Bom sinal. Se tivessem sido mortos estariam ali. O corpo do meu pai também havia desaparecido. De repente, contornando o pequeno lago que ficava em frente à casa principal eu vi uma cabeça conhecida e uma onda de choque me atingiu imediatamente: - Felipe?! Não! Oh, meu Deus, o Felipe não, por favor! Que não seja verdade! Infelizmente era meu querido amigo. Um garoto ainda. Quem poderia ser tão cruel a ponto de matar um menino de pouco mais de quinze anos?! Enquanto eu caminhava em sua direção, uma sombra enorme começou a surgir diante de mim e eu girei para trás.
- Ferus! Como me encontrou?!
- Você não deveria estar aqui, menina desobediente. A ordem era para que
ficasse na floresta até que eu as buscasse.
- Mas como você sabe disso se o Olímpio está morto?
- Sua mãe está lá dentro. Ela veio comigo. E eu recebi a mensagem do Olímpio.
Infelizmente, tarde demais para que o que houve aqui fosse evitado.
- E o que faremos agora?
Antes que Ferus pudesse me responder, um gemido nos chamou a atenção.
Ficamos em silêncio por alguns segundos até que ouvimos a voz de Felipe,
fraquinha, sussurrar novamente:
- Lílian.
Corri em direção a Felipe e ajoelhei a seu lado. Meu amigo estava muito
machucado. De uma forma bem estranha pensei em Flora. Também pensei em como me
sentiria se fosse Daniel ali, estendido na terra úmida, abandonado à morte em
uma luta que nem era dele. Não deveria temer por sua vida. Afinal de contas, ele era o responsável pela morte do meu pai. Se não por ação, com certeza por omissão! Incrível a capacidade humana de divagar por pensamentos
inoportunos nos momentos mais delicados da vida. Incrível como eu poderia ser a
miss universo nesses pensamentos! Ferus me afastou com as mãos e voltei à
realidade. Ergueu Felipe no colo. Carregou-o para dentro de casa. Quando mamãe
nos viu congelou entre a porta interna da sala e a cozinha. Ficou por um tempo
que me pareceu logo parada dando-me a impressão de que o tempo também havia
parado. Sensação estranha. Finalmente, ela despertou do choque com as palavras
de Ferus:
- Marina, traga água e algumas toalhas. Todas as toalhas que encontrar
que estiverem limpas. Coloque uma grande quantidade de água para ferver também.
Lílian venha aqui e desocupe essa mesa. Depois vá até o quintal e colha algumas
folhas de vandrana e traga algo com o que eu possa aquecê-las. Procure um
lençol limpo e uma tesoura. Precisarei que você corte esse lençol em tiras.
Vamos! Andem rápido!
Minha mãe e eu fizemos tudo o que Ferus havia nos indicado. Depois que todos
os ferimentos de Felipe haviam sido cuidados, arrumei um dos quartos para que ele
dormisse. Ferus nos alertou sobre a necessidade do convalescente descansar
antes de responder a qualquer pergunta sobre o que havia acontecido ali. Felipe
estava fraco demais. Ainda tínhamos muitas providências a tomar. Precisávamos
recolher todos os corpos e dar um enterro digno a eles, lavar a casa e tirar as
marcas de sangue que estavam espalhadas por todo lado, avisar aos parentes,
convocar os príncipes dos planicianos para uma reunião para decidirmos que
resposta daríamos aquela barbárie e, a mais importante de todas, descobrir o
que aconteceu aos meus avós e à Sara. Não havia sinal de nenhum dos três na
fazenda e isso era um grande motivo de preocupação. Antes de iniciarmos a “limpeza”,
como disse minha mãe, Ferus se afastou e eu o acompanhei. Caminhou até onde
estava seu cavalo e acariciou o corpo do animal como se o preparasse para a
missão que confiaria a ele. Aproximei-me com cuidado a tempo de ouvi-lo
sussurrar na orelha de Ulisses:
- Vá agora, meu amigo, e traga-me Alix.
E o cavalo partiu para a Floresta Descomunal.
Depois que Ulisses partiu em busca de Alix, minha mãe e eu limpamos toda
a casa, enquanto Ferus fazia os preparativos para os enterros. Não foi nada fácil.
Se você nunca precisou tirar manchas de sangue de paredes e assoalhos da própria
casa não faz a menor ideia do quanto é feliz. Eu só conseguia pensar no que
teria acontecido a meus avós. Se não estavam entre os mortos havia uma grande
chance de que tivessem sobrevivido. Mas onde estariam? Fugiram? Ferus
acreditava que eles estivessem na aldeia. De qualquer forma as respostas viriam
até nós. Precisávamos esperar. Quando me deitei àquela noite para dormir não
consegui fechar os olhos apesar de estar exausta. Então, durante a madrugada,
levantei-me e fui para o quarto de Felipe.
Empurrei a porta devagar. O quarto ainda mergulhava no silêncio da
madrugada. Lá fora o vento formava uma melodia triste e altissonante quando
passava pelas folhas dos jacarandás. O cheiro de vandrana se misturava ao de
sangue e à lavanda usada tanto para afastar os escorpiões como para conferir às
roupas de cama um perfume mais agradável que o mofo dos tecidos guardados por
muito tempo. Felipe dormia profundamente. Andei até o sofá que ficava em frente
à cama e deixei-me abandonar entre as almofadas. Queria ser a primeira pessoa a
falar com ele quando acordasse. O que quer que tenha acontecido ali, eu saberia
antes de qualquer acordo de silêncio que Felipe tivesse que fazer a Ferus. Era
minha chance de descobrir a verdade sobre alguma coisa naquela loucura toda. O
cansaço era tanto que minha cabeça começou a doer. Mas não cedi em nenhum
momento e permaneci dura, impassível, acordada. Antes do amanhecer, ouvi
gemidos e Felipe começou a dar sinais de não estar dormindo profundamente. Fui
até a cama e me sentei na pontinha com toda delicadeza que uma pessoa ansiosa
por falar com alguém que dorme poderia fazer. Felipe abriu os olhos e deu um
salto seguido de um grito de dor.
- Shiiiiiiiii! Quieto! Quer acordar Poço das Almas inteira?! – sussurrei.
- Lílian! Que bom te ver! Sonhei que ainda estava sendo perseguido.
Ele falou isso e voltou a deitar com alguma dificuldade.
- Pois é, Felipe, você pode me contar o que houve aqui?
- Claro. Foi terrível! Foi a pior experiência que tive na vida. A
primeira vez que encarei o ódio. Que bom que não estava aqui.
- Meus avós foram...
- Mortos? Não! Mas foram levados como prisioneiros. Acredito que seu tio
pense que você irá buscá-los. Sinto muito, Lílian. Não pudemos fazer muita
coisa além de retardar um pouco a entrada dos homens que acompanhavam
Constantino Amaral. Se você estivesse aqui teria morrido e, muito provavelmente,
“Seu” Silvestre, Dona Maurícia e sua mãe também. Seu tio está preocupado com a
profecia que diz que uma menina irá unificar Azagaia quando libertar Ferus da
maldição da eternidade. Enquanto você viver representará um risco a ele. Você
correu um grande risco hoje.
- Que me importa ter sobrevivido se tantas vidas foram sacrificadas em
meu lugar? Tudo isso para libertar um homem de uma maldição e unificar um país?
Não te parecem motivos insignificantes diante de tantas perdas? Não consegui
dormir essa noite com as lembranças dos corpos de tantos amigos espalhados pelo
lugar onde costumávamos brincar até outro dia. Acho que nunca mais dormirei
tranquilamente. E você? Todo quebrado. Quase foi morto também! É um milagre que
tenha sobrevivido. Se meu tio quer o poder que fique com ele e faça bom
proveito! Não quero mais sentir essa dor insuportável que sinto agora. Meu pai e
meus amigos estão mortos! Meus avós sequestrados.
- Acho que não entende. Se você não unificar Azagaia e permitir que seu
tio governe muito mais gente será dizimada em guerras infinitas por anos
intermináveis como no passado. Além do mais, ele tem aliados entre os
Continentais e acabará Imperador ou algo parecido de toda a região. O problema é
maior que nós, Lílian. Muito maior que nossos dramas particulares. A Pedra
Marcada contém segredos que ainda desconhecemos. Além de libertar Ferus da
maldição ela guarda um mapa que indica as rotas por onde podemos viajar com
segurança pela Terra da Rotas Diagonais, como passar pela montanha Cabeça de
Cavalo e alcançar o país além e ainda pode libertar os prisioneiros das Torres
Consagradas que estão há anos no castelo de Buhr no centro das Terras das Rotas
Diagonais. Você conhece essas histórias, não?
- Sim. Achava que eram lendas, mas descobri que não há lendas em Azagaia.
- Lílian, nenhum morador de Azagaia pode voltar a viver aqui se deixar
nossa região. A Pedra guarda o segredo do véu que nos separa do País Além.
Acredita-se que muitos esperam seu governo para reencontrar entes queridos que
se perderam há anos.
- Mas essas pessoas devem estar mortas!
- Aí é que está! Depois que um morador de Azagaia deixa nossa região ele
não pode morrer. Sofre de um mal parecido com o de Ferus. Só poderá encontrar seu
destino se voltar a viver aqui. Nossa terra reclama seus moradores. Ela não
permite que nenhum de nós consiga paz em outro canto e, com seu tio no poder,
nem aqui poderemos encontrar descanso. Não permita que seu pai e o meu tenham
morrido em vão. Não desista da gente, Lílian.
- Isso mesmo, Lílian, não desista de cumprir seu destino. Garanto que não
adiantará muito tentar resistir a ele – era Ferus. Como sempre chegando sem ser
convidado e nem por isso sendo discreto.
- Você não sabe bater na porta? – respondi tentando mudar o foco do
assunto.
- Você nem imagina as coisas que não sei! Agora saia já daí e vista-se.
Vamos enterrar seus amigos.
Fiz conforme ele havia tão gentilmente orientado e fui para meu quarto me
arrumar. Coloquei o primeiro vestido escuro que encontrei sem nem perceber que
não era preto, mas azul marinho. Fiz um rabo-de-cavalo e lavei meu rosto. Desci
as escadas correndo e vi a porta da biblioteca aberta. Resolvi entrar e
descobrir o que tinha sido destruído num lugar tão importante para meu avô. Curiosamente,
a sala estava bagunçada, com papéis e almofadas espalhados pelo chão, mas não
havia sinais de destruição. De repente, um barulho me fez ligar o botão de
alerta. Pequenas batidas vinham de trás da estante de biografias. Seriam ratos?
Não pareciam batidas de ratos. Eram cadenciadas e obedeciam a um padrão como
uma senha. Pa pa pa pa pa pam! Cheguei o mais perto que pude e perguntei:
- Tem alguém aí?
Do outro lado uma voz conhecida respondeu:
- Lílian, é você?
- Sou eu! O que você está fazendo dentro da estante do meu avô? Como foi
parar aí?
- Abra pra mim. É só puxar o castiçal em cima da primeira prateleira.
Fui até o castiçal de prata de minha avó e puxei o mais que pude. Uma
pequena abertura surgiu diante de meus olhos entre a estante e a parede ao lado
da janela.
- Sara!
- Lílian!
Abracei minha amiga como se não nos víssemos a anos. Que alívio ver que
ela estava bem! De uma maneira muito particular pude ficar feliz apesar dos últimos
acontecimentos.
- Como você foi parar ali, menina?! – perguntei.
- Sua avó me colocou aí dentro quando percebeu que as coisas seriam muito
piores do que imaginávamos. O problema é que a abertura interna é alta demais
para uma criança e eu não consegui alcançar.
- Que bom que você esteve segura!
- E os outros?
Engoli seco e minha garganta doeu. Olhei para minha amiga com firmeza e
falei:
- Estão todos mortos. Com exceção de meus avós que desapareceram.
- Como?
- Sinto muito, Sara. Não sei o que dizer...
Ficamos as duas quietas por um longo tempo.
- Meu pai?
- Sim.
- Meu irmão?
- Não! Desculpe. Felipe está ferido, mas está bem. Descansando lá em cima.
Um suspiro profundo saiu do peito de Sara e ela falou com voz embargada:
- Leve-me até ele.
Subimos as escadas e fomos até o quarto de hóspedes que Felipe ocupava
desde o dia anterior. O reencontro dos irmãos foi emocionante. Não pude conter
as lágrimas e chorei. Chorei por meu pai, por Berenice, Orestes, Olímpio, Sara
e Felipe. Pelos meus avós, por minha mãe. Pensei que nunca fosse parar de
chorar. Mas foi restaurador. Senti que meu corpo ficou mais leve. Precisava
desabafar a dor de tantas perdas. O choque não havia permitido que eu
entendesse a situação antes, mas vendo meus amigos num misto de dor e alívio,
pude entender que nunca estamos sozinhos. E que há equilíbrio até em momentos desoladores
como aquele. Depois de alguns minutos escutamos um alvoroço de patos lá fora e
minha mãe entrou no quarto anunciando:
- Alix está vindo e não está sozinho.
Não consegui acreditar no que vi. Não era possível contar quantos homens
se dirigiam para o casarão antigo dos Gutierrez. Alix vinha na linha de frente,
Ulisses estava sem cavaleiro ao seu lado, e muitos outros se juntavam a eles formando
uma extensa massa de guerreiros com expressões faciais que já me amedrontavam
mesmo sabendo que vinham para ajudar. Mamãe parecia aliviada. Os homens estavam
sérios e Sara e eu tínhamos interrogações no rosto. Fomos todos para frente da
casa recebê-los.
- Salve, meu filho, meu herdeiro e continuador! - disse Ferus - Um dos
fortes que darão ao meu nome honras quando eu não mais estiver entre os
viventes! O que o traz aqui com seus irmãos e com outros que não conheço?
A pergunta foi dele, mas confesso que estava esperando a resposta com a
mesma urgência e o mesmo estranhamento.
- Salve, meu pai! Que suas palavras sejam poderosas para atravessar os
anos e alcançar os ouvidos do futuro! Estou aqui acompanhado de meus irmãos e
dos guerreiros de Tornados, Redenção e Poço das Almas. Nossos vizinhos
escolheram os mais fortes e habilidosos entre seus filhos e nos procuraram para
dizer que é chegada a hora. Não poderemos esperar até que a menina complete a
idade adequada. A guerra é inevitável. Cabeceira já mandou suas condições e nos
provoca com sua audácia.
- E que condições são essas? – perguntei.
- Eles exigem uma troca. Estão com Silvestre e Maurícia. – E Alix abaixou
a cabeça ao dar essa notícia.
Minha mãe deu um grito sufocado por suas mãos à boca. Flora ficou chocada.
Somente Ferus e eu sabíamos o que Constantino Amaral pretendia com aquele sequestro.
- Eles querem a mim, não é mesmo? – interrompi o silêncio e minha voz
saiu enfraquecida pelo medo. Não do que poderia me acontecer, mas do que seria
dos meus avós se Ferus não aceitasse as condições da família Amaral.
- Isso está fora de discussão. – Alix se adiantou e respondeu pelo pai.
- Concordo, meu filho, mas o que vocês sugerem que façamos? Qualquer
atitude precipitada colocará a vida de Silvestre em perigo. Você sabe que não
permitirei que isso aconteça. Também não darei minha permissão a uma guerra que
exponha Lílian antes do poder que a revelação da pedra dará a ela. Qualquer
coisa fora desse tempo é arriscada demais. Sugiro que façamos o seguinte: cada
um de vocês escolha o seu representante. A fazenda é grande e há espaço para
todos. Que os outros descansem e alimentem seus cavalos e a si mesmos. Os
representantes se reunirão comigo e decidiremos a melhor forma de livrar
Azagaia desses impostores. Além do mais, nossa guerra não é contra nossos irmãos,
mas contra os continentais e sua resistência à paz.
- Boa é a palavra de Ferus! Façamos conforme seu conselho. – bradou um
dos guerreiros.
- Viva Ferus! – gritaram os planicianos a uma só voz.
- Viva!- responderam os demais.
Era como se eu estivesse mergulhada num sonho. Nada daquilo parecia possível,
mas tudo era muito real.
O pátio da fazenda ficou tomado por homens apeando de seus cavalos,
desamarrando suas bagagens, levando os animais para a estalagem, dando-lhes
bebida e comida. Os criados foram até o rio Ité para buscar água para dar de
beber a seus senhores. A diferença entre eles era perceptível até para os mais
distraídos. Os planicianos possuíam um andar altivo, a postura ereta, os passos
firmes e graciosos. Os moradores de Azagaia eram mais brutos, possuíam sangue
nos olhos e não desejavam tanto a paz como Ferus. Pareciam dispostos a qualquer
coisa que envolvesse destruir com a família Amaral. Eu deveria sentir conforto,
mas pensei se meu pai concordaria com a destruição de sua família. Meu avô era
o único que poderia tirar minhas dúvidas, mas ele não estava ali e eu teria que
compreender e aceitar. Pensei que ficaria de fora da reunião, então comecei a
ajudar com água e comida para todos. Depois de alguns minutos, Alix veio me
chamar e disse que eu deveria votar na decisão dos representantes.
Entrei na casa com a sensação de que nenhuma outra decisão seria tão
importante em minha vida como aquela. A sala de visitas parecia um quartel
general. Passei os olhos rapidamente pelos presentes e achei curioso que houvesse
um representante para Poço das Almas.
- Quem é você? – perguntei imediatamente.
- Meu nome é Valdívio Gutierrez. Sou irmão de seu avô.
Lembrei-me do que vovô havia me falado sobre ele ser meu tutor um dia e
compreendi que ele não poderia ficar de fora de uma reunião tão importante.
- Lílian – disse Ferus – Decidimos que você ficará sob minha guarda na
aldeia durante os dois anos que faltam para sua maioridade. Nesse período tentaremos
manter a ordem e acabar com essa divisão em Azagaia. Os representantes sairão
amanhã cedo em direção a Cabeceira para resgatar seus avós e eu garanto que só
voltarão com os dois. Provavelmente, Silvestre e Maurícia se juntarão a nós na
aldeia. Isso é tudo o que precisa saber agora. Tudo bem pra você?
- E adiantaria dizer que não? – falei.
- Não. Mas se você tiver uma sugestão melhor nós teremos prazer em ouvi-la.
Acenei com a cabeça negativamente e minha boca estava amarga ao ter de
admitir isso.
- Foi o que pensei – Ferus continuou. Valdívio, pode explicar seu plano
agora.
Então meu tio avô abriu sobre a mesma mesa que havia servido de maca para
Felipe algumas horas antes um rolo de papel que eu pude identificar como um
mapa de Azagaia. Acima dele, em letras garrafais, estava escrito: Ataque ao flanco
do rei. Valdívio explicou que se tratava de um plano simples, porém audacioso.
- Faremos um cerco à Cabeceira de três dias. Em cada um deles Constantino
pensará que um de nossos homens entrou na cidade para tentar capturar Silvestre
e a esposa sem obter sucesso. Depois disso, pediremos uma audiência e retiraremos
a tropa dos arredores da cidade. Enquanto os Amaral estiverem reunidos conosco,
alguns de nossos homens entrarão na cidade disfarçados de moradores e resgatarão
meu irmão e minha cunhada. Vocês devem estar se perguntando como tenho certeza
que não morreremos, como farei Constantino pensar que tentamos incursões que não
acontecerão e como colocaremos homens entre os do povo sem chamar atenção. Essa
é a parte interessante: Heitor Amaral está conosco. Ele entregará a família em
troca da garantia de que será poupado.
XX – Não se
engane: nada é eterno.
A chuva caía fina sobre meu rosto e braços. Como pequenos beliscões de
fadas brincalhonas. As crianças corriam pela aldeia de uma tenda à outra
desafiando as mães, que conversavam e preparavam a comida alheias às algazarras
dos pequenos. Bastava que uma delas percebesse a bagunça que faziam os filhos
para que todos fossem persuadidos a um comportamento aceitável por meio de
puxões de orelha e cabelos. A gritaria era inevitável nessas horas. Os homens,
por sua vez, não se intrometiam na educação dada aos filhos. Eles eram da mãe
até a hora de passar pela cerimônia de ingresso na vida adulta. A maioridade
dos planicianos era aos treze anos. A partir dessa idade as funções na tribo
eram definidas e o casamento arranjado. Como a maioria era descendente de
Ferus, os casamentos aconteciam entre os planicianos e os moradores das cidades
vizinhas à Floresta Descomunal. Depois que os noivos eram escolhidos havia um
período de noivado que durava três anos ou mais. Depois desse tempo, o
casamento se realizava na aldeia com as bênçãos de Ferus. As planicianas
acompanhavam seus maridos para as cidades deles e isso fazia com que o povo da
Floresta Descomunal possuísse uma grande rede de colaboradoras, espiãs e
agentes secretas em toda a região. Foi essa rede que permitiu que as cidades se
unissem para tirar meu tio Constantino da liderança de Azagaia. As estrangeiras
que se casavam com os planicianos perdiam completamente o contato com seus
parentes. Era uma medida de segurança, com toda certeza. Ferus sabia
estabelecer regras eficazes para a perpetuação de sua família.
Depois que a chuva deu uma trégua os meninos foram se lavar no rio. Acompanhei
com os olhos o grupo de garotos se distanciando com Trevo atrás como se
pertencesse a eles, mas alguma coisa desviou minha atenção. Um movimento
repentino fez com que as mulheres se levantassem juntas e compactas como uma
formação romana de defesa. Mas, ao invés de se defender, levantaram-se para
socorrer. Gaudart chegava de sua incursão na Ilha do Véu. Corri em direção ao
tumulto, as pernas tremendo, o corpo formigando. Ele foi acomodado no chão
mesmo. Estava um pouco machucado, mas bastante abatido.
- Tragam ervas! Rápido! – disse Daudana. Era uma das esposas de Ferus. A
mãe de Gaudart.
- O que está acontecendo com ele? – perguntei.
- Foi envenenado. – respondeu Mariart.
A movimentação na aldeia foi crescendo até se tornar uma massa única de
enfermeiros. Tanto alvoroço tirou minha mãe da tenda em que estava vivendo
desde que viemos para a aldeia. Até havia me esquecido que ela estava ali
conosco. Não saía para nada, quase nem comia. Odiava estar ali e pertencer àquela
história. Curiosamente, os acontecimentos recentes nos afastaram um pouco. Acho
que não sabíamos como conversar diante de tantas novidades. Falaríamos de meu
pai? De meus avós? Seria remexer em feridas ainda muito abertas. Feridas que
causavam muita dor.
Gaudart estava perdido. O veneno já havia entrado em seu sistema circulatório
e era questão de tempo até que a hora dele chegasse. Parecia que a temporada de
perdas havia sido aberta. Para cada rosto que eu olhava podia enxergar dor e
tristeza. Aquilo já estava me fazendo desejar deixar de ser quem eu sou. Queria
estar em outro lugar, ser outra pessoa, viver em companhia de outra gente.
Queria voltar para Cabeceira e continuar sendo aquela menina que gostava de
sorvete de jabuticaba. Infelizmente isso não era possível, não podíamos voltar
ao passado e mudá-lo para que atendesse aos nossos desejos. Também não podíamos
fazer nada por Gaudart, mas ele ainda podia fazer por nós e por ele mesmo. Depois
que se despediu de todos os familiares e amigos pediu para ficar a sós comigo.
Estava bem debilitado. Havia sangue saindo de seus poros, seu corpo queimava,
os olhos estavam saltados. Abaixei-me em sua direção e coloquei minha orelha
bem perto de sua boca a tempo de ouvi-lo sussurrar: - Vá até Ori. Ele saberá
nos ajudar.
Aquela declaração me confundiu. Como Ori poderia nos ajudar? Ele era
inimigo, havia colaborado na morte de meu pai e, provavelmente, estava apoiando
meu tio na tentativa de golpe ao poder em Azagaia. Por outro lado, eu sabia que
poderia confiar em Gaudart. A não ser que o veneno tivesse alterado sua noção
de realidade. Não seria impossível. Minha cabeça girou e eu pensei que fosse desmaiar. Olhei mais uma vez
para Gaudart buscando respostas mais completas para minhas dúvidas recentes,
mas ele estava partindo. Uma dor estranha cortou meu peito como se algo abrisse
caminho em direção à minha garganta. Tentei devolver a dor para o lugar de onde
havia saído, mas foi inútil. Um grito horrendo saiu de dentro de mim, misturado
às lágrimas e ao gosto de sal na boca. Chorei compulsivamente. Nunca tinha
visto a vida escapar dos olhos de uma pessoa até aquele momento. Gostaria de
nunca ter visto. Gostaria ainda mais de nunca precisar ver novamente, mas a
vida não é um texto que escrevemos sozinhos. Saí da tenda de Gaudart e deixei-o
por conta de seus familiares. Um ódio ainda maior tomou conta de mim e eu
decidi naquele exato momento que não deixaria ninguém me impedir de ver Daniel
e tentar esclarecer quem ele realmente era, o que ele pretendia.
O enterro de Gaudart aconteceu no dia seguinte, debaixo de uma das mais
fortes chuvas que eu já havia testemunhado na vida. Uma coisa me chamou bastante
a atenção. Os planicianos enterram seus parentes com todos os seus pertences,
incluindo a tenda, roupas, armas, tudo mesmo. E seu filho mais velho acrescenta
ao final do primeiro nome a inicial de seu pai. Tarol agora se chamaria Tarolg.
Simples assim. Pensei em como meu avô se chamaria caso Ferus morresse.
Silvestref? Então me lembrei que Silvestre deveria ser um nome adotado pelos
Gutierrez. Claro! Silvestre: o que veio da selva. Como não pensei nisso antes?
Qual seria o verdadeiro nome do meu avô? Ouvi alguém chamar meu nome atrás de
mim e me virei. Iliones se aproximou e disse:
- Ferus te chama. Os homens estão partindo para resgatar seu avô.
Fui até a tenda de Ferus com o coração aos pulos. Isso daria certo? Tinha
que dar. Sei que parece egoísta o que pensei naquele instante, mas não me
sentia pronta para perder mais ninguém. De longe pude distinguir Valdívio e os
guerreiros que não eram planicianos reunidos com Ferus. Eram poucos, alguns
representantes. Provavelmente os outros estariam esperando ali perto. A aldeia
ficaria vazia sem os guerreiros e os voluntários. Pensei no quanto seria
oportuno para escapar da vigilância sobre mim e fazer uma visitinha surpresa a Daniel.
Ao me aproximar, Valdívio falou comigo o que queria:
- Lílian, precisamos que você escreva uma carta se comprometendo a fazer
uma troca entre você e seus avós. Ela será entregue a seu tio como parte de uma
negociação que será falsa, claro. Escreva que também exige o corpo de seu pai. Isso
dará mais veracidade à carta.
- Mas vocês não resgatarão meu pai? – perguntei.
- Não há a menor possibilidade, menina! Pense! Vamos invadir Cabeceira e
resgatar seus avós. Como poderíamos ainda desenterrar seu pai? Nem sabemos onde
ele está enterrado. E, pelo tempo que já se passou isso não seria muito agradável.
Confesso que fiquei um pouco decepcionada, mas compreendi que seria
impossível mesmo.
- Você tem razão. Desculpe-me, foi uma esperança idiota.
- Nenhuma esperança é idiota, Lílian. – Alix tentou me consolar.
- Bem, escreverei a carta em poucos minutos. Aguardem.
Fui até minha tenda e escrevi o que eu faria realmente se disso
dependesse a liberdade de meus avós. Algo me dizia que eles nunca cumpririam
com a parte deles caso houvesse um acordo. Só por isso não insisti em tentar
uma troca, apesar de saber que Ferus jamais aceitaria. Entreguei a carta e me
despedi dos planicianos e de Valdívio. Alix deixou um colar comigo. Disse que
me protegeria.
- Acho que você precisará de proteção por esses dias. – falou.
- Você acha que atacarão a aldeia? – perguntei.
- Não sei. Por enquanto é só um pressentimento. Cuide-se!
- Pode deixar.
Os homens foram embora e a aldeia mergulhou em um silêncio aterrador
aquela noite.
**************************************
Felipe havia sido transportado para a aldeia ainda muito abatido.
Felizmente, as mulheres cuidaram dele com suas ervas e sabedoria milenar. Fizeram
por um estranho o que não puderam fazer por Gaudart. Em pouco tempo ele já
podia se sentar em frente a sua tenda e observar o movimento das crianças e
mulheres que mantinham o lugar funcionando com suas tarefas. Estava hospedado
com Uriel, um dos filhos mais novos de Ferus. Com a ausência de seu anfitrião,
que fora resgatar meus avós, Felipe sentia-se mais sozinho e eu e Sara passamos
a fazer companhia a ele. No dia seguinte à partida dos rapazes, contei de minha
necessidade de encontrar Daniel e descobrir o que Gaudart pretendia me dizer
com a revelação de que eu deveria confiar nele. Felipe ouviu tudo o que eu
tinha para falar e teve uma ideia que poderia resolver meus problemas. Disse
que Cabeceira e a Ilha do Véu tinham estabelecido um comércio promissor nos últimos
tempos. Seu pai mesmo havia contado a ele que Cabeceira estava exportando
alimentos e animais em troca de mão-de-obra barata e alguns acordos vantajosos
para ambos os lados. Todas as manhãs partiam navios de Cabeceira para a ilha e
um dos comandantes era um antigo amigo de meu avô e de Orestes. Com certeza ele
não se negaria a levar uma carta ao rei Ori. O problema seria chegar à
Cabeceira.
- Eu tive uma ideia! Mas é muito arriscada. – falei.
- No que você pensou? – perguntou Felipe.
Sara nos ouvia em silêncio e com uma cara que denunciava seu pavor ao que
quer que fosse que estivéssemos planejando.
- Ulisses!
- Você não está pensando...
- Claro que sim! Pense. Ulisses é um cavalo encantado. Ele vai a qualquer
lugar para o qual for designado e cumpre suas missões com perfeição! Poderia me
levar até Cabeceira sem problemas. A não ser o fato de que demoraria dois dias
pelo menos. Se Ferus perceber poderá me alcançar no caminho.
- E se você usar uma rota alternativa?
- Eu levaria dias ou meses para chegar lá. Você sabe como é Azagaia.
- Verdade.
- Temos que ganhar tempo. Ao menos uma noite de vantagem.
- Já sei! – disse Sara, nos deixando surpresos que ainda estivesse por
ali.
- Qual a sua ideia, irmãzinha? – Felipe disse com certo ar de deboche.
- Fique com essa cara de bobo que eu não contarei nada.
- Pelo amor de Deus!- interrompi os irmãos – Vocês podem deixar as implicâncias
fraternas para depois?! Fale seu plano, Sara.
- Bem, Ferus não sabe a data de meu aniversário, não é mesmo?!
- O que seu aniversário...?
- Quer me ouvir, Felipe?
- Cale a boca, Felipe! Continue Sara.
- Como eu estava dizendo... Podíamos dizer a ele que amanhã é meu aniversário
e que eu gostaria de comemorar com vocês e Trevo numa noite na cabana da
floresta.
- Que ideia sensacional! – gritei eufórica.
- Só tem um contratempo. Você perderá um tempo voltando aqui para pegar Ulisses.
- Não será preciso, querida irmã. Já vi que você tem uma ideia boa por século!
É só Lílian ordenar que Ulisses nos espere na cabana.
- Vocês são os melhores amigos que uma garota pode ter!
Procurei Ferus conforme havia combinado com Sara e Felipe. Resolvi chegar
devagar e sondar o espírito dele naquela manhã. Pedi ao menino para me anunciar
e me surpreendi quando ele disse que eu poderia entrar, pois Ferus me esperava.
Quase não tive coragem de falar sobre a noite na cabana, parecia que ele
poderia ler meus pensamentos.
- Bom dia, Ferus!
- Olá, Lílian. Não sei te dizer se é um bom dia. Ainda não tive notícias
de Valdívio.
- Isso também me aflige um pouco. Mas tenho certeza de que tudo sairá
conforme o planejado. Afinal de contas, as mulheres da aldeia me disseram que
Alix nunca saiu de uma batalha sem a vitória nas mãos.
- É verdade. Alix e eu... Meus filhos são um orgulho para mim.
- Falando em seus filhos... Tenho uma pergunta a te fazer.
- Faça. Já te conheço o suficiente para saber que você sempre tem
perguntas. Não é exatamente uma novidade.
- Hum... Que bom que está de bom humor. Depois da pergunta tenho um
pedido.
Quando falei “pedido” as sobrancelhas dele se arquearam discretamente.
- Bem, veremos o que poderei fazer. Vamos à pergunta!
- Qual o verdadeiro nome do meu avô? – mandei de um só golpe.
- Só isso?! Que tipo de pergunta é essa?
- Qual é Ferus?
- Mayon. Por quê?
Quando ele citou o nome um dispositivo foi acionado em meu cérebro, mas
preferi deixar para pensar nisso depois.
- Nada. Só curiosidade. Posso fazer o pedido?
- Faça.
- Amanhã é aniversário de Sara e gostaríamos de comemorar do nosso jeito.
Ela perdeu o pai e quase perdeu o irmão...
- Não precisa apelar para meus sentimentos. Você sabe que não sou de piedades.
- Acho que é sim! Mas o que queremos é passar uma noite na cabana: eu,
Sara, Felipe e Trevo. Queremos contar histórias de terror e morrer de medo,
depois rir do nosso medo pela manhã. Essas coisas.
- Parece irresistível!
- Não seja ranzinza. Não temos duzentos anos e achamos a vida um tédio!
- Não acho a vida um tédio. Mas tudo bem. Vocês têm a minha permissão
desde que voltem amanhã pela manhã.
- Mas não precisamos acordar muito cedo, não é?!
- Nem muito tarde. Agora vá! Tenho umas coisas a fazer.
- Outra coisa, quando cheguei aqui o rapaz me disse para entrar porque
você me aguardava. O que queria?
- Ah, sim. Já ia me esquecendo. O que Gaudart te disse antes de morrer?
Pensei em dizer a verdade, mas naquele momento isso poderia denunciar o
lugar para onde eu iria. Então resolvi omitir a informação sobre confiar em
Daniel.
- Ele queria falar alguma coisa sobre o tempo que passou na Ilha do Véu,
mas estava com muita dificuldade e não conseguiu dizer nada.
- Entendo. Você não me esconderia caso ele tivesse dito algo, não é?
- Porque eu faria uma coisa dessas?
- Desculpe. Acostumei-me a desconfiar das pessoas. Obrigado. Pode ir
agora.
Fiquei feliz com a permissão de Ferus. Pensei que seria muito mais difícil.
Estranho. De qualquer forma, a revelação do nome do meu avô me deixou um pouco
anestesiada e não pensei em outra coisa pelo resto do dia. Tanto foi verdade
que só me lembrei de falar sobre a decisão de Ferus a Sara e Felipe depois do
almoço. Organizamos tudo e repassamos o plano diversas vezes. Fui até o estábulo
e sussurrei a Ulisses que me encontrasse na cabana dali a duas horas. Já tinha
ouvido falar que cavalos são inteligentes, mas Ulisses era fenomenal. Peguei
minhas coisas e uma provisão para a viagem e fui até a tenda de meus amigos.
Dali a pouco eu estaria na estrada, rumo à Cabeceira do Rio Seco, no meio de
uma batalha para a liderança de Azagaia onde meu tio queria minha cabeça para
estabelecer seu governo. Se Ferus me pegasse no meio do caminho eu estaria
perdida. Precisava que tudo saísse conforme havia planejado. Antes de sair,
porém, passei na tenda que minha mãe estava hospedada para vê-la uma última vez
antes de me aventurar numa travessia por Azagaia e os Mares Bravios até a Ilha
de meus prováveis inimigos. Mesmo em companhia de Ulisses era bem arriscado o
que eu estava prestes a fazer. Entrei devagar na tenda. Minha mãe dormia e eu
pude ver uma menina escapulindo de seu rosto. Fazia tempo que eu não flagrava
minha mãe feliz. Com o que estaria sonhando? Tive um ímpeto de ir beijá-la e
enroscar meus dedos em seus cabelos até dormir, mas a força que me afastaria
dela era poderosa. Era minha busca por mim mesma.
Menos de três horas depois de ter saído da aldeia eu estava na estrada,
montada em Ulisses, rumo à Cabeceira do Rio Seco. Logo no início da viagem
percebi que não seria fácil passar mais de um dia andando por montanhas,
atravessando corredeiras e tentando não ser capturada pelos planicianos ou
cabeceirenses. Se você é o tipo de pessoa que aceita conselhos, ouça-me! Se
colocar em perigo não é uma atitude muito inteligente. Garanta que seja pelos
motivos mais justos possíveis. Algumas vezes, na vida, nós não podemos ficar
sem respostas. Compreendo que seja assim. Mas certifique-se que sejam respostas
fundamentais, caso contrário, não se aventure por florestas e montanhas com um
cavalo roubado de um homem de mais de duzentos anos.
Minha sorte é que Ulisses é bem resistente. Seu nome não foi dado por
acaso. Assim como o herói grego, ele possuiu uma capacidade muito grande de
vencer os obstáculos impostos. Cavalgou durante uma noite inteira, colocando-me
numa distância relativamente segura da aldeia. Apesar de termos parado para
dormir e comer algumas vezes, mais por minha causa que por ele, chegamos a
Cabeceira na tarde do terceiro dia, o que é um ótimo tempo para um cavalo e uma
menina. Fomos pela banda oeste da cidade, na fronteira entre Cabeceira e
Tornados. Passamos despercebidos porque eu estava vestida com umas roupas de
Felipe. Achamos que seria mais seguro. Em pouco mais de meia hora eu estava no
porto. Despedi-me de Ulisses quase não acreditando que havíamos conseguido.
- Agora volte para a aldeia, meu amigo. E cuide-se! – sussurrei ao seu
ouvido.
Em nenhum momento, no entanto, me ocorreu que Ulisses tivesse me
obedecido muito prontamente e que isso deveria ser estranho.
O resto do caminho eu fiz a pé. Não estava longe. Em mais quinze minutos
estava em frente ao navio Sereia de Cabeceira. Não era propriamente um navio,
pelo menos não desses que nos levam a cruzeiros magníficos como os que eu já
havia feito com meus pais. Era uma escuna de casco de madeira, dotada de dois
mastros e um motor. Confesso que, nesse momento, pensei em fazer o caminho de
volta e me contentar com minhas dúvidas. Mas, felizmente, sou dessas pessoas
que, quando colocam algo na cabeça, não há nada que nos faça desistir. Procurei
o homem com a descrição que Felipe havia feito: alto, magro, corpo largo e bem
socado, com uma grande barba grisalha e três dedos faltando na mão esquerda.
Tinha um aspecto assustador à primeira vista, mas os olhos eram doces.
- Sr. Nicolas Justino?
Ele olhou pra mim com um ar de estranhamento, não sei se por ver uma
menina vestida de menino num porto cheio de homens rudes ou se por ouvir alguém
se dirigir a ele por seu nome de batismo. Talvez fosse pelos dois motivos.
- Comandante Beluga, por favor.
- Que seja. Comandante Beluga, boa tarde.
- Boa tarde, menina?
- Oh, sim! Menina. Chamo-me Lílian e preciso de sua ajuda. Venho da parte
de Silvestre Gutierrez e Orestes.
Ele apertou os olhos azuis e pequeninas rugas se formaram ao redor deles.
Esperei que dissesse alguma coisa, mas ficou em silêncio. Continuei:
- Meu nome é Lílian Amaral.
Só aí ele abriu um sorriso e disse depois de respirar bem fundo:
- Então a senhorita não precisa me pedir nada. Qualquer coisa que deseje
será uma ordem pra mim.
Fiquei bem mais tranquila depois dessa reação. O Comandante Beluga me
convidou a entrar em sua embarcação e conversamos sobre o que eu precisava e
como ele poderia me ajudar. Combinamos tudo o que deveríamos fazer nas próximas
horas, para o caso de alguém vir em meu encalço. Eu ficaria na escuna e ele
diria que estava com um ajudante. Isso era bem comum, principalmente depois das
chuvas, quando as famílias perdiam tudo nas enchentes e mandavam seus filhos em
busca de trabalho para reconstruir a vida arrastada pelas águas. Na manhã
seguinte partiríamos para a Ilha do Véu e no fim da tarde eu estaria na terra
de Ori Tirésias Amadeus III.
A experiência de estar por sua própria conta é interessante. Você só sabe
do que é capaz quando precisa sobreviver e não está rodeada de proteção e
carinho. Carreguei a escuna com o Comandante, pois ele achou mais seguro
trabalharmos à noite e, quando deitei numa rede no dormitório da escuna, foi
como se meu corpo tivesse sido chumbado ao tecido grosso e puído da cama suspensa.
Dormi até as quatro da manhã, quando o comandante me acordou para seguirmos
viagem.
Apesar do nome, Mares Bravios, as águas do oceano que separavam o
continente da ilha não eram nem um pouco violentas. Esse nome era uma menção às
guerras que já foram travadas em pleno mar. Foi uma viagem tranquila e chegamos
antes do previsto. Quando terminamos de descarregar a embarcação, Beluga trouxe
uma caixa de madeira enrolada em seda que depositou em minhas mãos enquanto
dizia aos guardas que observavam o movimento dos trabalhadores do porto:
- Tenho uma encomenda para o magnífico rei e soberano Ori III. Ele pediu
que fosse entregue com certa urgência. Enquanto termino de conferir a mercadoria
vocês poderiam conduzir meu ajudante ao palácio?
Um dos guardas falou:
- Pode deixar conosco. Entregamos a ele assim que terminarmos nosso plantão.
- Infelizmente isso não será possível. – disse Beluga – O rei me ordenou
que fosse entregue em mãos. Qualquer desobediência será considerada traição.
Vocês não estariam desobedecendo a uma ordem do rei, não é mesmo?
Os guardas se entreolharam e um deles deu de ombros.
- Tudo bem. Eu levo o rapaz enquanto você fica aqui. - falou se dirigindo
ao companheiro. E olhando para mim disse: - Mas só poderei ir até a porta do
palácio. Lá entregarei você a outro guarda que o conduzirá à presença do rei.
Eu não disse nada. Peguei a caixa e a apertei contra meu peito. Beluga
foi ao meu ouvido e disse:
- Não se preocupe, Ori está acostumado a me pedir encomendas. Achará que é
algo que trouxe com atraso e te receberá. Mas não se demore. Temos que partir
ainda essa noite.
- Ouça. Se eu não voltar em uma hora você deve partir e avisar a Ferus
onde estou e o que me aconteceu.
- Tudo bem, menina. Mas volte. Será menos um trabalho para mim.
Concordei com a cabeça e dei um sorriso nervoso. Segui o guarda e em
pouco tempo estava no interior do palácio dos antigos continentais, expulsos
pelos planicianos e forasteiros da terra que tinha sido tão deles quanto é
nossa hoje em dia. Levaram-me até um salão riquíssimo, com um pé direito duplo
e paredes forradas de tecido dourado com desenhos de pássaros e folhagens.
Permaneci de pé por uns quinze minutos, ao fim dos quais, Daniel, ou melhor, o
rei Ori, surgiu na sala trazendo o sol com ele. Tentei pensar na possibilidade
dele ser culpado da morte de meu pai para odiá-lo e acalmar meu coração que
tamborilava descompassadamente, mas foi em vão. Quando ele se aproximou seus
olhos ganharam uma expressão de surpresa e alegria ao mesmo tempo. Segurou um
sorriso no meio do caminho e ordenou que nos deixassem a sós. Eu estava diante
do menino que conheci em Cabeceira novamente.
- Salve o rei! – falei zombeteiramente.
- Pensei que nunca mais nos veríamos. – ele disse.
- Não se engane: nada é eterno. Nunca mais é um tempo que não existe em
Azagaia.
Sorrimos e nos abraçamos. Agora o tempo corria contra nós. Precisávamos alcançá-lo.
XXI – Resistência.
Estou prestes a lutar a maior
batalha da minha vida até agora e tudo o que me passa pela cabeça são as
lembranças do que me trouxe até aqui. Se ao menos ele estivesse ao meu lado...
Os guerreiros que me acompanham
no campo de batalha já estão há dois anos nessa guerra e não demonstram o menor
sinal de que pretendem desistir, mas eu confesso que daqui de cima, olhando o
acampamento e contabilizando as famílias que estão privadas de seus pais,
maridos e filhos, minha vontade é a de voltar agora para casa, abraçar Trevo e
dormir até que tudo tenha acabado. Só que meus problemas não irão desaparecer
se eu fugir. São do tipo que precisam ser enfrentados. Estou aqui, no olho do
furacão, e não tenho a menor ideia da minha capacidade de ir até o fim. Quanto
tempo terei que aguentar? Se ao menos ele estivesse aqui!
- Não temos tempo para abraços e conversas esclarecedoras. Tenho que
partir em menos de uma hora.
- Eu sei. Você já disse – ele falou em um tom de lamento tão sofrido que
poderia ter me convencido a ficar se eu não tivesse outras responsabilidades.
- Preciso que me responda que participação você teve na morte do meu pai.
Preciso ouvir de você.
- Nenhuma. As coisas aqui estão complicadas. A história é longa. Basta a
você que eu diga...
- Claro que basta! Não diga mais nada. Desculpe-me. Eu nunca deveria ter
desconfiado de você. No fundo eu nunca desconfiei.
- Acha que não sei disso? Você não estaria aqui se pensasse que eu matei
seu pai.
- Na verdade estou aqui porque Gaudart me disse que eu deveria confiar em
você.
- Hum, isso merece um castigo. Prometo pensar em algo no futuro.
- Escute! Azagaia está em guerra e acredito que você não fosse apoiar meu
tio se a decisão dependesse de você. Correto?
- Corretíssimo.
- Então o que está havendo aqui? Por que você não toma suas próprias
decisões? Que tipo de rei é você?
- O tipo de rei que possui um irmão que pretende me matar a qualquer
momento.
- Davi?
- Não. Um filho do meu pai. Não posso te contar agora. Tomaria todo o
nosso tempo.
- Quais as chances dele conseguir o que deseja? – perguntei.
- Já escapei de dois atentados. Desconfio que ele esteja por trás da
morte do meu pai. As coisas não estão nada fáceis aqui.
- E se você se refugiasse em algum lugar? Onde estão sua mãe e Davi?
- Eles estão seguros. Quer dizer... Estão em Cabeceira. Incógnitos.
Mudaram de nome e vivem modestamente numa aldeia perto da Terra das Rotas
Diagonais. O que você sugere que eu faça? Onde eu poderia me refugiar. Depois
da coroação meu rosto ficou conhecido por todos. Onde quer que eu vá serei
reconhecido e capturado.
- Não na Floresta Descomunal.
Daniel ficou mudo por um tempo. Depois que recobrou o raciocínio perguntou:
- Você acredita que Ferus me daria abrigo?
- Tenho certeza. Ele pensa que nós podemos ajudá-lo de certa forma. Seria
proteger a si mesmo cuidar da vida do único homem que pode salvá-lo de uma
maldição.
- Como assim?
- Explico outra hora. Agora tenho que ir. Mas como faremos para resolver
seu problema? Você conseguiria fugir daqui sozinho?
- Faça o seguinte: peça a Beluga para me encontrar no lado oriental do
Monte Nepo daqui a dois dias, no pôr-do-sol. Só não poderei ir para Cabeceira.
Seria muito perigoso. Seu tio e meu irmão são aliados.
- Vá para a casa da fazenda em Poço das Almas. Não há ninguém lá. Passe a
noite escondido em um lugar seguro. Tem uma passagem no escritório do meu avô
que você poderá usar. Deixo as orientações com Beluga. No dia seguinte darei um
jeito de te buscar com Ferus. Assegure-se de que ficará bem até lá.
- Ficarei. – ele disse, enquanto abria aquele sorriso perfeito que eu
conhecia tão bem.
Um guarda foi chamado e me levou até uma das saídas do castelo. Corri o
mais que pude para chegar ao barco a tempo de partir com Beluga. Quando vi o
comandante parado no cais, de pé com uns marinheiros, certamente jogando
conversa fora, senti um alívio parecido com a volta para casa depois de uma
longa viagem.
Ao me aproximar do capitão eu disse:
- Quase não cheguei a tempo.
- Eu jamais partiria sem a filha de um dos meus melhores amigos.
- Você conhecia meu pai?
- Menina, quem não conhecia seu pai? Temos que ir. Conto no caminho umas histórias
sobre Camilo. Pode ser?
- Claro! Eu amo ouvir histórias! Sobre meu pai seria perfeito.
Entramos na embarcação e partimos. Por um bom tempo, Beluga contou
algumas das muitas aventuras de Camilo Amaral que ele viu ou ouviu de conhecidos.
Aquelas saídas noturnas de meu pai faziam mais sentido agora. Minha mãe
chorando também. Ela temia por ele, por mim e por ela mesma. Pouco antes de
chegarmos à terra firme, Beluga me fez uma pergunta que eu não queria ouvir.
- Menina, já pensou na reação de Ferus quando você voltar à Floresta
Descomunal? Ele deve estar bem aborrecido com sua fuga.
Meus dedos começaram a tremer e esfreguei as mãos para tentar diminuir o
desconforto.
- Está com frio? – ele me perguntou.
- Pra te falar a verdade estou sim.
- Lá embaixo tenho cobertores. Pegue um e suba. Deixarei você no litoral
de Poço das Almas em alguns minutos. Como fará para chegar à floresta?
- Não se preocupe. Darei um jeito. O lugar onde vai me deixar é uns cinco
quilômetros de distância da fazenda do meu avô. Posso ficar lá até amanhã pela
manhã e depois entrar na floresta. Achar o caminho para a aldeia é que será
complicado.
- E porque você não usa seu colar?
- Não entendi.
- Sou um contrabandista, garota. Conheço os objetos mais intrigantes da
história de Azagaia. Sei das relíquias e do que se fabrica atualmente. Posso
conseguir quase todos eles no mercado informal. Garanto a você que o pingente
que está usando é uma bússola planiciana. Vale o peso do seu corpo em ouro!
- E qual a função dela?
- Essa é boa! Quem quer que tenha te dado esse pingente sabia que você
precisaria voltar para a aldeia. Ela te leva de volta pra lá. Não sei como, mas
sei que leva qualquer pessoa para a aldeia esteja onde estiver. Nada pode
acontecer a você enquanto não chegar ao seu destino, ou seja, a aldeia dos
planicianos.
- Quem me deu isso foi um dos filhos de Ferus. Alix.
- Aquele safardana?! Me deve dois cutelos de prata. É um dos caras mais leais
que conheço. Diga a ele que ainda quero os cutelos.
- Você realmente conhece todo mundo, não é?
- Todo mundo é muita gente, mas conheço as mais importantes.
- Você conhece meu tio Constantino?
- Sim. Sujeito intragável. Tome cuidado com ele. Mataria a própria mãe se
ela não fosse muito mais esperta que ele.
- Eu a conheço. Achei muito chata.
- Chata? Ela era chata quando era criança. Aquela mulher é uma víbora!
Eh, desculpe. Não queria falar mal da sua avó.
- Não se desculpe. Também acho tudo isso e muito mais dela.
- Bem, chegamos.
Quando olhei para frente reconheci o litoral de Poço das Almas. Uma parte
pouco habitada e, justamente por isso, ainda muito bonita. Havia uma vila de
pescadores com festas anuais maravilhosas ali perto. Não me lembrava bem aonde.
Desci da escuna e Beluga me deu uma bolsa de pano com dois pães e uma garrafa
de água.
- Cuide-se, menina. – falou.
- Pode deixar. - respondi – Obrigada por tudo. Quando essa loucura toda
acabar farei outra visita. E não se esqueça de trazer Daniel daqui a dois dias.
- Não esquecerei. E quanto à visita, eu cobrarei!
Comecei a caminhar em direção à casa da fazenda. Em pouco mais de uma
hora eu estaria na casa dos meus avós. Pensei em pernoitar lá, mas estava
curiosa sobre a bússola planiciana e resolvi que tentaria usá-la ainda hoje.
Apressei o passo e tentei pensar na desculpa que daria a Ferus quando o encontrasse
novamente. Torci para que Ulisses tivesse encontrado o caminho de volta. Se
algo tivesse acontecido ao cavalo, nem sei. Nem percebi quando passei pelos estábulos
em direção à entrada principal da casa. Passei direto. Também atravessei de uma
vez a entrada de carvalhos e fui até o limite da fazenda com a floresta. Precisava
descobrir o que aquele pingente poderia fazer por mim.
Obviamente que eu esperava que algo interessante acontecesse, mas nada do
que eu tinha pensado poderia me preparar para o que viria. Assim que pus os pés
no limite entre os jacarandás e a floresta, um vento repentino sacudiu e agitou
a folhagem diante de mim abrindo uma trilha. Pisquei os olhos duas vezes,
esfreguei-os outras tantas, e, depois de me certificar que não estava tendo
alucinações, coloquei cuidadosamente um pé diante do outro, até que a floresta
se fechasse nas minhas costas. Agora, ou eu iria adiante, ou teria que ficar
onde estava até que alguém me encontrasse. O que poderia significar permanecer
ali para sempre. Caminhei por um tempo que me pareceu curtíssimo, mas amanhecia
quando avistei a aldeia. De pé na frente da própria tenda estava Ferus. Com
certeza ele me aguardava. Senti um calafrio. Antes, porém, de pensar em me
explicar, ouvi uma voz grave e muito familiar me chamar no lado oposto ao de Ferus.
- Vovô?!
Corri na direção do meu avô o mais rápido que pude. Lembrei-me de outra
corrida há alguns anos. Uma corrida em que eu também buscava o abraço de um
homem muito importante para mim. Subitamente me veio à memória meu pai
machucado, deitado na areia da praia na Ilha do Véu. Cheguei chorando ao colo
do meu avô.
- Ôôô... Mas que choro é esse, minha flor? Não estou aqui?
- E a vovó? – perguntei.
- Está na tenda com sua mãe. Menina, você está encrencada. Saiba que nem
eu poderei livrar você da sua mãe dessa vez.
- Todos estão bem?
- Marac está ferido, mas passa bem.
- E Alix?
- Esse nunca se machuca. Não precisa se preocupar com ele.
Dei um meio sorriso pensando no que vovô falou sobre Alix. Senti orgulho.
Pensei em falar logo sobre a vinda de Daniel, mas precisava enfrentar mamãe
primeiro. Entrei na tenda e ela me olhou aliviada. Isso não era garantia nenhuma
de que minhas orelhas estavam a salvo de uns puxões, mas é sempre bom saber que
o amor é maior que a raiva.
- Mãe? – tentei argumentar.
- Qualquer palavra sua só me fará desejar um castigo maior. Você enlouqueceu
menina?! Quer me matar? Seu pai morre, seu avô é sequestrado e você resolve
desaparecer por dias? Onde você se meteu? O que fez durante esse tempo? Como se
alimentou? Por onde andou? Com quem?
- Mãe, eu pensei...
- Quem te deu autorização para pensar qualquer coisa...
- Fui eu. – disse Ferus. Olhei para ele e pensei que, se não fosse sua
interrupção, mamãe poderia fazer perguntas por dias.
- Eu não sabia que Lílian tinha recebido uma missão. – minha mãe gaguejou.
- Foi uma pequena missão. Nada de importante.
- Mas, sendo assim, por que você não me disse nada? Por que me deixar
preocupada?
- Eu disse que não deveria se preocupar. Acho melhor se acostumar,
Marina. Sua filha ainda passará muito tempo longe de você em perigos muito
maiores que uma pequena viagem.
Olhei para as personagens daquele diálogo sem saber se ria ou preparava o
couro para umas bordoadas. Finalmente, Ferus me pediu para segui-lo até sua
tenda. Se eu deveria enfrentar um dos dois, que fosse o que não poderia me
bater.
- Por que você me defendeu da minha mãe?
- Eu não te defendi da sua mãe. Simplesmente permiti que você partisse
sabendo para onde iria e o que estava buscando. Se eu permiti, a
responsabilidade também é minha.
- Como você soube?
- Quando perguntei o que Gaudart tinha dito a você antes de morrer eu
sabia que você estava mentindo ao me responder que não havia dado tempo. Ele
ainda falou com a mulher e os filhos depois que você saiu. Comentei com Alix
sobre minhas desconfianças e ele resolveu te dar a bússola planiciana. Na
verdade, não pensamos que você saberia usá-la para retornar, mas ela também
serve de localizador para quem a usa. Sabíamos o tempo todo onde você estava e
imaginei que tivesse partido em busca de uma resposta qualquer de Ori.
- E por que vocês não tentaram me impedir?
- Porque o nosso caminho, Lílian, ninguém pode fazer no nosso lugar. Ori é
o teu destino. Nada do que eu fizer poderá mudar isso. Além do mais, a bússola
te protegeria até que você estivesse de volta.
- Minha mãe nunca se acostumará com isso. Tenho certeza.
- Acostumada ou não ela terá que aceitar. Nem eu poderia te impedir de
viver o que está preparado para você.
- Falando em futuro, tenho um pedido a fazer que envolve um assunto de
seu interesse.
- E o que seria?
Contei a Ferus sobre os atentados a Ori (não conseguia me acostumar a
esse nome), sobre nosso encontro e o que decidimos sobre sua fuga. Pedi que
mandasse alguém buscá-lo na casa de vovô.
- Ele pode ficar aqui, não é? – perguntei.
- Claro. – Ferus respondeu com um ar de preocupação.
- Alguma coisa errada?
- Não exatamente. Preciso que me prometa uma coisa.
- Hum?
- Você retomará seu treinamento e a presença de Ori não será um empecilho
para sua preparação.
- Prometo. Isso não será um problema.
- Combinados?
- Combinados.
Os dois dias até a chegada de Ori foram angustiantes. Pensei que seria
muita sorte se conseguisse fugir e tive medo dele ser capturado. Tive pesadelos
com meu pai e Ori. Sonhei que eles eram a mesma pessoa e que eu tinha perdido
os dois na praia da Ilha do Véu. Sonhei com Gaudart me falando que ele estava
enganado e que Ori não era de confiança. Depois sonhei com o mar de vidro e que
eu observava enquanto a minha cópia se afogava desesperadamente. Acordei em
prantos. Chorei tanto que Alix escutou e veio ver o que tinha acontecido.
- Tudo bem com você? – ele disse.
- Não sei dizer. Estou sentindo um aperto no peito. Um medo de que as
coisas não saiam como imaginei.
- E quem disse que nossa imaginação é a melhor resposta?
- Agora você me pegou. Sempre pensei que meus desejos fossem o melhor pra
mim. Eu não desejaria algo de ruim para mim mesma.
- O fato de você desejar algo de bom para si não garante que seja o
melhor. Nossa visão é muito limitada, Lílian. Falando nisso, você ama mesmo
esse menino, Ori?
- Sim. Com todas as minhas forças. Quando o vi pela primeira vez percebi
que minha vida não seria mais interessante sem ele ao meu lado. Tentei rejeitá-lo
porque ele parecia muito arrogante, mas estava enganada. É a pessoa mais doce
que já conheci.
- Não parece.
- Eu sei! Não é louco? Ele parece não se importar, mas é o oposto. Isso
me lembra um pouco você.
- Eu?
- Exato! Engraçado que eu só notei isso agora.
- Não me pareço em nada com um continental, Lilian! Não há nada pior para
um planiciano que essa comparação. Você tem cada coisa.
- Não fique zangado comigo! Além do mais, não há motivos para tanto. Ele é
um cara muito legal. Vocês serão amigos.
- Bem, numa coisa nós somos iguais. Nós dois gostamos muito de você.
A maneira como Alix fez essa declaração, seu tom de voz e a forma como me
olhava sinalizaram que eu estava em um terreno perigoso. Qualquer
palavra errada naquele momento poderia magoá-lo ou incentivá-lo. Não sabia o
que fazer. Escolhi o silêncio.
- Não se preocupe Lílian, – Alix continuou – entendi quando você disse
que o ama. Na verdade, nem eu sei exatamente o que sinto. Só sei que sinto um desejo enorme de te proteger e garantir que esteja bem. Foi isso que
quis dizer quando falei que gosto de você.
- Fico aliviada, Alix. Também te adoro e não quero que se magoe. Além do
mais, somos parentes e você já tem sua família.
- Isso não significa muita coisa aqui, Lílian. Não se esqueça de que
posso ter quantas esposas quiser e, entre os planicianos, só não podemos nos
casar com irmãs, pais, filhos e as mulheres dos outros.
Olhei para Alix um pouco assustada e ele riu. Isso acabou com o clima
constrangedor e continuamos a conversar sobre os planos para o
futuro.
- E quando voltaremos com os treinos, menina?
- De acordo com Ferus eu já deveria ter voltado. Podemos começar hoje se
quiser.
- Hoje não posso. Tenho que fazer uma pequena viagem. Estarei de volta em
três dias.
- Para onde vai?
Alix me olhou diretamente e falou:
- Segredo.
Fiz uma cara de insatisfeita na hora. Todos na aldeia sabiam de minha
objeção a segredos. Sou uma das pessoas mais curiosas que existe em Azagaia. Só
perco para Flora.
- Bem, começaremos quando voltar. Se você voltar.
- É claro que voltarei! Não sei como você ainda tem dúvidas com relação a
isso.
- Outro dos mistérios dos planicianos. Por que dizem que você sempre
volta ileso das batalhas e missões que participa? E não me diga que é um
segredo.
- Não é um segredo. É mais uma característica. Nasci no bicentenário de
meu pai. Todos os filhos de Ferus nascidos nesse ano são invulneráveis.
- Por quê?!
- Não sabemos. Só percebemos com o passar dos anos. Talvez isso aconteça
de tempos em tempos.
- Isso significa que você também é imortal?
- Infelizmente não. Há uma brecha.
- E você não vai me contar qual é?
Alix deu um sorriso e saiu. Odeio essa mania das pessoas de me esconder
as coisas mais importantes.
Enquanto Alix se afastava, Felipe veio em minha direção e disse que havia
uma movimentação estranha na tenda de Ferus. Imaginei que pudesse ser Daniel e
fui para lá imediatamente. De longe pude notar que alguns dos rapazes que Ferus mandou para a
fazenda do meu avô esperavam para ser atendidos por ele. Não vi Daniel.
Continuei andando um pouco mais desanimada por não ver quem eu esperava. Ainda
assim eu queria notícias. Daniel já deveria ter chegado à fazenda e a presença
dos soldados de Ferus não poderiam indicar outra coisa. Meu coração acelerou e
minha garganta ficou seca. O que poderia ter acontecido?
- Onde está Daniel? – perguntei a Marac.
- Na fazenda. Viemos dar a notícia a Ferus.
- E porque ele não veio com vocês?
- Houve um imprevisto, Lílian. Ori sofreu uma emboscada e está ferido. Não
se preocupe que tudo está sob controle. Viemos buscar Daudana para cuidar dele.
Você também poderá ir. Ori pediu para vê-la.
Depois da palavra “ferido” eu não pude ouvir mais nada. Fiquei atônita.
Pedi a Sara para pegar algumas roupas minhas e colocar numa mochila. Queria
partir imediatamente.
- Se Ferus está autorizando minha partida sem questionamentos é sinal de
que Daniel não está nada bem. Estou enganada?
- Ele está muito machucado, mas não é nada irreversível. Deixe de
desespero e se comporte como a menina forte que eu sei que você é. Vamos?
- Espere um minuto. Preciso me despedir de minha mãe e dos meus avós.
- Estaremos esperando nos estábulos. Não demore.
Corri até a tenda de minha mãe e expliquei a ela rapidamente a situação, depois
fui até meus avós e repeti as palavras que havia dito à mamãe. Vovó foi até uma
pequena prateleira que servia de criado-mudo pegou uma chave e me acompanhou até
a saída da tenda. Depositou a chave na minha mão e disse:
- Ao chegar à fazenda vá até meu quarto e arraste minha cama. Você
encontrará uma alça de ferro no assoalho, puxe-a e encontrará uma pequena
maleta. Pegue a maleta e abra com essa chave. Entregue a Daudana. Ela saberá o
que fazer.
- O que há nessa maleta, vovó?
- São remédios, querida. Do tipo que Ori precisa agora. Vá.
Encontrei os rapazes onde havíamos combinado. Ulisses estava me esperando
para ser montado. Guardei a chave dentro da blusa, bem perto do coração. Alguma
coisa me dizia que a vida de Daniel corria perigo e eu não estava disposta a
perder mais ninguém que eu amava.
Chegamos rápido à fazenda. Estar em companhia das pessoas certas tem um
valor inestimável. Com os planicianos qualquer distância se torna curta. Eles conhecem
todos os segredos da região, os atalhos... Além do mais, a magia da floresta
está a favor deles. São os filhos da natureza.
Apeei e corri até o quarto de vovó antes de qualquer outra coisa. Peguei
a maleta no local indicado e procurei por Daudana. Indiquei a cozinha a pedido
dela e subi as escadas pulando degraus para chegar o mais rápido possível ao
quarto onde estava Ori. Quando me aproximei da porta diminuí os passos e
respirei fundo. Tive medo. Estava certa de que minha história era perder
pessoas que amo. Encarar a morte não é fácil, quando ela faz uma visita é
natural que nos sintamos desprotegidos por um tempo. Tudo o que nos rodeia se
torna frágil aos nossos olhos. Eu esperava a próxima passagem dela e sabia que
seria com todos os que eu amava. Sabia que eu seria a última a ser levada. Como
uma escolhida para assistir meu mundo desmoronar. O que mais me angustiava era
ignorar quem seria a próxima vítima. Se Ori partisse agora, nada mais faria
sentido pra mim. Não seria justo. Empurrei a porta do quarto devagar e olhei com
cuidado. Primeiro a base da cama, as cobertas enrolando um par de pernas, o
criado-mudo com itens de primeiros-socorros misturados a livros e uma jarra de água,
depois as almofadas e travesseiros até que uma voz surgiu de dentro do quarto
abafado:
- Você vai entrar ou não?!
Reconheci a voz dele e me lembro de ter sentido um alívio enorme. Se a
disposição para me constranger ainda estava firme é porque a situação não
poderia ser tão grave. Dei um golpe só no que restava da porta para abrir
encostando-a a parede. Olhei para o centro da cama e a primeira coisa que pude
notar foi o sorriso franco de dentes perfeitos de Ori. Ele estava bem. Segurei
as lágrimas e fiz um gesto em sua direção, mas fui contida por Beluga. Só então
notei a presença do comandante no quarto.
- Ele ainda não pode receber tanto carinho, Lílian. – falou o comandante.
- O que foi que houve? Posso saber?
- Claro! – respondeu Ori – Da maneira mais resumida possível, ok?
Fiz que sim com a cabeça.
- Quando os soldados da guarda pessoal do rei perceberam que eu havia
desaparecido do palácio foram até meu irmão e denunciaram minha fuga. Ele
ordenou imediatamente minha captura e eu fui encontrado e levado para sua
presença. Como castigo, Uriac achou interessante que eu fosse arremessado nas águas
geladas dos Mares Bravios do alto do Penhasco das Almas. Minha sorte é que
havia um amigo entre os soldados que mandou avisar a Beluga. Não pudemos evitar
minha queda, mas o comandante me encontrou nas pedras poucas horas depois. Não
fosse por ele e eu estaria morto.
- Tudo culpa minha! – falei – Se eu não tivesse inventado essa fuga você
estaria inteiro agora.
- Estou inteiro, Lílian. Deixe de dramas. Estou inteiro e livre! Agora só
precisamos libertar Azagaia e a ilha do Véu. A boa notícia é que as duas coisas
são uma só, na verdade. Meu irmão e seu tio estão juntos nessa.
- Eu já havia chegado a essa conclusão. Depois que você estiver melhor nós
tomaremos providências para acabar com o poder desses dois tiranos.
- Você não está entendendo, Lílian. Já mandei chamar o grupo de resistência
em Cabeceira. Devem estar vindo para cá nesse exato momento. O soldado que me
ajudou veio comigo e Beluga, mas partiu para Cabeceira assim que desembarcamos.
- Grupo de resistência?
- Exato! Davi, Michelle, Flora, Paulo e Sérgio, alguns outros que ainda não
conheço, e minha mãe, claro.
- Você só pode estar brincando comigo?
- Lílian, tive hemorragia interna há dois dias, quebrei duas costelas,
fraturei braços e pernas, cortei o supercílio. Tudo isso porque meu meio irmão
quer me matar para reinar em meu lugar. Além do mais, meu pai foi assassinado e
eu nem tenho certeza de quem o matou. Minha mãe e irmãos estão foragidos. Meu
povo está sofrendo. Acha mesmo que estou com disposição de brincar?
- Não. Desculpe.
- Não precisa se desculpar. Só quero que você entenda uma coisa: a inocência
acabou. Estamos no meio de uma guerra. Se não formos fortes seremos mortos.
XXII – O
casamento.
Acordei angustiada no meio da noite. Fazia um calor insuportável e todos
dormiam. Olhei no quarto de Ori - decidi que o chamaria pelo verdadeiro nome a
parti de agora - e ele parecia dormir profundamente. Desci as escadas devagar e
saí pela porta dos fundos. Havia um lago perto da casa principal onde Sara, Felipe
e eu costumávamos brincar no verão. Achei uma boa ideia dar um mergulho nas águas
geladinhas do Terena para refrescar o corpo e espantar as preocupações que
habitavam meus sonhos ultimamente. Levei um roupão para não voltar molhada a
casa e mais nada. Os companheiros de Alix estavam acampados por todo lado e
precisei fazer muito silêncio para não ser pega. Esgueirei-me pela parede da
varanda e, assim que saí da zona de visão dos planicianos, corri o mais que
pude. O vento frio jogava meus cabelos para trás e secava o suor que escorria
de minhas têmporas antes que alcançassem o pescoço. O vento sempre me traz uma
sensação de liberdade irresistível. Não queria parar de correr, mas o lago não
era muito distante da casa. Assim que cheguei às margens do Terena olhei para
as águas escuras diante de mim e senti saudades das brincadeiras dos anos
anteriores. Quase pude ver Sara e Felipe ali comigo. A infância é um presente
que não sabemos que ganhamos até que seja tarde. Mergulhei o mais profundo que
consegui. Queria deixar minhas preocupações no fundo do Terena. Seria possível?
Quem pode garantir? Nadei de volta à tona me sentindo mais leve. Quando cheguei
à margem, porém, o velho e inquebrável vidro impedia minha passagem mais uma
vez. Comecei a engolir água rapidamente e senti quando minhas forças deixavam
meu corpo escapando pelas extremidades dos meus dedos. Simplesmente deixei que
o corpo afundasse.
Abri os olhos e já era de manhã. Todas as vezes que sonhava com o mar de
vidro acordava exausta. O barulho lá fora indicava que a movimentação na casa já
estava a todo vapor. A resistência! Levantei de um salto e desci as escadas
correndo. No meio da sala pude ver Flora e todos os meus medos ficaram
esquecidos.
- Não acredito que você esteja aqui! Que saudades! – falei.
Ela veio em minha direção e ficamos abraçadas por alguns minutos em
silêncio.
- Quanto tempo, minha amiga! Há anos penso em vir te visitar, mas as
coisas se complicaram muito em Cabeceira. Lílian, você não reconheceria nossa
cidade agora.
- Eu sei Flora. Conheço você o suficiente para saber que jamais deixaria
de me ver sem um motivo muito justo. Além do mais, eu também não pude estar com
vocês. Não foi fácil para nenhum de nós.
Olhei ao redor e meus amigos estavam todos ali. Pela primeira vez tive
uma sensação gostosa de unir dois lugares que eu amava.
- Infelizmente, os motivos que nos trazem aqui não são nada bons. – disse
Paulo, se levantando para me abraçar.
Pouco a pouco, fomos nos cumprimentando e falando dos anos que ficamos
separados. Parecia uma reunião de escola, mas não era. Lá fora, em algum lugar,
homens que deveriam nos proteger buscavam meios de nos aniquilar. A vida cobra
cedo para algumas pessoas. O que mais me angustiava era não saber se um dia teríamos
paz. Se alguém me dissesse, naquele momento, que tudo ficaria bem um dia,
talvez fosse mais fácil suportar. Mas ninguém ali poderia garantir isso. Não
ainda. Ferus tinha mais de duzentos anos e nenhum deles foi de paz. O que tem
de errado com os homens para viverem em constante estado de insatisfação? Se é
que há erro nesse desejo eterno de superar limites. Na verdade não tenho nada
contra. O que me incomoda é a falta de diplomacia, a intolerância, a
desumanidade. Você pode escalar um monte, pular de um precipício, atravessar um
oceano, que eu vou entender que é uma busca por superação. Mas isso de matar
uma pessoa porque se considera superior a ela é uma coisa que não entra na
minha cabeça. Nunca entrou. Não entrará. Farei o possível para defender a mim e
aos que eu amo, mas odeio a situação em que fui inserida. Não ter escolhas é a
maneira mais rápida e segura de fazer uma pessoa se sentir fracassada. É isso
que eu sinto quando penso nessa guerra: frustração.
Passamos aquela tarde colocando todos a par dos acontecimentos. Na prática,
a Resistência é que teve que me colocar a par da nova situação política de Azagaia.
Muitos de nossos conhecidos em Cabeceira foram exilados. Pessoas que eu conhecia
desde que era uma garotinha. Aprendi a andar na pracinha em frente à minha casa
em Cabeceira. Agora ela era um monte de escombros, assim como a minha casa.
Sobre o muro que dona Domingas usava para apoiar os cotovelos quando queria
fazer algum comunicado sobre a vida dos outros na cidade, o governo colocou uma
placa com os dizeres: “Para que as próximas gerações se lembrem do que acontece
aos que não são fiéis à Cabeceira do Rio Seco”. Como assim? Não havia homem
mais fiel à cidade que meu pai! E o cenário de horror não parava por aí. A
sorveteria de seu Eusébio havia sido interditada por acusação de colaborar com a
desordem entre os moradores da cidade. Dona Domingas trabalhava para o governo,
como informante, claro. A mãe de Catarina também estava do lado deles. Os pais
de Flora também foram obrigados a buscar abrigo na cidade vizinha e a família
de Paulo e Sérgio estava fazendo companhia à rainha Araceli numa aldeia perto
das Terras das Rotas Diagonais. Enquanto as pessoas falavam só conseguia pensar
no peso de minha responsabilidade. Há situações na vida que a gente não pode se
isentar de fazer nossa parte ou estaremos sendo injustos.
- Bem, Lílian – interrompeu Flora – Temos mais uma novidade para te
contar, mas essa é boa.
- Então contem logo! Toda boa notícia é bem-vinda! – respondi.
- É difícil falar assim, sem explicações completas... Algumas coisas
aconteceram sem que você tomasse conhecimento... Quer dizer... Não estávamos
nos vendo e... Preciso pensar em como dizer sem parecer rude.
- Não estou entendendo. É uma boa notícia ou não?!
Percebi que todos trocavam olhares como de comparsas em um crime e
imaginei que boa coisa não poderia vir daquela hesitação toda de Flora.
- Fala logo Flora!
- Calma Lílian!
- Gente, a maneira mais fácil de deixar uma pessoa nervosa ao dar uma notícia
é pedir que ela mantenha a calma! Tá me deixando com medo.
Felipe interrompeu:
- Lílian, o que Flora está tentando dizer é que nós ficamos muito tempo
longe um do outro, mas assim que nos vimos hoje de manhã todo o sentimento
estava intacto e eu a pedi em casamento.
- Mas essa notícia é ótima! Porque não me disse logo?! E quando pretendem
se casar? Nem devem ter pensado nisso ainda. Eu e minhas mil perguntas!
- Na verdade, pensamos numa data sim, Lílian. – disse Flora.
- Ah, é? E quando seria?
- Será! Amanhã no fim da tarde.
- O quê? Vocês enlouqueceram? Essa é boa! Amanhã? Com uma guerra prestes
a acontecer e gente morrendo? É brincadeira, não é? Só pode.
- Não é brincadeira, Lili. E eu sabia que você se comportaria desse
jeito.
- Mas vocês só têm dezessete anos!
- Eu tenho dezoito, Lílian. E Felipe é mais velho. Nossos pais se casaram
até mais novos que nós. E estamos antecipando o casamento justamente por causa
da situação. Há uma guerra lá fora e Felipe passou perto da morte uma vez. Ele
irá lutar pela redenção de Azagaia, mas gostaria de um pouco de felicidade.
Acho justo. Você deveria ter ficado feliz por nós! Porque todo esse drama?
- Não sei. Fui pega de surpresa, acho. Desculpe amiga! Foi o susto. Mas
estou feliz, claro! Desde que você me garanta que terá tempo pra mim...
- Sua criança ciumenta! Eu sabia que era ciúme. Deixe de bobagem. Você
será minha madrinha. Tem um vestido, não tem?
- A gente dá um jeitinho.
Depois da notícia do casamento de Flora e Felipe não se falava em outra
coisa na fazenda. Era como se não houvesse mais guerra, dor e separação. Estávamos
em outro mundo. Um mundo onde o amor sempre vence. Até Ferus designou uma
comitiva para cuidar dos preparativos. Não sei de onde surgiu tanta comida, mas
estava feliz por isso. Preparamos o local da cerimônia perto do lago, na
entrada da fazenda. Fui até o porão com os meninos e juntamos o maior número de
lampiões que encontramos. Pensei em colocarmos nos carvalhos da entrada para
iluminar o lugar com charme. Limpamos as mesas de madeira e tiramos as toalhas
de vovó das gavetas para lavar. Felipe estava radiante, mas ninguém se
comparava a Flora. Parecia que um raio de sol tinha feito seu coração de casa.
Alix chegaria a tempo e seria meu par, uma vez que Ori ainda não estava em
condições de se levantar. E eu ainda precisava procurar um vestido pra mim.
O dia seguinte foi ocupado com o restante dos preparativos para a cerimônia.
Felipe foi com Sérgio à cidade buscar o juiz de paz. Flora estava com vovó fazendo
ajustes no vestido. Mamãe e eu estávamos na cozinha preparando a comida. Eu
sempre escolhia a melhor parte. Michelle estava conosco e enrolava os docinhos.
É verdade que comia um e enrolava dois, mas ajudava bastante. Paulo estava
silencioso e isso me intrigou a manhã toda. Sumiram na floresta atrás de Marac
e outros planicianos. Com tantas coisas a fazer acabei não dando atenção a Ori.
Ele acompanhava tudo da janela de seu quarto, mas não era a mesma coisa. Tinha nos
olhos um pouquinho de amargura por não poder estar com a gente. Essa manhã ele
havia deixado a cama e andava bem devagar pelo quarto. Achei prematura a decisão,
mas Daudana disse que seria bom pra ele ir se levantando aos poucos. A rainha
Araceli havia chegado com Davi de madrugada e estavam no quarto com ele.
Na hora do almoço, servimos macarrão que era a coisa mais prática a ser
feita. Os homens reclamaram a falta de carne, mas dar de comer a mais de
duzentas pessoas não é tarefa simples. Além da comida de Ori que tinha que ser
separada. Foi um dos dias mais cansativos de minha vida! E olha que escrevo
isso numa trégua de trinta dias de uma guerra de quatro anos! Ao terminarmos de
organizar tudo só havia tempo para tomar banho e descer para a cerimônia. Quando
eu estava no banho, porém, ouvi uma movimentação estranha na frente da casa e
me lembro de ter imaginado que fosse a chegada de convidados. Quando saí do
quarto e olhei pela janela pude constatar que estava errada. O mistério do sumiço
de Paulo com os planicianos estava solucionado. Eles haviam fabricado uma
pequena, mas muito linda ponte para o lago da fazenda. E vários homens agora os
ajudavam a instalá-la para que a noiva pudesse atravessá-la a caminho do altar.
Foi o presente de casamento dos planicianos. E de Paulo, claro. O sorriso que
eu vi no rosto dos meus amigos e parentes quando a ponte foi colocada no lugar
era o que eu queria ver todos os dias da minha vida. Alguns momentos de
felicidade são tão curtos que quase não podemos identificá-los imediatamente.
Alguns somente a memória pode nos trazer com o tempo. Ainda pude ver Michelle e
mamãe prendendo angélicas e gérberas nas treliças em torno da pequena ponte.
Fechei a cortina e comecei a me arrumar sentindo muita falta de Berenice. Trevo
me olhava de soslaio, como se estivesse lendo meus pensamentos.
Quando finalmente desci, o sol estava se pondo e os lampiões começavam a
brilhar no crepúsculo. Parecia o cenário de um sonho. Havia flores por todos os
lados e as cadeiras estavam decoradas com fitas coloridas. Nem acreditei que
tudo isso havia sido organizado em dois dias! Eu usava um vestido rosa que
ganhei de vovô dois anos antes, mas estava apertadíssimo por conta dos músculos
que adquiridos no treinamento com Alix. Quase não podia respirar. Caminhei até o altar improvisado e olhei ao redor a procura do meu par.
Nem pude acreditar em meus olhos quando vi Alix andando em minha direção. Os cabelos
compridos estavam presos por um rabo deixando o rosto anguloso e queimado pelo
sol mais destacado. Ele vestia o terno de alguém, mas caminhava com tanta elegância
que dava a impressão de fazer isso todos os dias. Veio sorrindo em minha direção
e eu não pude deixar de comentar:
- Está muito elegante, titio.
- E você está linda. Mas deixemos os adjetivos de lado que o seu
namoradinho nos observa da janela.
Olhei para a janela do quarto de hóspedes e Ori sorriu pra mim.
- Como você sabia?
- Os homens são todos iguais, Lílian. Eu também estaria de olho na minha
namorada se não pudesse andar e ela fosse linda como você.
- Que coisa mais cafajeste a se dizer!
- Eu sei. Desculpe-me.
- Como uma simples observação pode fazer um homem bonito voltar a ser um
selvagem!
- Eu sou um selvagem, Lílian. Não é uma ofensa dizer isso a meu respeito.
Vovó começou a tocar o violino, que havia sido o único instrumento
sobrevivente do ataque de Constantino à fazenda, anunciando a entrada da noiva.
Ficamos em silêncio e puder notar em Felipe um sorriso nervoso. Como aquele
moleque com quem eu brincava quando cheguei à Poço das Almas pode ter se tornado um adulto sem que eu
percebesse? Como o tempo passa e não nos damos conta! Havia um travo de
nostalgia naquela cerimônia pra mim. Vovô trazia a noiva e Michelle vinha logo
atrás segurando a cauda do vestido. A tradição dizia que quem segurava a cauda
do vestido era a próxima a se casar. Flora estava linda. Com um vestido branco,
de renda e feito exclusivamente para ela pelas mãos habilidosas de minha avó e Daudana.
O véu tinha sido de uma das esposas mais novas de Ferus e media três metros. As
noivas não seguram flores em Azagaia como em outros lugares. Aqui nós entramos com
algum objeto que lembre nossa infância. Como Flora não havia saído de Cabeceira
com seus pertences, emprestei Trevo e ela entrou com ele devidamente
encoleirado. O juiz foi breve e em menos de uma hora todos se reuniram em torno
das mesas de madeira cheias de comida e ornamentadas com frutas e flores. Como
manda a tradição a festa tem duração de três dias, mas os noivos partem para a
lua-de-mel na primeira noite de comemorações.
- Lílian, você pode me acompanhar até o quarto e me ajudar a tirar esse
vestido? – perguntou Flora por volta de meia-noite.
- Claro. – respondi – Mas para onde vocês irão a essa hora? Não dormirão
aqui?
- Ah, não. Ganhamos de Alix uma hospedagem na cabana particular dele nas
Montanhas Rochosas. Passaremos uma semana lá. Presente de padrinho.
Só então me ocorreu que eu deveria dar um presente de madrinha. As noivas
costumam usar aqui alguma joia de ouro e berilo na noite de núpcias. Lembrei-me
de ter uma tornozeleira com um pingente dessa pedra e entreguei a Flora.
- Espero que dê muita sorte a vocês – disse.
- Tenho certeza que dará. Obrigada por tudo, amiga.
- Obrigada pelo quê? Não fiz nada.
- Se não fosse você e sua família eu não teria conseguido me casar hoje.
- Se não fôssemos minha família e eu Azagaia estaria em paz.
- Ah, que pretensiosa! Essa guerra é muito anterior a você. É anterior até
a nossa presença aqui, Lili. Não se culpe. Aproveite os momentos felizes como
esse, daqui a pouco eles serão somente lembranças.
Naquele instante, Flora estava me dando uma das mais valiosas lições que
aprendi na vida. E eu nem havia percebido.
O restante da noite foi dividido entre as danças e comemorações do
casamento e a mesa de doces que eu e Sara atacamos sem piedade. Fomos para a
cama com o dia amanhecendo para só acordarmos perto da hora do almoço.
O dia seguinte de um casamento em Azagaia é comemorado com muita comida e
uma série de competições entre homens e mulheres. O objetivo dos jogos é
promover o encontro de jovens que serão os próximos noivos. Como eu já estava
com meu coração ocupado, não me inscrevi em nenhuma modalidade. Queria passar a
tarde com Ori. Ele estava um pouco chateado por não ter participado do
casamento e eu percebi que havia um pouco de amargura por eu não ter ficado nem
um minutinho em sua companhia. Achei que seria uma boa forma de pedir desculpas
se eu ficasse com ele durante as competições daquele dia, mas estava enganada.
Ori não estava em seu quarto quando fui procurá-lo. Ao invés de obedecer as
recomendações médicas e descansar, ele simplesmente havia desaparecido! Avisei aos
rapazes, mas antes mesmo que pudéssemos sair à sua procura ele surgiu montado
em um dos cavalos da fazenda, com aquele ar arrogante que eu bem conhecia,
apesar da fisionomia abatida de convalescente. Corri até ele, segurei as rédeas
do cavalo e implorei que apeasse e voltasse para o repouso, mas vi em seus
olhos que estava decidido a cometer uma loucura. Falou comigo como se eu fosse
uma estranha e a dor que senti na hora era parecida com a de perder alguém.
- Saia da minha frente, Lílian. Não se deve impedir o caminho de um rei.
Atendi seu pedido e observei. Ori foi até Alix e disse em tom desafiador:
- Soube que vocês têm uma corrida de cavalos famosa aqui. Gostaria de
participar.
Alix olhou pra mim e compreendeu que se tratava de uma disputa de egos. Não
era o tipo de homem que se acovarda diante de um desafio e perguntou:
- Você está em condições de competir, rapaz? Não é um trajeto fácil. Se
você voltar atrás será um sinal de inteligência e não de covardia.
- Um rei nunca volta atrás de suas decisões. Está feito. Posso
participar?
Olhei para Alix e fiz sinal para que não permitisse, mas os homens são
insuportáveis quando o que está em jogo é o poder.
- Aceito o desafio. Prepare-se. A corrida começa em alguns minutos.
Ainda tentei apelar para Ferus e meu avô, mas eles disseram que não
poderiam impedir Ori de fazer o que quisesse. Ele não era mais um menino e
deveria aprender com seus erros. Não fiquei para ver o resultado daquilo. Subi
e me tranquei em meu quarto com Trevo e Sara. O prêmio eram duas barras de ouro
e o Ulisses. O ouro não era nada, mas Ulisses valia o risco. A corrida começou
e ficamos todos apreensivos na fazenda. Pedi a Tibério, um dos genros de Ferus,
que seguisse Ori e o trouxesse de volta caso desmaiasse pelo caminho. Mesmo
assim estava uma pilha de nervos. Uma hora depois, a agitação das pessoas
indicava que o vencedor estava próximo. O que eu sentia era um misto de ódio e
desejo de estar errada em acreditar que ele sairia machucado dessa competição
idiota. Só queria que Ori entendesse que o poder dele não me atraía nem um
pouco. Mas até eu ficava em dúvidas sobre isso de vez em quando. De repente,
escutei uma voz conhecida me chamando embaixo de minha janela e meu coração
descompassou.
- Aqui está seu prêmio, Lílian Amaral!
Quando finalmente criei coragem e olhei pela janela lá estava ele, todo
empoeirado e segurando as rédeas de Ulisses em uma das mãos:
- Fico com o ouro, mas você merece o cavalo. Considere um presente de
noivado.
E Ori abriu pra mim um daqueles sorrisos perfeitos que só ele tem. Logo
depois Alix chegou seguido de Marac. Pude perceber que ele não estava nada
satisfeito com o resultado da corrida.
Desci e recebi meu prêmio. Dei um beijo de agradecimento e todos
aplaudiram. Ori sussurrou em meu ouvido:
- Eu jamais deixaria você ir para uma batalha sem um cavalo que te
trouxesse de volta. Não sou louco, Lílian. Sei muito bem as chances que tenho e
sabia que poderia trazer Ulisses pra você. Aliás, o que me incentivou foi o que
descobri essa manhã. Ulisses não é o nome original desse cavalo. Nome dele é
Zaldi. Exatamente. Ulisses é o cavalo de
Agassi. Apostei com Ferus que ganharia a competição se o prêmio fosse o cavalo
imortal da filha de Goshat e ele concordou que Ulisses não poderia estar em
melhores mãos que as nossas.
- Caso Alix ganhasse, o cavalo continuaria entre os planicianos e Ferus não
perderia nada. – completei.
- Exatamente.
- De qualquer forma foi um risco muito grande. Você ainda não está
completamente recuperado da queda. Poderia ter morrido!
- Falando nisso, preciso voltar para a cama e beber minha dose de
vandrana. Meu corpo todo está dolorido. É melhor não arriscar.
Pedi a Paulo e Sérgio que ajudassem Ori a subir e chamei Daudana. Ela
cuidou de tudo e em pouco tempo Ori estava dormindo. Fiquei ao seu lado e
acabei pegando no sono debruçada sobre suas pernas. Poderia passar a eternidade
ali, mas a felicidade é uma nuvem que se desfaz tão rápido quanto se forma. O
jeito era esperar pela próxima.
XXIII – Batalha
do Vale de Lahur.
O tempo passou sem que nos déssemos
conta. Felipe e Flora voltaram da lua-de-mel e, na mesma tarde, estávamos todos
treinando com Alix junto aos jacarandás. Com os cuidados de Daudana, Ori se
recuperou mais rápido do que imaginávamos e se revezava com Alix nas orientações
sobre técnicas de luta. É bem verdade que ele só nos orientava. Mesmo
recuperado, ainda não tinha condições de fazer exercícios mais pesados. Vovô,
Ferus e alguns anciãos nos davam aulas de história e estratégia. Marac nos
ensinava sobrevivência em zonas de perigo. Passamos alguns apertos, mas sempre
havia uma mesa de gostosuras de vovó ao final do dia. Naquela época ainda não tínhamos
a exata noção do que estava por vir. Sentíamo-nos como escoteiros num
acampamento de verão. Tínhamos o gosto pela aventura sem saber que não há nada
de doce ou prazeroso num campo de batalha. Éramos crianças.
Alguns meses depois do casamento, os representantes das cidades de
Tornados e Redenção vieram à fazenda e se reuniram com Ferus, Alix, vovô e Ori.
Passaram horas no escritório de vovô e a casa permaneceu todo esse tempo
mergulhada em um silêncio aterrador. Havia um peso nos olhares e as bocas
pareciam seladas pela expectativa do que poderiam ser aquela reunião. Nós
tivemos medo pelo que vimos nos olhares dos mais velhos, daqueles que já haviam
experimentado da guerra todas as perdas e angústias que ela proporciona. Quando
a noite ameaçou invadir as janelas do grande casarão dos Gutierrez, os homens
saíram um a um do escritório, se despediram com apertos de mão silenciosos e
partiram, deixando nossos homens com expressões graves estampadas nos rostos.
Foi Ferus quem falou, quebrando o silêncio:
- Reúnam todos ao amanhecer na frente da casa. Temos um comunicado a
fazer.
Nem é preciso dizer o quanto aquelas palavras colocaram todos nós em
estado de alerta. Com certeza algo grave estava acontecendo.
(continua)
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