terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Parte I


I – Introdução.
Não sei quanto tempo fiquei parada, braços cruzados, pernas levemente afastadas. Poderia ter sido um minuto ou uma hora, estava tão mergulhada em meus pensamentos que não vi o tempo passar; só sentia a brisa fresca do mar batendo em meu rosto, embolando as pontas dos meus cabelos. Sempre que me sinto angustiada ou quando estou triste, ou simplesmente quando não posso fugir de tomar uma decisão venho ao Campo dos Refugiados – o nome não poderia ser mais apropriado – e me esvazio de tudo para me ocupar apenas do que é essencial no momento. Olho para as ondas batendo nas pedras, a espuma desaparecendo em segundos, fecho os olhos e me concentro no som que vem delas. É impressionante constatar o quanto o mar me acalma. Sinto tanta segurança no barulho das águas se movendo que não consigo resistir e chego mais para a ponta das pedras, ouço uma voz me chamar atrás de mim, mas antes que pudesse discernir seu rosto sou puxada violentamente para o mar. Tento me segurar, mas só o que consigo é deixar as marcas dos meus dedos no limo sobre as pedras. É inevitável que eu afunde então me lembro que a maneira mais rápida de uma pessoa se afogar é entrando em desespero. Deixo a corrente me levar até a força que me empurra para o fundo diminuir, a claridade do sol denuncia onde fica a superfície e uso toda a energia que me resta para nadar em sua direção. Para minha surpresa, uma camada espessa de vidro transparente impede minha passagem. Procuro uma saída, mas o mar está todo coberto de vidro. Desesperada, na certeza de que não tenho mais saída, começo a me debater e engolir água, aquela água salgada entra por minha boca e nariz como se fosse fogo, ardendo e arranhando tudo por onde passa. Em questão de segundos sinto que estou perdendo os sentidos, mas algo dentro de mim insiste em lutar. Olho para o alto como última tentativa de sobrevivência, dando murros contra o vidro para chamar a atenção da única pessoa parada nas pedras, no exato lugar de onde caí. Ela vira o rosto na minha direção, impassível, e só então me dou conta de que a pessoa sou eu.
Acordei assustada, o corpo embebido em suor, já é de manhã e parece que dormi durante meia hora no máximo, meu corpo precisa descansar, mas minha cabeça não relaxa. Há meses venho sofrendo de insônia e tendo esse mesmo sonho de que estou me afogando e não tenho escapatória, desde que recebi a notícia de que minha vida mudaria drasticamente pela segunda vez. A primeira foi há muitos anos, quando eu era apenas uma garotinha...





II – A História de Amor Mais Linda de Azagaia.
Quando nasci, o Carvalho do Limite já não separava Cabeceira do Rio Seco da Terra das Rotas Diagonais. Em seu lugar havia uma pedra com a inscrição gravada em tinta branca:
O homem aprovado é um homem feliz.
Os forasteiros não sabiam o que significava essa frase, mas os moradores de Cabeceira davam a ela a importância que os gregos davam aos oráculos.  Avistar a pedra pela perspectiva de quem entra na cidade equivale a receber um diploma com mérito.
    Terra das Rotas Diagonais é o nome que se dá a uma extensa planície ao sul de Azagaia, que circunda as cidades de Tornados e Cabeceira do Rio Seco. Nela os ventos vespertinos sopram com energia, formando sons assustadores quando o sol começa a se por. A extensão é incalculável, pois se pode atravessá-la em oito dias em alguns pontos ou levar meses em outros. Também não há como consultar uma rota segura, porque todos os que conseguem atravessá-la esquecem-se do caminho percorrido no instante em que cruzam suas fronteiras. Mas há um detalhe mais importante que todos os outros quando o assunto é enfrentar a Terra das Rotas Diagonais, qualquer que seja o caminho percorrido. Não há como atravessá-la em linha reta ou fazendo ziguezagues, não há liberdade em seus domínios, o viajante que quiser chegar ao seu destino são e salvo deve traçar uma rota diagonal e obedecê-la. De outra sorte, ele se perde e morre antes de conseguir se lembrar quem é ou o que faz ali.
Quem me deixou a par de todas as histórias envolvendo a Terra das Rotas Diagonais e a região de Azagaia foi meu pai. Todas as noites, antes de dormir, ele contava um pedaço do que considerava a história de nossa origem. Eu bebia suas palavras com a inocência e a curiosidade que só as crianças tem. Além do mais, aquele era o único momento em que meu pai era só meu e de mais ninguém. Cada vez que eu acrescentava mais informações às pesquisas que ele fazia sobre a vida de nossos ancestrais mais próxima a ele me sentia. Por isso, quando meu pai me mandava dormir eu não discutia, cumpria o ritual diário a caminho da cama, parando somente para puxar da estante da sala um livro bem grande, com a capa azul escura e estrelinhas de tamanhos diferentes salpicadas que imitavam o céu da noite. No centro havia uma lua cheia, e em volta dela o título em letras prateadas: Histórias para ficar acordada – a verdade sobre Azagaia. Esse não era o tipo de leitura que fazíamos na escola. Não era a versão oficial, o que a tornava muito mais divertida e consultada. Eu possuía outro motivo particular para manter esse momento vivo. É óbvio que a essa altura já conhecia todas as histórias de cor, mas não cansava de ouvi-las porque isso mantinha meu pai em casa. Ultimamente ele andava muito ocupado e trabalhava tanto que, às vezes, me colocava para dormir e saía outra vez. Nesses dias eu ouvia mamãe chorar baixinho e imaginava que papai era caçador de feras bestiais e corria grande perigo lá fora. Essa era a única explicação possível para minha cabecinha infantil, afinal de contas, o que poderia ser tão grave a ponto de deixar minha mãe tão abalada?! Isso me deixava nervosa, com medo de que ele não voltasse, mas não podia encher minha mãe de perguntas, alguma coisa dentro de mim dizia que isso a faria piorar. Em alguma dessas noites eu ia para a cama de minha mãe e fazia carinho em seu cabelo até uma de nós dormir. Geralmente era ela. Não sei como, no dia seguinte eu sempre acordava na minha cama, e tudo dava a impressão de eu haver sonhado.
- Você vai se atrasar para a escola, Lílian! Será que todo dia tem que ser assim? Ficou até tarde lendo, mocinha?
- Não, mamãe. Eu estava na sua...
- Não importa! Já falei com seu pai que ele está te acostumando muito mal, com essas leituras fora de hora. E deixe de conversa. Você não sabe conversar e se arrumar ao mesmo tempo. Pegue sua mochila que eu vou te levar.
- Mãe?
- Oi, Lílian. Que é agora?
- Não é nada, deixa pra lá.
A escola ficava duas ruas depois da nossa, um quarteirão à frente. Eu poderia ir perfeitamente sozinha, mas meus pais não permitiam. Ser filha única às vezes é um pouco frustrante. Os gêmeos Paulo e Sérgio costumavam ir de bicicleta! Imagina! E Catarina morava bem mais longe que eu e só andava sozinha. Mas eu não era a única a ir acompanhada. Flora, minha melhor amiga, ia com a babá. Eu pelo menos não tinha que passar por isso.
Fui em silêncio o caminho todo. Provavelmente meus amigos já haviam chegado o que explicaria a ausência de crianças na rua.
- Marina! Marina espere um minuto! – Dona Domingas estava gritando na outra calçada. Todos os dias ela chamava minha mãe e trocavam algumas palavras. A maior diversão daquela mulher magra, de olhos saltados e cabelos sempre presos debaixo de um lenço estampado era provocar minha mãe. Não se gostavam, mas a boa educação as obrigava a se tratarem com cortesia.
- Essa não! Lá vem a fofoqueira da rua tentar saber porque seu pai não dormiu em casa. – disse minha mãe.
- E você não está preocupada mãe? – perguntei.
- Claro que não, meu bem. Eu sei perfeitamente onde seu pai está e ele está ótimo!
- Bom dia! Olá Marina, fugindo de mim?
- E por que eu fugiria de você, Domingas?
- Estou brincando sua boba. Não está de bom humor?
- Nem bom, nem ruim. Estou com o humor de sempre. Você me conhece há anos e sabe que nunca fui muito espirituosa.
- Nem eu seria se fosse você.
- Dona Domingas? – eu interrompi- A senhora não dormiu à noite? Por que está com umas olheiras enormes!
- Eu? Olheiras? Acho que dormi pouco sim. Tenho que ir deixei alguma coisa no fogo. Até mais...
- Menina, você não é fácil – disse mamãe, morrendo de rir – não sabe que ela tem verdadeiro horror às olheiras que herdou de família?
- Claro que sei, mas estamos atrasadas e ela não nos deixaria em paz de outra forma.
- Isso é verdade. Vamos!
Quando chegamos, seu Osvaldo já estava passando o cadeado no portão. Ele sempre demorava a fechar porque sabia que chegava atrasada, mas não faltava.
- Bom dia, menina Lílian! Bom dia Dona Marina? Como vai seu Camilo?
- Bom dia Osvaldo. Vai bem, obrigada. Mandou um abraço para o senhor.
- Mande outro. E diga-lhe que passe lá em casa qualquer dia, tenho novidades que trouxe de Tornados.
- Digo sim. Lílian! O que está fazendo aí de boca aberta? Vá para a sala!
- Sim mamãe. Até mais tarde.
- Até. E veja se não fica de conversa na aula. Não quero Dona Arlinda fazendo reclamações novamente.
- Sim mamãe.
As aulas passaram rápido. Por isso gostava de estudar de manhã.  Na hora da saída quem me esperava era papai. Corri em sua direção, o coração disparado.
- Olá, princesa!
- Oi papai. Você não estava em casa de manhã.
- Não vamos falar sobre isso agora. Quer tomar um sorvete?
- Mas antes do almoço? Mamãe vai brigar com a gente.
- Não vai não. Hoje ela se atrasou um pouco e deixou a gente tomar um sorvete, mas avisou que é só uma bola.
- Eu sabia! Tudo bem, melhor uma que nenhuma.
- Também acho.
Fomos à sorveteria de seu Eusébio, a única de Cabeceira. Escolhi o sorvete de Jabuticaba, meu preferido. Eu sabia que alguma coisa estava acontecendo e que meu pai queria conversar comigo. O sorvete era uma maneira de me compensar ou distrair, não sei. Só sei que aquela foi a última vez que tomei sorvete de jabuticaba. Depois desse dia o sabor sempre me enjoava.
- Lílian, precisamos conversar.
- Pai, eu acho que o sorvete me fez mal. Preciso ir ao banheiro. Vamos para casa?
- Sim, meu bem, vamos. Você pode andar?
- Acho que seria melhor você me levar no colo.
- Você sabe que temos que conversar, não sabe?
- Tá doendo minha barriga pai! Você não entende?
- Venha.
Meu pai me levou correndo para casa, mas percebi que minha reação doía mais nele que em mim. Fui chorando o caminho todo e ele não falou mais nada. Quando entramos em casa minha mãe perguntou o que ele havia feito e os dois começaram a discutir. Não adiantou eu falar que foi alguma coisa que havia comido no colégio, percebi que não havia o que fazer e resolvi deixar as coisas acontecerem. Quando eles viessem conversar comigo da próxima vez eu os ouviria.
Quando meu pai foi me colocar para dormir aquela noite percebi que a hora havia chegado. Não adiantaria chorar ou inventar uma doença, não adiantaria fugir. A decisão já estava tomada e só o que queriam era me avisar. Enquanto escutava os passos dele em direção ao meu quarto pensei em quanto tempo eu voltaria a ouvi-los. Fiz um esforço enorme para não chorar. A vida que eu conhecia estava acabando e eu era muito novinha para entender que nada dura para sempre. Dentro de mim havia um desejo enorme de negar tudo aquilo, mas eu sabia que seria inútil. A porta se abriu e o rosto de meu pai apareceu com uma expressão de desconforto.
- Posso entrar mocinha?
- Pode. Onde está o livro?
- Hoje eu vou te contar uma história que não está naquele livro, mas que deveria. É a história de amor mais linda de Azagaia.
- Pensei que fôssemos conversar.
- Meu amor, você sabe que é a pessoa mais importante do mundo para mim, não sabe?
- Acho que sim, papai.
- Não ache, estou dizendo que é. Você acredita no seu pai?
- Acredito.
- Então escute a história que vou lhe contar hoje porque é muito importante. Há alguns anos, um rapaz magrinho e muito valente recebeu do pai uma missão muito especial. Ele precisava viajar até uma cidade distante para levar uma carta secreta a um amigo de seu pai. A carta só poderia ser entregue em mãos e o rapaz não poderia voltar até que houvesse uma resposta. O moço ouviu tudo com atenção e partiu. Ao chegar ao destino indicado foi recebido com festas e muita alegria. Foi convidado a se hospedar na casa do homem a quem levou a carta até que esse estivesse pronto para mandar uma resposta. No dia seguinte, ao passear pela propriedade, viu uma moça ensinando a um grupo de crianças e se apaixonou imediatamente. Descobriu que a menina era filha do homem a quem levou a carta e resolveu agradar-lhe até que surgisse um momento oportuno para pedir-lhe a mão de sua preciosidade. O rapaz pertencia a uma família muito respeitada em sua cidade o que o tornava um excelente partido. Antes de conversar com o pai, porém, decidiu que falaria com ela para saber se tinha chances. A moça correspondeu aos seus sentimentos, mas avisou que estava prometida a outro e que seu pai jamais voltaria atrás de uma palavra dada. Planejaram uma fuga e partiram dois dias depois. A viagem de volta para a cidade do rapaz foi difícil e perigosa, pois estavam sendo procurados pela família dela e não podiam usar as estradas conhecidas. Levaram meses até que chegassem à casa do pai do rapaz, e a moça esperava uma criança. Quando finalmente chegaram, não foram recebidos como imaginaram. Descobriram que o noivo da moça era o irmão mais velho do rapaz e que a carta pedia que o pai dela a enviasse para o casamento. Houve um rompimento entre as famílias por causa da fuga e os amigos de tantos anos agora eram inimigos mortais. Pelo costume local, a mulher passava a fazer parte da família do marido e seu destino a eles pertencia enquanto fosse casada. Como castigo, os dois foram banidos e deserdados. Agora estavam sozinhos. Apesar de todo o contratempo, o casal viveu feliz por muitos anos e tiverem uma filhinha linda. Uma verdadeira princesa...
Então meu pai se levantou, me cobriu, apagou a luz e se dirigiu até a porta. Senti um medo inexplicável e um aperto no peito. Não poderia deixá-lo ir sem ao menos perguntar o fim de tudo aquilo.
- Pai?
- Pois não, meu bem?
- Como essa história termina?
- Ela ainda não terminou. Agora durma, minha princesa, amanhã conversaremos.
Na manhã seguinte, desci para tomar o café e encontrei meus pais na sala. Ele estava sentado no sofá, cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos segurando a cabeça. Mamãe estava de pé, os olhos vermelhos e inchados, e uma expressão de quem não havia dormido. No chão ao seu lado estavam várias malas, inclusive minha mochila cor-de-rosa.
- Oi querida! – meu pai quebrou o silêncio me obrigando a olhar para ele.
- Mamãe? - chamei em busca de respostas.
- Venha tomar seu café Lílian, – ela disse – seja boazinha porque a mamãe vai precisar de você hoje. Nós vamos visitar o vovô e a vovó, vamos passar um tempo com eles. Você vai gostar.
- Mas mãe, e a escola? E meus amigos? Não avisei a eles. Não quero ficar longe deles!
- Querida, não faça perguntas. Prometo que conto tudo para você, mas isso não vai acontecer hoje. Seja paciente e se comporte como a mocinha que você já é. Estamos combinadas?
Enquanto ela falava, eu podia perceber o quanto sofria pela voz tremida e os olhos marejados. Pela primeira vez na minha vida senti raiva do meu pai e me assustei. Tentei não pensar no que estava acontecendo e entrei no jogo deles.
- Quero café com leite – falei, enquanto andava em direção à cozinha.
Mamãe preparou meu café, mas antes que eu tomasse me deu um comprimido dizendo que era para que eu não enjoasse na estrada.
- Quanto tempo levará para chegarmos lá? – perguntei.
- Algumas horas, se o tempo ajudar. – mamãe respondeu.
De uma maneira constrangedora, agíamos como se ele não estivesse ali. Como todas as manhãs nos últimos meses. Eu não queria olhar em sua direção. Temia que estivesse sofrendo e isso me deixasse dividida, ou pior, que não estivesse sentindo nada.
- Mãe?
- Oi querida?
- Como são o vovô e a vovó? Eles vão gostar de mim?
- Eles vão adorar você, querida! Só um louco não gostaria. Na verdade, mesmo sem te conhecer eles já te amam, porque você é parte deles. Entende?
- Mais ou menos.
Mamãe riu da minha sinceridade.
- Fique tranquila. Acabou com seu leite?
- Acabei.
- Vá escovar os dentes. O ônibus sai em uma hora.
Eu estava curiosa para conhecer meus avós, ansiosa por fazer minha primeira viagem, triste por minha mãe, com raiva de meu pai e me sentindo errada por ter raiva dele. Tudo isso junto me fazia sentir uma coisa estranha em meu peito, como se alguma coisa fosse explodir. Pensei que fosse passar mal, depois percebi que era só vontade de chorar. Se eu tivesse mais tempo choraria, mas estava louca de vontade de sair dali.
- Lílian? – ouvi a voz de minha mãe me chamando – Vamos menina!
As malas já estavam no carro. Não parei em nenhum momento para olhar o que ficava para trás. O ônibus sairia da praça principal em meia hora. Fomos em silêncio. Quando descemos o meu pai me puxou e disse:
- Lílian, você é a pessoa mais importante do mundo para mim. Não se esqueça disso.
- Então por que está me deixando ir?
- É por pouco tempo. A gente vai se ver logo.
- Promete?
- Prometo filha.
Fiquei com pena do meu pai. Quem cuidaria dele? Embarcamos no ônibus e fiquei olhando pela janela. Acho que o remédio que tomei para enjoo me deu sono porque dormi logo. Quando acordei estávamos entrando na cidade de Poço das Almas, a cidade de minha mãe, onde a história de amor mais linda de Azagaia começou.





  



III – Trevo da Sorte.

Quando o ônibus parou no pequeno terminal rodoviário na área central da cidade pude distinguir entre as pessoas que aguardavam o desembarque um homem alto, magro, com uns óculos quadrados e bem maiores que os usuais. A seu lado, uma senhorinha rechonchuda e de olhinhos espertos movia nervosamente as mãos cheias de anéis. Assim que os vi soube que se tratavam dos meus avós. O rosto do homem era anguloso como o de minha mãe e tinham a mesma cor de olhos. Ele também estava parado com as mãos cruzadas sobre o peito da mesma forma como mamãe fazia quando se encostava ao batente da porta da cozinha, bebendo seu café e olhando o horizonte como se esperasse respostas.
- Olha os seus avós ali! Dona Maurícia e Seu Silvestre não mudaram quase nada. – minha mãe falou apontando para o casal.
- Eu sei quem eles são. – respondi – E ela olhou para mim um pouco surpresa.
Descemos do ônibus e minha avó correu em nossa direção, enquanto vovô caminhava lentamente. Pensei que ele fosse nos tratar com hostilidade, mas estava enganada. Ao chegar mais perto de mim, ele se abaixou e me ergueu no colo como se eu fosse uma pena dizendo:
- Finalmente estou conhecendo a menina mais linda do mundo! – então se dirigiu a minha mãe – Como foi a viagem?
- Bem, obrigada.
Como ela ficou nitidamente atordoada e seus olhos se encheram de água minha avó interrompeu:
- Ora, ora, o que temos aqui? Deixe-me ver... O correio me trouxe uma encomenda bem grande... Hum, e ela tem dentes! Ó meu Deus, é uma garotinha! – E rimos a valer, como se nos conhecêssemos há anos.
O caminho para casa foi bem comprido. Meus avós moravam em uma fazenda um pouco afastada do centro comercial de Poço das Almas. A casa era enorme, branca e de janelas vermelhas. Eu nunca havia visto janelas dessa cor. No caminho para a porta principal havia uma alameda de carvalhos tão extensa que não se podia ver a entrada da propriedade até que estivesse na metade dela. Fiquei fascinada com tantas novidades, por todo lado podia-se ver árvores e em frente à casa havia um pequenino lago artificial. Minha mãe me apontava algumas coisas e dizia o que ainda permanecia desde os seus tempos de menina, mas a maioria delas era novidade para nós duas.
- Vocês fizeram mudanças maravilhosas aqui! – ela disse.
- Temos um administrador muito competente. Quando dissemos a ele que você já trabalhou como professora aqui, ficou muito interessado em reativar a escolinha. O que acha?
- Acho ótimo! Seria muito bom me ocupar de algo que pudesse me distrair dos meus atuais...
- Bem, foi o que pensei. Acho que eu não poderia discordar de você Marina. Não agora.
O carro parou bem em frente à entrada da casa e logo apareceram rapazes para carregar as malas. Uma senhora muito bonita e elegante, com os cabelos escuros presos num coque e grandes olhos azuis, se colocou ao lado de minha avó como se esperasse alguma ordem.
- Tudo bem por aqui, Berenice? – foi vovó quem perguntou.
- Tudo na mais perfeita ordem, Dona Maurícia.
- Esta aqui é Marina, minha filha. E essa boneca é Lílian, minha neta.
- Sejam bem-vindas! É muito bom que estejam aqui – Berenice falou com um largo sorriso no rosto – Espero que a viagem tenha sido agradável.
- Para mim foi ótima! – respondi – Dormi o tempo todo!
- Foi muito agradável, Berenice. Obrigada por perguntar.
- Vou levá-las aos seus quartos. Devem estar ansiosas por um banho. O jantar será servido em uma hora.
- O que tem para comer? – perguntei.
- Lílian! – mamãe me repreendeu.  – Não dê muito espaço a essa garotinha ou nunca mais terá sossego na vida Berenice.
- Imagina! Teremos um ensopado de frango com batatas e salada de feijão.
- Oh meu Deus! Parece que nenhuma criança jamais comeu aqui!
- Menina Lílian – falou Berenice – Terei um imenso prazer em ouvir suas sugestões para o almoço de amanhã. Quer que eu mande fritar umas batatas para hoje?
- Não! – minha mãe interrompeu – Ela comerá o que for servido.
- Ai, ser criança não é nada fácil!
- Você diz isso porque não tem uma filha como a minha!
- Mamãe!
E caímos, as três, na gargalhada.

Depois do jantar demos um passeio a pé pela fazenda, e enquanto caminhávamos pelos belíssimos carvalhos que vi na chegada, dois pequenos vultos nos seguiam de longe. Tentei me aproximar, mas cada vez que eu chegava mais perto eles desapareciam. Acabei me cansando de tanto correr e vovô me distraiu com a notícia que me deu.
- Lílian, mandei buscar um presente para você na cidade e ele chegará amanhã. Espero que goste, porque me deu um pouco de trabalho.
- O que é vovô?
- É uma surpresa. Amanhã pela manhã você descobrirá.
- Agora ela vai perguntar até descobrir – disse mamãe.
- Não vai não. Você precisa aprender a esperar Lílian. Tudo na vida tem seu tempo e antecipar as coisas só nos traz frustração e arrependimento. Vamos combinar uma coisa, cada vez que você perguntar sobre o presente atrasará em uma hora a entrega dele.
- Vovô, isso não é justo!
- É sim, bem razoável. Você que ou não o presente?
- Claro que quero!
- Então saberemos quanto o deseja pelo controle que terá de sua ansiedade.
- E eu que pensei que nada poderia ser pior que ensopado e salada de feijão!
Quando amanheceu a primeira coisa que fiz foi andar pela casa a procura de um sinal do presente. Não havia nada. Meu avô, que me observava, perguntou:
- Procurando alguma coisa menina?
- Não, nada. – respondi.
- Então vá se arrumar para o café. Eu e sua mãe vamos cavalgar e gostaríamos que você nos acompanhasse. Você quer?
- Sim. Só que eu nunca...
- Não se preocupe, você vai no meu colo.
Tomei o café correndo e me arrumei para o passeio. Estava agitada com a possibilidade de fazer uma coisa nova. Mas o que impressionou não foi estar sobre um cavalo de verdade. Nunca na minha vida poderia imaginar que minha mãe fosse tão linda. Parecia uma amazona, com os cabelos soltos até a cintura balançando ao vento. Em Cabeceira eu não sabia que mamãe poderia rir tão despreocupadamente, parece que a vida na fazenda era tudo o que ela precisava. Assim como eu, ela precisava do carinho dos pais. Só meu avô estava mais feliz que ela. A impressão que tive era a de que ele realizava um desejo antigo. Pena que a felicidade dele me deixasse longe de meu pai. Como ele estaria agora? Como ele consegue ficar longe de uma mulher tão linda como a minha mãe?
Ao voltarmos para casa minha avó veio nos receber à porta com uma cesta nas mãos. Olhei para vovô e ele fez sinal que sim com a cabeça: era o meu presente! Quando vovó colocou a cesta no chão percebi que se tratava de um cachorro. Uma bolinha de pelo preta com dois olhinhos redondos.
- Oh meu Deus! É um cachorrinho! Um cachorro mãe! Eu sempre quis ter um cachorro!
- Que bom que gostou – disse vovô – Fico feliz em saber.
- Obrigada vovô! Estou muito feliz, muito mesmo. Ele já tem nome?
- Não. Você vai ter que arranjar um.
- Já tenho um. Sempre quis ter um cachorro chamado Trevo. De que marca ele é?
- Não é marca filha, é raça. - vovô respondeu sorrindo – É um labrador. Tem poucos dias, por isso você precisa tomar muito cuidado. Vamos arranjar uma coisa que sirva de cama. Por enquanto ele terá de ficar em seu quarto, até ter tamanho suficiente para dormir lá fora.
Aquele cachorro preencheu meus primeiros dias na fazenda. Foi muito inteligente da parte do meu avô me dar algo com o que me ocupar, algo pelo qual eu seria responsável. Trevo foi meu cachorro da sorte.
Enquanto Trevo me distraía, a reforma da nova escolinha para os empregados da fazenda ocupava o tempo ocioso de minha mãe. Ela planejava ensiná-los a ler, escrever e fazer as quatro operações básicas da matemática, a exemplo do que fez comigo. A vida na fazenda, com meus avós, minha mãe e Trevo, foi tão intensa e atraente que não senti a falta de Cabeceira da maneira que pensei que sentiria. Sentia falta de meu pai, mas também estava zangada por ele ainda não ter vindo nos buscar, e agora eu quase nem queria mais isso.
No terceiro dia após a chegada de Trevo, resolvi dar uma voltinha com ele dentro da cesta para apresentá-lo a fazenda onde iria morar. De longe vi duas crianças brincando perto da vila dos empregados e resolvi saber do que se tratava. Descobri que eram filhos de Orestes, o motorista de vovô, e que se chamavam Sara e Felipe. Depois fiquei sabendo que eles eram os vultos que vi entre os carvalhos na noite do passeio. Logo nos tornamos amigos e eles me ajudaram com Trevo e conquistaram meu coração. Foi bem mais fácil me adaptar com a companhia deles. Tínhamos o costume de nos reunir todas as noites debaixo dos jacarandás que ficavam nos fundos da propriedade, bem próximos à entrada da Floresta Descomunal. Felipe nos contava histórias terríveis de pessoas que desapareceram depois que desafiaram a floresta, mas dizia que as crianças eram poupadas. De acordo com ele, Azagaia era um país impossível de ser deixado. Muito tempo depois descobri que o problema não é deixar Azagaia, mas sim encontrá-lo novamente.
- Lílian, você teria coragem de ir à Floresta Descomunal comigo qualquer dia? – perguntou Felipe.
- Que ideia é essa, Felipe? – Sara perguntou assustada.
- É claro que eu teria – respondi – Posso jurar que não passa de uma floresta como outra qualquer. Pode marcar o dia e a hora. A não ser que seja só conversa sua...
- Amanhã, depois do almoço.
- Fechado.
- Fechado. E quem vai entrar primeiro?
- O último a chegar à sede da fazenda contando de agora!
Disparamos a correr na direção da fazenda, o vento jogando meus cabelos nos olhos, Trevo para trás com Sara. Eu estava disposta a não permitir que Felipe me ganhasse porque podia apostar que ele não teria coragem de ser o primeiro na floresta. Mas uma coisa que vi me fez estancar de repente. Uma coisa não, uma pessoa. Lá estava ele, sentado nas escadinhas de pedra que davam acesso a entrada principal.
- Papai?!



IV – Quem é Daniel Castilho?

Sempre tenho o mesmo sonho. O do mar envidraçado que me aprisiona na imensidão de água e tenta me matar. Esse sonho só me visita em tempos de estresse, quando tenho que tomar uma decisão que afetará minha vida, ou quando alguém já fez isso por mim. Ultimamente esses dias tem se tornado longos demais. Tenho dezesseis anos e uma história para contar. Aqueles dias na fazenda foram a base para a vida que eu teria, mas as férias com meu pai foram o início da vida que quero ter...


Quando vi meu pai parado em frente à casa de meus avós meu coração tomou a velocidade do vento. No mesmo instante dois sentimentos conflitantes tomaram conta de mim e adormeceram meus braços até as pontas dos dedos: a felicidade de rever meu pai e imaginar que cumpriria sua promessa de nos levar de volta e a dor de outro rompimento, com a vida que eu já amava e que fazia mais sentido que tudo até ali. Fui em direção ao meu pai, mas sem correr. Ele notou que não seria fácil como antes, quando eu era sua garotinha e confiava em suas promessas. Enquanto me aproximava, os pensamentos se misturavam em minha mente como uma receita dos bolos de vovó, e eu não fazia ideia do que sairia de minha boca quando fosse hora de falar. Tinha vontade de tantas coisas diferentes, de gritar, de chorar, de bater. Estava preparada para mostrar a ele que não é com um beijo na testa que se compra uma menina com sentimentos sinceros como os meus, mas quando me aproximei o suficiente para ver os detalhes percebi que ele estava muito machucado, com cortes no rosto e manchas roxas nos braços e queixo. Tudo o que eu havia pensado em fazer ficou esquecido e voltei a correr, pulei em seu colo e comecei a chorar.
- Ai filha, devagar, seu pai está um pouco quebrado.
- O que aconteceu pai? O que foi que te machucou desse jeito?
- Você sabe, nunca fui muito bom em fazer comida e sem sua mãe...
- Ah não! Não me venha com essa. Alguma coisa séria aconteceu com você e vai me dizer o que foi.
- Olha só minha menina com o jeitinho da mãe quando é contrariada! Foi um acidente de trabalho, nada demais.
- Meu Deus! Você deve trabalhar para um lobisomem ou algo parecido!
- E se for?
- Papai! Eu não sou mais uma criança não! Daqui a duas semanas faço dez!
- Estou vendo. Você cresceu bastante.
- Já viu a mamãe?
- Não. Sua avó me disse que ela está na escolinha com um tal de Olímpio medindo o espaço para colocar mais bancos.
- Ah sim, o Olímpio é o namorado dela.
- O que?
- O namorado dela. Vocês não estão mais casados, que mal há?!
- Quem te falou que não somos mais casados? Onde é essa escolinha? Vou buscar sua mãe e ela terá que me explicar direitinho...
- Não precisa me buscar em lugar nenhum – minha mãe apareceu do nada e deu um susto na gente – Como você está Camilo?
- Bem. Que história é essa de Olímpio ser seu namorado?
Mamãe olhou pra mim com uma cara de quem estava pensando em quantas chineladas me daria e eu percebi que era hora de procurar outro lugar para ficar.
- Vou até a cozinha e já volto.
- Não fuja agora não mocinha. Temos que conversar.
- Deixe-a ir Marina. Preciso mesmo falar com você.
Aproveitei a distração dos dois e corri para os braços de vovó. Entrei na cozinha e contei o que fiz pensando que ela me daria uma bronca, mas ela riu e respondeu:
- Fique tranquila, um pouco de ciúmes não faz mal a ninguém.
- Vovó?
- O que foi minha querida?
- Nós vamos voltar para Cabeceira?
- Você tem que perguntar isso aos seus pais. É o que você quer?
- Não sei.
- Entendo. Vamos? Ajude sua velha avó a servir um lanche. Depois a gente se preocupa com as coisas mais sérias, agora vamos comer uns biscoitinhos de polvilho. Venha e traga os guardanapos.
Sentamos para o lanche da tarde e conversamos como uma família comum. Meu avô estava viajando o que deve ter facilitado um pouco as coisas. Apresentei Trevo a papai e ele ficou feliz em saber que finalmente eu tinha um cachorro. Quando comi o último pedaço de bolo que cabia em minha barriga, meu pai perguntou:
- Filha, você gostaria de passar um tempinho comigo em Cabeceira?
- Nós não vamos voltar? Quer dizer... Não voltaremos definitivamente?
- Não, ainda não. Você e sua mãe ainda irão morar com seus avós por um tempo. Agora só o que posso fazer é levá-la para umas férias. Você gostaria?
- E a mamãe?
- Eu não posso Lílian. Tenho um compromisso com as crianças daqui. As aulas ainda não acabaram e elas já estão atrasadas para as provas escolares. Você vai com seu pai e volta em três meses.
- Posso levar Trevo? – perguntei.
- Claro querida! – mamãe falou – Você não terá que deixar seu cachorro. Ele vai para onde você for.
- Tudo bem então. Quando partimos?
- Amanhã bem cedo. – disse papai – Seus amigos estão te esperando ansiosos.
Só quando papai falou em meus amigos foi que me lembrei da saudade louca que sentia de Flora, Patrícia, Michele e os meninos. Até a Catarina eu queria ver. Quase não dormi aquela noite. No dia seguinte saímos enquanto ainda estava escuro. Deixei um bilhete para vovô e outro para Sara e Felipe. Coloquei Trevo numa caixa de papelão no chão da caminhonete de papai e minha mochila no banco de trás. Mamãe me deu o remédio para enjoo e um travesseirinho para me recostar. A vida no campo é assustadoramente silenciosa de madrugada. Tive a sensação de que estava abandonando minha mãe e chorei. Papai me olhou com uma expressão de que sabia o que eu sentia e perguntei:
- Será sempre assim? Vocês nunca mais ficarão juntos?
- Durma querida, a viagem é um pouco longa.
Acordei quando meu pai estacionava o carro em frente a nossa casa. Trevo começou a latir e seria impossível qualquer pessoa continuar dormindo com o alvoroço dele. Desci do carro e papai continuou porque precisava comprar nosso almoço. Foi até melhor entrar sozinha em casa. Uma sensação estranha de que não pertencia mais aquele lugar me invadiu. Trevo ia de um cômodo ao outro cheirando tudo e latindo feito um louco. Marcou o território perto da geladeira e da porta da sala, e continuaria pela casa toda se eu não tivesse dado uma bronca daquelas nele. Fomos para o quarto e eu pude me acostumar ao local até a volta de papai. Aquela casa sem mamãe não era nada, não era um lar, só um monte de paredes e móveis. A porta da sala abriu e papai entrou acompanhado.
- Olha quem encontrei pelo caminho Lílian!
- Flora!
- Lili! Quanto tempo!
Abracei minha amiga com força e quase não tive vontade soltá-la. Papai preparou a comida e Flora almoçou com a gente.
- E Michelle? Sérgio? Leonardo? Como estão todos? E as novidades?
- Todos vão bem. Que bom que vai passar seu aniversário aqui! Pode deixar a festa por minha conta. Posso fazer na minha casa Seu Camilo?
- Só se eu for convidado.
- Claro que sim!
- Então está autorizada a festa.
- Flora?! – perguntei – Tive a impressão de que a casa velha de Dona Augusta estava aberta quando passamos. Algum fantasma resolveu mostrar as caras?
- Não! Nada disso. Tem uma família morando lá agora. A mãe parece uma princesa de tão linda. Não sei o nome dela. E tem dois meninos. O mais velho é amigo de Sérgio e Paulo, o nome dele é Daniel; o mais novo é Davi e é muito engraçado. Você vai gostar deles, são muito legais.
Papai apareceu na ponta da mesa com um pote enorme de sorvete de graviola.
- Vocês querem meninas?
- Queremos! – respondemos juntas.
- Flora, porque não dorme aqui hoje?
- Posso? Adoraria.
- Papai?
- Quer que eu peça a sua mãe Flora?
- Se o senhor puder?
- Comportem-se então. Vou até a sua casa e volto em dois minutos.
Flora gostou muito de Trevo e ele dela. Pareciam amigos de muitos anos. Os cachorros conhecem as pessoas. Passamos a noite conversando sobre Poço das Almas, sobre Sara e Felipe, meus avós, a Floresta Descomunal...
- E então, ela é assustadora como dizem?
- Nada. Achei até uma floresta simpática. Mas não entrei nela ainda. Não sei lá dentro como é.
- Dizem que as coisas acontecem à noite.
- Pode ser. Um dia você vai me visitar e entraremos lá juntas.
No dia seguinte acordamos tarde e com muito sono ainda. Sempre me arrependo de dormir tarde pela manhã, mas na hora me parece uma excelente ideia. Tomamos café e fomos para a rua. Eu estava ansiosa por rever meus amigos e, como era oficialmente o primeiro dia das férias sabia que os encontraria na praça em frente à sorveteria e não me enganei. De longe os gêmeos me viram e gritaram:
- Lílian? Olha a Lílian ali gente!
Foi divertido rever a turma porque estavam crescidos e tinham histórias para contar de coisas que eu nem imaginava que aconteceriam enquanto estive fora. Michelle foi com o pai até a pedra que marca a divisa de Cabeceira com a Terra das Rotas Diagonais. É um lugar turístico entre os cabeceirenses. Leonardo ganhou uma tartaruga de estimação, os gêmeos ficaram doentes e Catarina ganhou uma irmãzinha que não era filha da mãe dela. Mas um assunto toda hora voltava a boca de todos como se um meteoro tivesse passado dando piscadelas para cada um deles: Daniel Castilho.
- Eu já sei. Está morando na casa velha, a assombrada. Vai ver é um fantasma!
- E você? Quem é? – uma voz de menino falou às minhas costas. Quando me virei vi um garoto alto, de cabelos e olhos castanhos e os dentes mais brancos que já vi na vida. Vestia uma blusa xadrez meio antiga para um moleque e um short jeans bem surrado. Percebi de quem se tratava porque era o único que não conhecia e pelo silêncio incômodo que se instalou entre meus amigos. Sérgio foi quem nos apresentou.
- Lílian, esse é Daniel Castilho. Daniel, essa é Lílian, uma amiga nossa.
- Grande coisa – ele disse. E ao invés de ir embora, ficou me encarando como se esperasse minha reação.
- Ah sei, o fantasma que vocês me falaram. – E peguei o braço de Flora para sair correndo dali. Quando estávamos a uma distância segura, Flora parou e me colocou contra a parede.
- Lílian! – disse ela. – Que foi aquilo? Você não foi nada educada...
- Eu?! Ele me chamou de insignificante! Quem é esse Daniel Castilho? Algum rei? Quem ele pensa que é?
- Mas Lílian, você que chamou o garoto de fantasma primeiro! E ele não disse que você é insignificante.
- Não chamei não. Eu disse para vocês que ele deveria ser um fantasma. Além do mais, foi muita grosseria dele ouvir.
Passamos a tarde separadas dos outros porque eu não queria mais ver o Daniel nem que pintassem ele de sorvete de chocolate. Fomos para minha casa e brincamos no quintal com Trevo. Depois Flora foi embora e eu fiquei pensando em Daniel com uma raiva que me fez morder o canto da boca até sangrar. Papai veio ao meu quarto contar histórias, mas eu não conseguia ouvir uma palavra. Só pensava no menino de dentes brancos e cheiro de roupa lavada que me tratou como se eu não fosse nada. O que foi que fiz de tão grave? Estava fazendo uma brincadeira. Será que ele não tem senso de humor?
Os dias se passaram bem rápido e logo chegou o dia de minha festa. Acordei com uma caixa enorme em cima da cama. Achei que fosse o presente de papai, mas tinha um carimbo de Poço das Almas. Abri correndo e fiquei muito feliz. Vovó mandou um vestido rosa, vovô uma boneca e mamãe um diário novo. Sara e Felipe mandaram bilhetinhos e uma flor de jacarandá. Até Berenice mandou um presente: compotas de damasco. Tomei o café e papai me chamou para dar uma olhadinha no quintal. Lá estava o meu presente: uma bicicleta novinha em folha! Acho que meu aniversário de dez anos foi um dos dias mais felizes de minha vida. Passei o dia aproveitando meus presentes e esperando a hora da festa.
- Pai? Vamos! Não quero chegar atrasada.
- Você é muito apressada Lílian. Ainda são seis horas e sua festa só começou há meia hora. Que horas Flora disse para chegar?
- Não importa. Quero aproveitar tudo e ver quem está chegando. Não consigo ficar aqui esperando a hora certa. Vamos!
- Está bem. Pode ir andando que eu já chego. Tenho que terminar minha barba. Vou acabar fazendo mais um corte no rosto com você me chamando toda hora.
- Estou indo!
Atravessei a rua correndo e já ia virar a esquina quando ouvi alguém me chamar. Não acreditei no que vi. Daniel todo arrumado com uma flor na mão vindo em minha direção.
- Feliz aniversário! – disse estendendo a flor para mim – A Flora me convidou. Paz?
- Por mim... – falei, fingindo não me importar.
- Posso te acompanhar?
- Pode.
Fomos até a porta da casa de Flora em silêncio. Eu estava tão nervosa que minha boca estava seca. Ele parecia tranquilo. Quando chegamos e Catarina nos viu entrar fiquei tão desnorteada que falei sem pensar:
- Você até que é agradável para um fantasma!
- E você bem pequena para uma menina de dez anos.
Quando Flora veio me dar os parabéns eu estava rindo do que acabava de acontecer. Minha amiga foi a primeira que soube.
- Gosto dele Flora. E acho que ele gosta de mim!
       











V – Descoberta.

Depois de minha festa de aniversário, Daniel e eu passamos a ser mais cordiais um com o outro.  Nos cumprimentávamos quando estávamos no mesmo grupo, mas isso era difícil de acontecer porque ele quase não saía de casa. Meu interesse por ele só aumentava. Acho que toda garota gosta de um amor complicado e não correspondido. Quanto mais difícil era vê-lo, mais meu coração ansiava por esse momento. E quando ele aparecia era como se o próprio sol saísse de trás das nuvens e viesse especialmente para mim, para alegrar meu dia e aquecer meu coração. O primeiro amor é uma coisa muito engraçada. A gente ainda não entende que o sofrimento da espera é parte importante da conquista, e fica naquela agonia de realizar o que tem tempo certo para acontecer. Em minha busca incansável por respostas, por qualquer coisa que me desse esperanças, perguntei um dia a Sérgio o motivo da ausência do amigo. Acreditava que Sérgio saberia por que era o único que frequentava a casa dos Castilho.
- Daniel estuda a maior parte do tempo. – ele respondeu – Vive rodeado de livros da história de Azagaia e de outros assuntos que não me interessam. Também tem um professor de guerra, que ensina desde diferentes lutas até as histórias das guerras de Azagaia e da Ilha do Véu. É um cara estranho esse professor, mas muito gente boa.
- E por que motivo o Daniel precisa saber sobre essas coisas? Nunca vi ninguém estudar nada disso!
- Olha Lílian, não sei o motivo de tantos estudos, mas sei que ele leva isso bem a sério. Se você não quiser arrumar mais confusão é melhor mostrar respeito pelo que ele faz. O Daniel é mais velho que você uns três anos e é um garoto sério. Talvez ele seja assim porque não tem um pai por perto. De qualquer forma, para conquistar sua amizade é preciso mostrar interesse e levar as coisas menos na brincadeira.
- E quem disse que me interessa? – respondi automaticamente.
- Bem, eu avisei.
Ouvi o conselho de Sérgio apesar de ter tentado parecer o contrário. Depois daquele dia pedi a papai para me contar umas histórias de Azagaia.
- Filha, eu não faço outra coisa desde que você nasceu!
- Não pai. Não quero mais ouvir historinhas infantis. Agora quero saber das coisas que aconteceram de verdade, das guerras, do que está acontecendo.
- E porque motivo você quer se inteirar de coisas sérias? Posso saber?
- Porque sou uma menina curiosa. Conta pai?
- Tá certo. Hoje à noite a gente vai bater um papo diferente.
Não é preciso dizer que passei o resto do dia roendo as unhas para que a noite chegasse. Uma coisa curiosa, porém, aconteceu antes do início de minhas aulas sobre o mundo dos adultos. Michelle me ouviu contando à Flora sobre o que meu pai havia prometido e falou:
- Que estranho, Lílian! Você não sabe nada sobre sua origem ainda?
- Não entendi Michelle. O que eu deveria saber?
- Deveria saber que só há uma família Amaral aqui em Cabeceira, e que se seu sobrenome é igual ao deles você pertence à linhagem dos governadores daqui. Meu pai me conta muitas coisas porque é um costume de Cabeceira. Lembra que te falei que fomos visitar o limite da cidade com a Terra das Rotas Diagonais?
- Sim, lembro. Que é que tem?
- Tem que você já devia conhecê-lo. Lílian, Azagaia sempre foi uma terra de guerras e mortes. A última grande guerra aconteceu um pouco antes da gente nascer. Depois disso o rei Amadeo subiu ao poder na Ilha do Véu e entrou em acordo de paz com os governantes das cinco cidades. Agora, o trono da Ilha do Véu está sendo ameaçado e tudo pode mudar. Parece que tentaram matar o rei e seus filhos. A família real teve que deixar a ilha e o rei está tentando descobrir quem quer tomar o poder. Desconfia de nós, claro, mas meu pai me garantiu que não temos nada com isso.
- Meu pai já me contou essas coisas, mas eu pensava que eram historinhas para dormir.
- Essa é boa! Em que mundo você vive Lílian? Nas histórias para dormir os maus morrem ou se dão mal. Nunca percebeu que as nossas nem sempre terminam bem?! Simplesmente porque não terminaram ainda.
- Interessante. Eu achava que crianças não deviam saber de coisas assim. Isso não é assunto para adultos?
- Deveria ser. Mas a paz em Azagaia só vai ser conquistada através de uma jovem, que unirá as cinco cidades em um país finalmente. Nossos pais nos contam as histórias desde cedo porque não sabem quem é essa jovem e precisam nos treinar.
- Como uma menina poderia conseguir uma coisa que ninguém pôde até hoje? Quem é essa garota?
- Não sei te responder a nenhuma das perguntas. Só sei que gostaria muito de ser essa garota.
Quando cheguei a minha casa meu pai estava fazendo o jantar. Olhei para ele com uma interrogação enorme no rosto e ele logo percebeu que eu queria falar alguma coisa.
- O que está criando essas ruguinhas na testa do meu amor?
- Pai? Hoje a Michelle me disse que pertenço à família dos Amaral. Isso é verdade?
O rosto de meu pai ganhou uma expressão de preocupação. Percebi que ele recomeçou a falar um pouco contrariado.
- É filha. É verdade sim.
- E por que nunca vamos a casa deles e eles não falam com a gente na rua? Não estou entendendo nada. Pensei que o senhor não fosse daqui.
- Vamos fazer o seguinte: jantamos e depois conversamos sobre tudo o que você quiser saber. Certo?
- Tá bem. O que tem para o jantar?
- Fiz pizza. Se sua mãe estivesse aqui me mataria.
- Ainda bem que não está. Amo pizza!
Depois do jantar sentamos no sofá da sala e papai começou a falar sem livros:
- Lílian, preciso que preste muita atenção. Lembra quando te contei a história de amor mais linda de Azagaia na noite anterior a sua partida?
- Claro que sim!
- Bem, está na hora de você ouvir a história completa. Quando me apaixonei por sua mãe não sabia que ela estava prometida ao meu irmão.  Trouxe Marina para Cabeceira do Rio Seco pensando em pedir ao meu pai para conversar com o pai dela e consertar as coisas para todo mundo. Só que as coisas não saíram como planejei e fui expulso da família. Seu avô e seus tios não falam comigo desde então. O pai de Marina também passou muitos anos sem falar com a gente, mas quando você nasceu o coração dele balançou e pode nos perdoar. Ele e sua avó vieram a Cabeceira para te conhecer e tivemos uma longa conversa. Seu avô Silvestre não teve filhos e você é sua única neta. Prometi a ele como condição para o perdão que você seria mandada para lá assim que tivesse idade para entender que deverá substituí-lo no governo da cidade quando ele morrer.
- Então você e mamãe não estão separados?
- Não exatamente.
- E suas noites fora de casa? Pensei que estivesse com outra pessoa.
- Não. Nunca vai haver ninguém pra mim além de sua mãe.
- Ai pai, o Olímpio não é namorado dela não. Falei aquilo pra te deixar com ciúmes e trazer a gente de volta.
- Eu sei. Sua mãe me explicou tudo. Mas me deixe continuar. Você quer ou não saber de tudo?
- Quero! Claro que sim!
- Bem, ficou combinado que teríamos você só pra gente até que fosse hora de te mandar para Poço das Almas. Consegui adiar em dois anos sua partida, mas depois não tive mais argumentos.
- E por que não me falou?
- Pensei que isso poderia impedir que você aceitasse bem seus avós. E eles não merecem que você os despreze. São boas pessoas Lílian, amam você tanto quanto eu ou sua mãe.
- Pai?
- Fala minha pérola!
- É verdade que vai haver uma guerra em Azagaia?
- Isso é outra história. Ainda não podemos afirmar que haverá guerra alguma. Estamos lutando para que vocês não herdem um país cheio de problemas como foi o nosso caso. No que depender de mim sua vida será muito mais fácil que a minha. É obrigação dos pais proteger seus filhos, uma obrigação e um prazer. O rei Amadeo está furioso porque tentaram matar seus herdeiros. Eu também ficaria se estivesse no lugar dele. Mas acredito que o inimigo esteja dentro de seu próprio castelo. A Ilha do Véu tem uma extensão territorial semelhante à Azagaia e o acesso a ela é difícil porque é cercada por cordilheiras. Não acredito que alguém daqui tenha se aventurado até lá só para provocar a fúria de um rei que não nos causa dano.
- E quem é essa menina que terá que unificar Azagaia?
- Você está bem informada mesmo, hein Lílian Amaral? E falando difícil!
- Foi a Michelle que falou...
- Não sabemos ainda quem é essa garota. Mas tenho uma forte suspeita.
- E quem seria?
- Isso eu não vou te dizer. Aliás, nada do que conversamos pode ser dito a ninguém.
- Mas meus amigos sabem sobre essas histórias...
- E não vão parar de falar nelas, não é?
- Não mesmo.
- Lílian, você me lembra muito o menino que eu era quando tinha a sua idade. Tenho muito orgulho de você filha.
- Eu também de você pai. Estava triste porque pensei que tivesse nos abandonado, mas agora entendo.
- Jamais abandonaria as duas pessoas mais importantes do mundo pra mim. Sem você e sua mãe minha vida não é nada. Quando chegar o momento de você voltar para Poço das Almas, quero que conte a seu avô a conversa que tivemos. Ele precisa falar algumas coisas também. E quero que cuide de sua mãe.
- Pode deixar pai. Eu continuarei vindo te ver?
- Sim. Todo verão eu irei te buscar.
- Vou esperar por isso o ano inteiro.
- Agora você quer ouvir a história de como Azagaia foi fundada?
- Quero sim!
- Então pegue uma almofada e venha para a varanda. Está fazendo uma noite incrível e não podemos perder isso.









VI – O Encontro.
Há muitos e muitos anos – papai começou a contar – nove homens entraram em Azagaia fugidos de uma guerra terrível num lugar distante daqui. Seus nomes eram: Capitão Feliciano do Amaral, Genésio Gutierrez, Doutor Amaranto, Tenente Honório Figueiras, Edvaldo Santana Patrício Laurentino, Coronel Rodolfo Justino, Aristides Gentil e Teodomiro Vargas. Algumas mulheres estavam acompanhando o grupo, mas poucas resistiram à travessia da terra das Rotas Diagonais.
Esses homens descobriram que se segurassem um punhado da terra de seu país natal em uma das mãos durante o trajeto da Terra das Rotas Diagonais, sairiam dela ilesos, e resolveram tentar. Qualquer coisa seria melhor que continuar num lugar onde a morte os aguardava. Assim, entraram no território que hoje compreende Azagaia apenas com as armas que tinham e a força para recomeçar. Infelizmente, o destino de um homem não pertence somente a ele aqui, e a guerra de que tanto fugiam os seguiu até Azagaia. O território era motivo de uma disputa sangrenta de séculos e o Capitão Amaral e seus amigos foram feitos prisioneiros de um homem chamado Ferus. Ferus era líder dos Planicianos, e lutava contra os Continentais, liderados por Goshat, aparentemente por território e poder. Os Forasteiros, como ficaram conhecidos Amaral e os outros, passaram dois anos servindo a Ferus e ganharam sua confiança. Aprenderam o idioma local e tomaram mulheres para si. Quando perceberam que o momento era propício, sugeriram ao líder dos Planicianos que ele aceitasse a ajuda dos forasteiros na guerra em troca de território e proteção contra os de fora. A parceria entre os dois grupos foi acertada e os Forasteiros utilizaram suas armas e técnicas de guerra para expulsar os Continentais e garantir a vitória a Ferus. Agradecido aos estranhos, Ferus cedeu Azagaia e se retirou com seu povo para a Floresta Descomunal. Os Forasteiros dividiram o território de acordo com a participação de cada um nas batalhas e começaram a formar as cidades e um sistema de governo independente baseado na ajuda mútua entre os líderes e na preservação do poder entre os membros das famílias. Cabeceira do Rio Seco ficou com o Capitão Feliciano Amaral, Poço das Almas com os Gutierrez, Tenente Eusébio Figueiras com Açucena, que depois teve seu nome mudado para Arremedo numa história que te contarei outro dia; Doutor Amaranto fundou Redenção e o Coronel Rodolfo Justino, a cidade de Tornados. Azagaia começou assim.”   

Ouvi aquilo tudo com curiosidade e espanto. Na verdade, ainda pareciam histórias infantis para mim. Não conseguia imaginar que pudessem acontecer de verdade. Meus pensamentos estavam voltados para outros interesses agora, meu coração esperava por outra resposta, um pouco mais difícil de obter: se Daniel, um dia, gostaria de mim como eu queria que fosse.
No dia seguinte marcamos um piquenique. Fomos todos, inclusive Daniel e Davi. O irmão mais novo de Daniel Castilho era o oposto dele. Davi era um menino solar e alegre, sua presença irradiava energia e espontaneidade. Os cabelos eram castanhos como os do irmão, mas os olhos tinham um tom de verde tão claro que impressionavam quando ele os fixava nos nossos por mais de dois segundos. Apesar de ser mais novo não era muito menor em estatura, exatamente como Daniel, tinha uma postura imponente, como se soubesse algo a seu respeito que o fazia diferente das pessoas comuns. Definitivamente os irmãos Castilho eram muito bonitos e confiantes.
O piquenique estava ótimo. Foi no Campo Permanente, onde costumavam ser os encontros dos namorados nos horários impróprios para nós, crianças. Como não sabíamos cozinhar direito, papai pediu à Dona Isaurinha para preparar uns biscoitinhos de Araruta e duas garrafas de suco de carambola. O bolo de abacaxi da mãe de Flora é que estava delicioso, mas nada se comparava à torta de maçã de Dona Celina Castilho. A mãe dos meninos parecia bem nova, ainda mais nova que minha mãe. Daniel e Davi não tinham sua cor de olhos, que eram bem azuis e cintilantes, mas fora isso não havia dúvidas de que eram seus filhos. Ela também era alta e magra, e como se fosse uma herança genética, possuía o mesmo porte e certa arrogância no olhar. Enquanto eu saboreava meu pedaço de torta e admirava os meninos jogando bola, escutei Catarina falar:
-... É o que estou dizendo, minha mãe soube que Dona Celina é excelente pianista e a contratou para me dar aulas. Toda tarde vou à casa dos Castilho. Claro que minha intenção não é aprender um troço chato como tocar piano, mas quero que Dona Celina veja que linda nora eu serei um dia e promova meu casamento com o filho dela.
- Catarina! Você ainda é uma criança, como pode pensar em casamento?! – ouvi Patrícia respondendo.
- Minha avó casou aos treze, e para mim só faltam dois anos.
- Sua avó, doida! Hoje em dia é diferente. Credo! E com qual dos dois você acha que casará?
- Com o Daniel, óbvio!
- O que foi Lílian? Engasgou? – perguntou Michelle.
- É, acho que o suco entrou pelo nariz. – respondi – Catarina? Aconteceu alguma coisa entre você e o Daniel para ter tanta certeza de que vai casar com ele?
- Ainda não. Mas eu percebo o jeito que ele me olha quando estamos sozinhos na sala.
- E você gosta dele?
- Gostar Lílian? Eu tenho 11 anos! Não gosto de ninguém. Além do mais, minha mãe me disse que não podemos escolher um marido pelo que sentimos por ele, mas pelo que sabemos sobre ele. E a família Castilho é riquíssima até onde eu sei. São donos de terras no País Além. O pai está lá cuidando dos negócios, enquanto mantém os filhos aqui para estudar.
- Para estudar? – eu disse. Que estranho! Soube que no País Além os recursos são muito mais avançados que em Cabeceira...
- Lílian, você pergunta demais. Vai acabar solteira desse jeito! Ninguém gosta de gente que procura saber o motivo de tudo. Ouça meu conselho. Se quiser ser feliz fique burra!
Catarina levantou e foi para mais perto dos meninos, num lugar onde seria impossível não ser notada. Eu e as meninas ficamos olhando umas para as outras boquiabertas.
- Não sei o que mais me assustou – disse Michelle, quebrando o silêncio – Se o fato de ela querer se casar tão nova, ou o de acreditar que a burrice é boa casamenteira!
- É verdade! – falei – Essa é boa!
Rimos muito daquilo tudo, mas por dentro fiquei preocupada com a possibilidade de ter chegado atrasada ao coração de Daniel Castilho. Tentei descobrir se ele a olhava interessado, mas fiquei com medo de que percebessem minha preocupação e acabei me atrapalhando toda. Antes de irmos embora, porém, os meninos propuseram um pique esconde para encerrar a tarde e fomos todos para a clareira, onde teríamos bastante lugar para nos esconder. Durante a primeira rodada, o pique ficou com Paulo, e quando ele começou a contar senti uma mão me puxar em direção às pedras do despenhadeiro e obedeci ao movimento.
- Aqui não nos encontrarão tão cedo. – disse Daniel, depois que entramos num vão entre as pedras.
- Que susto você me deu!
- Não gostou do esconderijo que te arrumei?
- Não sei... quer dizer... acho que sim. É seguro?
- O mais seguro de todos.
- E porque logo eu? Pensei que fosse trazer a Catarina!
- Catarina? Por quê?
- Por nada.
- Trouxe você porque estava mais perto. Satisfeita?
- Pelo menos agora eu sei o motivo.
- Garota, você é muito criança! E ingrata!
- E você? O que é?
- Eu sou um bobo.
E dizendo isso Daniel saiu do esconderijo e foi direto para casa. Ninguém entendeu o motivo daquele mau humor súbito e a brincadeira acabou. Cada um pegou suas coisas e fomos para nossas casas também, tomar banho e descansar. Eu não dormi bem aquela noite, pensando no motivo daquela raiva toda que Daniel demonstrava ter de mim. Depois desse dia ele não saiu mais de casa e não nos vimos mais. Isso reforçou minha tese de que ele realmente estava interessado em Catarina.
Para tentar esquecer e minimizar minha ansiedade em relação ao Príncipe Castilho, como Flora e eu o chamávamos às escondidas por causa de seu porte e beleza, mergulhei nos livros de história de Azagaia e pesquisei tudo o que pude sobre a família que eu não conhecia: os Amaral. Na manhã anterior ao meu retorno à Poço das Almas, falei com meu pai à mesa do café:
- Pai?
- Lá vem bomba! – ele falou, sabiamente.
- Quero que me leve à casa dos Amaral.
- O quê?
- Isso mesmo que o senhor ouviu! Quero conhecer meus avós.
- Lílian querida, eu adoraria fazer o que está me pedindo, mas prometi ao meu pai que jamais poria os pés naquela casa sem que fosse chamado.
- E quem disse que eu não posso ir?
- Você não está pensando que vou deixar você entrar sozinha naquela casa. Está?
- E por que não? Eles matam criancinhas?
- Mais ou menos.
- Hã?
- Nada, filha. Só pensei alto. O que você quer lá?
- Quero conhecê-los pai! Você não acha que tenho esse direito? Você não acha que eles têm o direito de saber se querem ou não minha presença?
- E a senhorita não acha que se eles quisessem já teriam vindo aqui?
- Pai! Talvez eles não queiram dar o braço a torcer. Será possível que vocês precisem de uma garota de dez anos para dizer como as coisas funcionam nessa família?!
- Talvez esteja certa, mas não acho que seja hora. Quando você estiver pronta prometo que te levo lá.
Infelizmente, meu pai parece não conhecer direito a filha que tem. Tomei o café e recolhi a louça para que papai lavasse. Era engraçado ver isso, mas naquele dia eu tinha coisas mais importantes para resolver. Como costumava passar na casa de Flora todas as manhãs, meu pai não estranhou quando peguei minha bicicleta e saí. Só que ao invés de ir para a casa de minha melhor amiga, fui para o bairro dos Fundadores, no lado sul da cidade, onde as casas costumavam ter mais de dois andares e jardins enormes com árvores desenhadas em formatos assustadores. Parei em frente ao portão com a placa Família Amaral, nada poderia ser mais fácil que isso. Perto da grande varanda dividida com pilares romanos havia um senhor que depois descobri ser o jardineiro, “Seu” Joaquim Felix, e dois cachorros de pernas compridas e pintinhas pretas pelo corpo.
- Ei! – gritei o mais forte que pude – Senhor?!
O jardineiro veio em minha direção num ritmo de tartaruga ultrapassar e foi falando do meio do caminho:
- Fala menina! Que quer a senhorita?
- Gostaria de poder falar com alguém da casa. O senhor poderia fazer o favor de chamar?
- Sim, menina. E anuncio a quem?
- Lílian Amaral.
No mesmo instante os olhinhos do jardineiro brilharam e ele trocou o peso do corpo de uma perna para a outra.
- A senhorita é a filha do patrão Camilo?
- Sou sim. Conhece meu pai?
- Vi seu pai nascer menina. Se eu te falar uma coisa, menina Lílian guarda segredo?
- Claro!
- Joaquim tem saudades de patrão Camilo. Muita mesmo!
O jardineiro abriu o portão, mas pediu que eu esperasse do lado de fora da casa para o caso da resposta ser negativa. Enquanto aquele senhor de passos lentos subia as escadinhas da varanda e entrava na casa de meus avós, meu coração saltava aos trambolhões dando a impressão de que sairia do peito e se espatifaria ao chão. Olhei ao redor e percebi que a família que eu pensei que não tivesse era bem rica na verdade, o espaço da casa parecia o mesmo do meu quarteirão inteiro. Pelo canto esquerdo da varanda era possível ver um estábulo na parte de trás da casa, e muitos empregados passavam de um lado para o outro com seus afazeres.
- Menina? – uma voz interrompeu minha pesquisa visual e uma senhora se postou no alto da varanda. – Seu pai te mandou aqui?
- Não senhora. Vim porque quis.
- Você deve se parecer mais com ele na audácia que nos traços então. Como se chama?
- Lílian. E a senhora?
- Aureliana Amaral. Avise a seu pai que não nos comovemos com criancinhas nesta casa. Agora vá, que não tenho tempo para desperdiçar com bobagens.
Saí daquela casa com tanta raiva que nem me despedi de Seu Joaquim. Que mulher intragável! Como meu pai poderia ter saído de um lugar assim? Inacreditável!  O pior seria contar a ele. Não vou dizer nada - pensei - Vou esquecer que um dia pisei naquele lugar horrível! Voltei para casa e não saí mais aquele dia. Arrumei minhas malas e dei um banho em Trevo à tarde. Quando anoiteceu, Flora veio se despedir e jantou com a gente. Nem para ela contei sobre o encontro desastroso que tive com a megera de minha avó. Era uma coisa que eu gostaria de esquecer. Ouvir nossos pais nos protege de algumas dessas decepções na vida, mas tem coisas que temos que aprender sozinhas. A minha teimosia ainda me levaria a muitos lugares perigosos, minha avó não era nada perto do que eu ainda enfrentaria. Passei uma noite tranquila apesar do encontro desastroso do dia. Papai me acordou ainda de madrugada, entramos na caminhonete e partimos. Sem mamãe para me dar o remédio para enjoo fiquei acordada todo o caminho, mas não me pergunte como foi porque entendi o motivo do remédio. Estava tão enjoada que não me lembro de nada, só da força que fiz para não vomitar e que me deu uma enxaqueca terrível. Quando avistei as janelas vermelhas da casa da fazenda, Cabiceira ficou para trás e dei graças a Deus por estar em casa outra vez.
- Pai?
- Diz amor!
- Quando vamos nos ver novamente?
- No próximo verão Lílian. Agora eu preciso fazer uma viagem e só voltarei para buscar você para as férias do ano que vem.
- Tudo bem. Eu posso aguentar isso.
Enquanto a caminhonete velha do meu pai fazia a volta no laguinho em frente à casa, vi meus avós, mamãe e Berenice na varanda, e uma sensação de que estava em outro mundo me invadiu completamente.













VII – A Visita.

Amo o meu pai de todo o meu coração. Mas é impressionante como o lugar da gente está intimamente ligado à presença materna. Transferi minha cidade natal para Poço das Almas dentro de minha alma muito antes de ter de fazer isso por motivos políticos. Retornar à fazenda foi como voltar para casa. Além do mais, eu queria muito conversar com meu avô sobre todas as minhas descobertas. Alguma coisa me dizia que elas eram somente a ponta do iceberg. Saí do carro meio tonta, por causa da enxaqueca, e minha mãe já foi me segurar enquanto olhava com cara de reprovação para papai. Tomei um banho e um analgésico e fui para a cama mais cedo. Nada de conversas naquele dia. Pensei que meu pai fosse pernoitar na fazenda, mas a viagem que precisava fazer não podia esperar e ele partiu à noite mesmo.
Acordei no dia seguinte com o cheiro de café fresquinho e o corpo revigorado. Tomei café na cozinha mesmo, com Berenice me contando as novidades da fazenda e Trevo deitado aos meus pés esperando que eu dividisse com ele o bolo de fubá delicioso da minha avó.
- Lílian, você precisava ver o nascimento do cabritinho da Pomposa. Você já viu um parto? – Berenice falava enquanto comíamos.
- Eu?! Deus me livre! Deve ser nojento.
- Que nojento que nada. Não diga bobagens. Ver uma criatura nascer traz esperanças ao coração. É como se tudo fosse dar certo porque a vida se renova. Não sei explicar, mas é emocionante.
- Talvez tenha razão, mas não consigo imaginar onde dor e sangue possam parecer bonito. Berenice, você viu Sara e Felipe?
- Com saudades dos amigos! Eles foram com o pai numa viagem que Orestes precisou fazer para o seu avô. Sem você aqui eles viajaram muito com o pai. Devem chegar amanhã cedo, se tudo correr bem.
- Como assim “se tudo correr bem”?
- É só uma expressão Lílian.
- Hum... Você sabe onde meu avô está?
- Na sala. Parece que está te esperando.
Fui ao encontro de meu avô com a impressão de que ele já sabia o assunto que conversaríamos. De fato, meu pai havia comentado com ele sobre o que eu e meus amigos estávamos conversando em Cabeceira.
- Oi vovô! Bom dia!
- Bom dia, minha pequena! Como passou a noite?
- Muito bem. Ontem não estava muito boa quando cheguei.
- Sua mãe também era assim quando pequena. Não podia ir até a cidade sem tomar um remedinho para enjoo. Ainda hoje sofre de enxaquecas de vez em quando. Acho que é de família, porque sua avó também é assim. Eu tive dor de cabeça duas vezes na vida, e uma foi porque levei uma pancada.
- E a outra?
- Foi uma desidratação que sofri quando fiquei perdido na Terra das Rotas Diagonais durante quase uma semana.
- Como foi isso?
- Bem, eu precisei atravessar o lugar, mas soltei o punhado da terra que carregava quando dormi e perdi a memória.
- E como o senhor sabe disso? Deveria estar morto!
- Eu estava acompanhado. Orestes estava comigo e me carregou nas costas até entrarmos em Tornados.
- E a memória voltou instantaneamente?
- Não, claro que não! Fui até uma casa de repouso e fiquei internado por três dias. Eles administraram alguns remédios que me fizeram recuperar a memória de quase tudo, menos do período que passei na Terra das Rotas Diagonais. Sobre isso eu só sei o que Orestes quis me contar.
- O que quis te contar?
- Dizem que um homem fala loucuras quando esquece quem é e para que existe. Acho que nunca descobrirei as loucuras que saíram de minha boca naquele lugar.
- Vovô?
- Sim, meu bem?
- O senhor já sabe sobre o que quero conversar, não sabe?
- Sim, eu sei. Seu pai falou comigo. Mas eu gostaria de ouvir de você o que quer saber, o que está nesse seu coraçãozinho.
- Bem, nem sei explicar... Papai me disse que serei sua substituta no governo de Poço das Almas. É verdade? O que isso quer dizer realmente? E como eu vou saber o que fazer? E que raio de guerra é essa que pode começar? E quem é Amadeo? Ele é gente boa?...
- Espere Lílian, vamos dividir essas questões em partes e falar sobre elas detalhadamente. Como você já sabe, eu não tive outros filhos além de sua mãe, e ela, por sua vez, também só teve uma filha. Portanto, você é minha única herdeira. Sua mãe perdeu esse direito quando se casou. É assim que funciona aqui. Ela pertence ao marido agora.
- Isso quer dizer que também sou herdeira deles?
- Não. Seu avô paterno retirou seu pai do testamento. Além do mais, ele não é o filho mais velho. O próximo governador de Cabeceira será seu tio, Constantino, ou o filho mais velho dele, caso ele morra antes de seu avô.
- Hum... Parece história inventada.
- Mas não é. Na verdade ela é bem real e pertence a nós.
- Então eu só irei governar a cidade se o senhor morrer? Falta muito pra isso!
- Espero que sim! De qualquer forma você teria um tutor até completar dezoito anos.
- O que é um tutor?
- É alguém que cuidará de tudo até que você tenha capacidade legal de assumir seu cargo.
- E quem é meu tutor? Meu pai?
- Não. Tem que ser alguém de minha família. Seu tutor é o meu irmão mais novo, Valdívio, ele governaria eu seu lugar caso eu faltasse. Mas faremos o possível para que isso não seja necessário, certo?
- E ele é gente boa?
- Se ele é confiável? Tenho minhas reservas com Valdívio. Mas não temos escolhas. Ele é o único que legalmente poderia representá-la. E o contato dele com Tornados seria de muita utilidade para você. Lílian, você ainda é muito nova para entender o que toda essa história significa. Tenho meios de te manter informada caso haja necessidade. Vamos falar somente o que você precisa saber agora, com o tempo aprenderá tudo o que envolve Poço das Almas e Azagaia. Antes de tudo, preciso que entenda uma coisa acima de todas as outras. O que nós conversarmos deve permanecer em segredo. É um assunto só nosso certo?!
- Mas meus amigos sabem...
- Não Lílian, seus amigos não sabem sobre o que conversaremos. Só conhecem o que todos dizem. Poucas pessoas têm a história completa. E essas pessoas não vão conversar com você ainda. Outra coisa que precisa saber é sobre a Ilha do Véu. Azagaia era o território dos Continentais. Quando os Forasteiros chegaram aqui eles foram expulsos e se mudaram para a Ilha do Véu.
- Isso eu já sei.
- Pois é. O que você não sabe é que não haveria porque se preocupar com eles. A Ilha é um lugar belíssimo e muito fértil. Seu território é tão extenso quanto o nosso e os Continentais não precisam voltar para cá.
- Mas então porque brigaríamos?
- O caso é que alguém tentou matar a família real e fez parecer que fomos nós. O rei Amadeo é um homem justo e sábio, mas está cego pelo desejo de proteger sua descendência. Amadeo não entraria em guerra contra Azagaia inteira, mas corre um boato de que Cabeceira o apóia secretamente.
- E o senhor acha isso possível?
- Mais que possível. É desejo de seu avô dominar toda a região há anos. E seu tio pensa que atingindo você poderia se vingar de seus pais. Enquanto eu estiver no poder, dificilmente essa guerra poderia estourar. Tenho aliados fortíssimos que impedem os Amaral de agir.
- Acho que isso é muita coisa para uma menina de minha idade.
- Talvez seja melhor a gente continuar a conversa depois. O que você acha?
- Excelente ideia! Quero dar um passeio agora.
- Uma cavalgada?
- O senhor me levaria?
- Só se for agora!
Nosso passeio foi maravilhoso. Percorremos uma boa parte da fazenda e vovô Silvestre ia me mostrando como tudo funcionava. Queria que eu ficasse bem informada sobre a rotina do lugar. E até que era divertido. Passamos pelos jacarandás e me lembrei dos meus amigos. Estava com saudades de Felipe e Sara e não via a hora de reencontrá-los. Quando retornamos a casa o almoço estava sendo servido. Vovô e eu nos juntamos a outras três pessoas à mesa: vovó, mamãe e uma moça ruiva, de olhos pretos e pele muito branquinha.
- Desculpem o atraso. Assumo que o culpado fui eu. – disse vovô enquanto sentava à cabeceira da mesa.
- Lílian – disse minha avó – gostaria de te apresentar a Manuela. Ela será sua preceptora de agora em diante.
- E o que é isso? – perguntei.
- Uma espécie de professora. Ela ficará responsável por sua educação.
- Eu não vou frequentar a escola?
- Não. – minha mãe interrompeu - Depois conversaremos melhor e você entenderá os motivos.
Quando minha mãe falava assim eu compreendia que era hora de parar de perguntar. Cumprimentei a professora e me calei até terminar o almoço.
- Posso me levantar?
- Sim, Lílian – mamãe respondeu - Vá para o seu quarto. Irei em seguida para conversarmos.
Pensei que havia feito algo de errado. O que eu não sabia e que só descobri mais tarde, é que a seriedade de minha mãe naquele momento não tinha nada a ver comigo. O motivo era bem diferente: meu pai. Ele havia sido capturado pelos Continentais mais uma vez e ela temia pelo pior. Eu seria poupada de muitas coisas durante minha infância, mas isso só fez com que eu enxergasse tudo aquilo como loucura quando finalmente tive que saber a verdade. Ouvi batidas à porta e a voz de minha mãe em seguida.
- Filha?
- Estou aqui.
- Lílian, desculpe ter te mandado subir como se fosse um castigo, mas estou um pouco chateada hoje. Tem uns dias que a gente fica meio entediada, não é?
Eu conhecia minha mãe o suficiente para saber que não falava a verdade. Mas também não pensei que pudesse ser algo grave e continuei como se tivesse acreditado.
- É. Você veio para falar da professora, não é?
- Sim. Manuela é excelente professora e seu avô acha que você deve aprender algumas coisas que a escola não poderá ensinar.
- Exemplo?
- Como a língua dos Planicianos.
- Mas ainda existem Planicianos?
- Lílian, você pode só obedecer sem perguntar dessa vez?
- Tudo bem. Mas não é justo.
- Eu sei.
No dia seguinte acordei com Felipe me chamando debaixo de minha janela. Tive aquela sensação boa de que o dia seria maravilhoso na companhia de meus amigos e Trevo. Fomos os quatro para os jacarandás depois do café e matamos as saudades colocando os assuntos e dia.
- Pois é agora tenho uma professora particular. Não vou à escola com vocês.
- Que pena! Mas ainda poderemos brincar quando voltarmos? – perguntou Sara.
- Claro que sim!- respondi.
Felipe estava mais pessimista.
- Não sei não. Você se esquecerá da gente depois que começar a se distrair com seus afazeres de menina rica.
- Felipe!
- Deixa Sara, aprendi nessas férias que os meninos podem ser tão bobos quanto a burrice deles permitir.
- Então Felipe pode ser muito bobo mesmo!
Rimos tanto de Felipe que ele resolveu terminar a tarde ajudando o pai a carregar o caminhão. Eu e Sara brincamos de esconder até a hora do lanche, e tivemos que tomar banho antes de sentarmos à mesa. Trevo sentou-se aos meus pés, como sempre, esperando sua parte nas guloseimas. Os dias se passaram com tanta rapidez que nem percebi que as férias se aproximavam novamente. Estava radiante com a possibilidade de rever meu pai e Daniel também. Durante todo o período das aulas, enquanto Dona Manuela me ensinava a história e geografia de Azagaia, pensava na possibilidade de Daniel estar lendo a mesma coisa. Talvez nossos pensamentos estivessem unidos através das coisas que aprendíamos. Escrevia o nome dele todos os dias em meu diário e fiz uma contagem regressiva para os dias que faltavam até que estivesse em Cabeceira novamente. Mas todas as vezes que eu perguntava a minha mãe sobre o dia que papai chegaria para me busca ela desconversava. Os adultos sabem ser irritantes quando o assunto é informar. Todos os dias eu esperava pela caminhonete do meu pai fazendo a volta no laguinho, mas ele não aparecia. Comecei a ficar preocupada quando percebi que meu aniversário se aproximava e eu corria o risco de passá-lo em Poço das Almas. Quando faltava uma semana para eu completar onze anos, um carro diferente entrou pela Alameda de Carvalhos da fazenda e eu fui até a porta ver quem poderia ser. Uma menina conhecida abriu a porta do carona de mochila nas costas e eu não acreditei no que estava vendo.
- Flora! O que está fazendo aqui?
- Não te avisaram? Vou passar as férias com você.
Mamãe vinha ao nosso encontro com aquele ar de quem esconde alguma coisa.
- Ué, eu não vou para Cabeceira esse ano? E o meu pai? Por que ele não veio me ver? Mamãe?
- Receba Flora primeiro querida. Depois conversaremos.
- Eu ainda mato um com esse negócio de depois conversaremos nessa casa! Caramba! Meu pai está bem? Onde ele está?
- Ele está bem Lílian! – mamãe falou já sem paciência – Está viajando, mas virá te ver assim que puder. Agora suba com sua amiga que vocês devem ter muito que conversar.
- Flora, estou muito feliz em te ver. Mas não sou boba, tem alguma coisa acontecendo aqui e você tem que me ajudar a descobrir.
- Tudo bem. Agora vamos para o seu quarto que o que tenho para te contar é mais urgente.
Subimos ao meu quarto e Flora ficou impressionada com o tamanho dele. Realmente a casa do meu avô era bem maior que todas as casas que já havíamos visto. Conhecia minha amiga o suficiente para entender que ela só descansaria depois que soltasse a bomba que havia trazido. Então sentamos na minha cama e eu disse:
- O que foi Flora? Pode falar.
- O Daniel e a Catarina estão namorando!
- O quê?!




VIII – Ferus.

A visita de Flora era para ser um consolo, mas as notícias que minha amiga querida trouxe me envolveram num emaranhado de angústia e sofrimento. Como um sentimento tão maravilhoso pode ser tão esmagador e decepcionante? Hoje lembro que o que sentia por Daniel já era forte, ainda que não tivesse a complexidade de agora. Aprendi que o amor não tem medidas, ou é ou não será nunca; quando amamos, tudo o que existe torna-se pequeno se colocado ao lado do que sentimos. Mesmo uma menina, eu sentia que nada seria certo se não fosse com ele, no entanto, tudo estava ameaçado por minha ausência e a presença constante de Catarina. Obviamente eu não era a única torturada. Flora precisou repetir a história umas mil e duzentas vezes. Eu queria saber cada detalhe, cada palavra, a entonação de cada uma delas...
- Estou arrependida de ter te contado! – Flora disse alguns dias depois – Agora vamos passar dois meses ouvindo a mesma história de como eu soube, o que eu vi blá, blá, blá... É desanimador Lílian! Pelo amor de Deus, esquece o que te falei!
- Não posso. Quero ver quando for a sua vez de gostar de alguém. Você nem imagina o quanto é ruim saber que a pessoa não escolheu você. O pior é que eu pensei que ele gostasse. Aquela implicância parecia o que os meninos entendem de manifestação de sentimentos. Agora... Nada feito. Nem sei se adiantaria voltar à Cabeceira.
- Claro que sim! Se te serve de consolo, Daniel não parecia nada feliz depois de anunciado o namorico. É, isso mesmo, porque não passa de um namorico de crianças. Ou você acha que poderia ser sério? Catarina? Aquela boba?! Só se ele for muito burro.
- Se não fosse sério porque ele assumiria para os meninos o namoro então?
- Olha, vou te contar uma coisa estranha. Não parece fazer sentido, mas foi assim que aconteceu. O Sérgio me contou que Daniel não parava de falar de você e  de perguntar sobre quando voltaria à Cabeceira e coisa e tal, que ele tinha achado você muito metida, mas que ele gostava do seu jeito arrogante...
- Ele disse isso? Arrogante?
- Posso terminar?
- Pode. Arrogante é o fim!
- Bem, veja pelo lado bom, pelo menos ele gosta de alguma coisa em você. Mas como estava dizendo, o Sérgio disse que isso tinha deixado o Paulo furioso, e que o Daniel parou um pouco de falar de você para não perder a amizade dos meninos. Mas quando estavam só ele e o Sérgio, o assunto Lílian sempre voltava de alguma forma.
- Agora mesmo que não entendi nada!
- Só porque você não espera a gente terminar de contar. Um dia, a Michelle soltou sem querer que você é uma Gutierrez, não lembro do que falávamos, mas a postura do Daniel mudou completamente e ele nunca mais falou de você. E ainda por cima proibiu o Sérgio de falar. No dia seguinte, veio com essa de namorar Catarina.
- Que estranho! Não entendo como o fato de eu ser uma Gutierrez pode alterar o sentimento de alguém a meu respeito.
- Também não entendi. Talvez ele pense que você seja uma dessas fundadoras esnobes que Azagaia tem. Quem sabe?
- Só se ele for idiota o suficiente para julgar as pessoas pelos outros. Talvez tenha sido melhor assim. Mas meu coração não esqueceu Daniel Castilho ainda.
- Lílian, para falar a verdade, nós somos muito novas para escolher o amor de nossas vidas. Daqui a quatro dias você faz onze anos! Deixa isso pra mais tarde. Vamos aproveitar para brincar de todas as coisas que pudermos, porque depois não teremos tempo para isso.
- É verdade. Não me deixa mais falar de Daniel Castilho então?!
- Nunca mais.
Depois que eu decidi não me torturar mais com coisas que eu não poderia entender minhas férias ficaram bem mais divertidas. Sara e Flora tornaram-se grandes amigas quase instantaneamente e Felipe viajava muito com o pai por não se encaixar num mundo feminino ao nosso lado. Nas poucas vezes que ficava na fazenda passava mais tempo com Trevo, andando pelo limite da Floresta Descomunal. Meu aniversário passou com menos alarde do que eu gostaria. Acordei com os presentes na cômoda como era de costume e no lanche da tarde cantamos parabéns com um bolo delicioso que vovó preparou especialmente para mim: chocolate e nozes. Quando apaguei minha vela de onze anos desejei que meu pai viesse logo me visitar. E se me levasse para Cabeceira seria melhor. Claro que eu adoraria reencontrar Daniel, não falar dele não me impedia de sentir saudades. Por outro lado, eu também estava preocupada com meu pai. Essas viagens dele nunca haviam me preocupado tanto, mas as coisas não eram mais como eu imaginava. Algo me dizia que ele não estava numa viagem comum de trabalho. Mamãe andava muito pensativa e impaciente nos últimos dias para que eu me sentisse segura. De qualquer forma, Flora, Trevo, Sara e meus avós não me deixavam divagar muito sobre os possíveis problemas que meu pai poderia estar enfrentando.
- Seu pai deixou esse presente para você Lílian! – disse minha mãe, enquanto estendia para mim um embrulho colorido com uma fita verde enrolada – Ele me entregou antes de ir e pediu que eu aguardasse até o seu aniversário.
Quando abri fiquei surpresa e eufórica ao mesmo tempo. Era uma caixinha de música num formato familiar, mas que demorei a entender: uma réplica exata da casa dos Amaral no Bairro dos Fundadores, e que eu havia visto uma única vez. Dentro havia um bilhete:
“Eu sei que você esteve lá. Da próxima vez, escute seu pai.”
Quando coloquei para tocar, minha mãe me disse que papai havia dado a ela essa caixinha quando chegaram a Cabeceira, e que foi essa música que ela cantou pra mim durante a gravidez.
- E que música é essa, mamãe?
- Foi seu avô Amaral quem compôs para seu pai quando ele ainda estava na barriga de sua avó. Chama-se Luz dos Olhos, e fala do amor eterno de um pai pelos filhos.
- Parece que o amor não era tão eterno assim.
- Há pessoas que colocam o orgulho sobre todas as coisas e não conseguem perdoar. Só certifique-se de que você não será uma dessas pessoas.
- Claro que não, mamãe!
- É fácil falar agora Lílian. Mas eu quero que você se lembre disso quando achar que foi muito magoada. Quero que você se coloque no lugar do outro e veja se ele não tem nem um pouquinho de razão. Um dia você será uma governadora, e as coisas que aprender agora nortearão suas decisões. Só espero estar fazendo tudo certo.
- Você não faz nada errado, mamãe.
- Lílian, você é a melhor filha que uma mãe poderia querer...
- Obrigada, mãe. Estou amando esse meu aniversário.

Dias depois do meu aniversário, enquanto brincávamos debaixo dos jacarandás e Trevo latia sem parar para o nada na direção da Floresta Descomunal, Felipe chegou dizendo que estava na hora de vermos quem era corajoso o suficiente para entrar na Floresta e trazer uma pedra branca que margeava o rio Ité. Flora e Sara não gostaram da ideia, mas não queriam passar como medrosa diante da valentia estampada no rosto de Felipe. Eu achava tudo uma grande bobagem. Coisa mais fácil era entrar numa florestinha de nada e pegar uma pedra num rio que devia ser bem pertinho, porque dava para ouvir o barulho dele. Aquele suspense era coisa de menino querendo assustar a gente. Concordei na hora e combinamos nossas estratégias.
- Flora vai comigo e Sara com você! – falei – A gente pega a tal pedra e quem chegar primeiro aqui é o vencedor e terá que dar banho em Trevo durante um mês!
- Fechado! – concordou Felipe.
- Por mim tudo bem. – disse Flora.
- Mas eu não estou com vontade de ir não. – Sara falou com os olhos esbugalhados – Dizem que é estranho aí dentro.
- Deixa de bobagem, Sara! – Felipe respondeu na hora.
- Mas se você não for o Felipe vai com quem?
- Com Trevo! Eu posso ir com Trevo.
- Tá bom então! Você vai com Trevo e eu com a Flora. E Sara fica aqui para ver quem chega primeiro.
- Então conta até dez Sara, que a gente vai entrar.
- Um, dois...
- Com medo, Lílian? – Flora perguntou.
- Cinco...
- Imagina! Coisa de menino querendo parecer interessante pra você.
- Sete...
- O quê?
- Vai dizer que não notou?
- Tá doida Lílian?!
- Dez!
Ao som da largada, corri o mais que pude e só percebi lá dentro que Flora não estava comigo. Tentei voltar, mas não vi a saída e não queria perder tempo procurando porque Felipe já devia estar longe. Ouvi os latidos de Trevo se distanciando e resolvi pegar a pedra antes de Felipe de qualquer jeito. Não seria difícil encontrar o rio, eu sabia que ele ficava uns cem metros depois da clareira em linha reta. Parti em busca da prova de que os meninos não são os únicos aventureiros em Azagaia com a rapidez que desenvolvi nos piques que brinquei na vida. Estava certa de minha vitória.  Cheguei à margem direita do rio ofegante, mas satisfeita. Coloquei algumas pedras nos bolsos da bermuda e olhei ao redor para ver se achava Felipe. Foi quando eu o vi. De pé, do lado oposto ao meu. Era o homem mais alto que eu já havia visto, e trazia um arco nas mãos. O rosto estava pintado com uma tinta escura, que fazia os olhos sobressaírem e se tornarem mais assustadores que qualquer coisa que eu já havia visto. Tirou uma flecha de uma bolsa presa às costas, enfiou no arco e apontou em minha direção. Só me lembro de haver gritado, e do céu se misturar ao chão. Lembro também de ter chamado pela última pessoa que me veio à memória: Daniel!













IX – O Retorno à Cabeceira.
Acordei no meu quarto, com um gosto amargo na boca e minha mãe fazendo compressa fria na minha testa.  Estava com os pensamentos confusos, e não conseguia falar claramente. Queria dizer o que havia visto, mas as palavras não saíam. Como se tivessem medo de serem levadas pelo vento. Aquela criatura na floresta não poderia ser quem eu pensava. Ele era exatamente como meu livro descrevia Ferus. Mas isso não era possível, ele teria mais de duzentos anos se ainda existisse. Aquele homem na mata parecia ter a idade do meu pai. Algum tempo depois que recobrei a consciência pude identificar melhor quem estava no quarto e o que faziam. Minha avó abria as janelas, Flora segurava minha mão e Berenice recolhia uns vidrinhos que estavam sobre a escrivaninha.
- Que é aquilo? – perguntei apontando os vidrinhos e ainda tonta.
- Remédios. Sua avó faz de tempo em tempos para essas ocasiões em que é necessário tomar uma atitude antes que o médico chegue. – minha mãe me respondeu.
- Sempre cuidei de todos aqui com eles querida. – vovó falou – Pode ficar tranquila que são ótimos para o que foram feitos. Você já acordou não foi?
- Vocês estão falando como se eu tivesse sofrido um grave acidente. Foi só um susto, não foi? Aliás, o que era aquilo na mata? Aquele homem com cara de tigre?
- Que isso, minha filha, você está vendo coisas agora?
- Como assim “vendo coisas”? Você falou como se eu não tivesse visto nada...
- E o que você poderia ter visto? Não há ninguém lá.
- E o que você sabe? Não estava lá.
- Ôpa, minhas duas princesas estão discutindo sobre o quê? – vovô entrou no quarto e o preencheu com sua voz de trovão.
- Não estamos discutindo, pai. Só estou dizendo a Lílian...
- Vocês podem nos dar licença? – ele pediu – Gostaria de conversar com minha neta.
Imediatamente todas saíram do quarto, como se estivessem ali para obedecê-lo. Achei a cena engraçada, apesar de ainda estar assustada com o que havia visto. Afinal de contas, encontrar um homem com uma cara de felino numa floresta lendária não é coisa que acontece todo dia.
- Você sabe que não deveria ter entrado lá, mocinha?
- Agora sei.
- Muito engraçada! Queria ver sua graça se tivesse perdido o caminho de volta.
- Trevo jamais permitiria isso. Além do mais, eu segui em linha reta até o rio, não tinha como me perder.
- Sempre há uma forma de se perder na Floresta Descomunal Lílian. Você sabe pouco sobre ela ou é daquelas pessoas que precisam aprender por si mesmas?
- Sou essa pessoa aí. Papai já me contou sobre a Floresta Descomunal o suficiente para que eu não quisesse me arriscar lá dentro, mas eu não poderia deixar o Felipe ganhar uma aposta...
- Bobagem. Nem tudo é uma questão de ganhar ou perder. Você é uma menina inteligente, Lílian, deveria saber disso.
- Talvez sim. O que eu gostaria mesmo de saber é sobre o homem que eu vi...
- É um planiciano.
- Isso eu poderia concluir sozinha vovô. O que eu quero saber...
- Lílian, descanse um pouco, outro dia conversaremos melhor sobre isso. O importante agora é que você se refaça desse susto. Outra coisa, nada de falar disso para ninguém. Sabe o que significa?
- Que eu tenho que esquecer o que vi.
- Menina inteligente! Você será melhor que eu no governo dessa cidade quando for a sua vez de comandá-la.
- Se uma pessoa que nunca pode saber de nada conseguir ser governante de alguma coisa...
- Sentimentalismos não me iludem. Você sabe de mais coisas que deveria com a idade que tem.
- Vovô?
- Sim.
- Onde meu pai está realmente?
- Seu pai está viajando a trabalho.
- Ele está em perigo?
- Estamos todos correndo perigo, Lílian. Viver é muito perigoso.
- Vovô!
- Sossegue minha filha! Seu pai virá quando puder. Não se preocupe com isso. Agora tente dormir um pouco.
Algumas horas depois, Flora entrou no quarto com uma cara de quem havia cometido o maior crime do mundo.
- Você está melhor, Lílian?
- Há muito tempo. Não sei por que esse cuidado todo por causa de um desmaio à toa. Tomei um susto e só. Que cara é essa?
- Quero te pedir desculpas por não ter entrado com você. Acho que a conversa que tivemos me deixou um pouco paralisada.
- Você está com essa cara de quem roubou um bebê na maternidade por causa disso? Esqueça! Mas por que saber que Felipe gosta de você te abalou tanto? Você gosta dele? É isso? Eu não acredito Flora! Que legal! Ele é meio bobo, mas que menino não é?! Mas como vocês conseguirão namorar se vivem tão longe um do outro?
- Lílian, não viaja! Eu não gosto de ninguém. Só fiquei surpresa com a notícia.
- Hum, sei. Acho que estou aborrecida com sua falta de companheirismo de hoje à tarde. Você deveria ter me seguido.
- Eu sei Lili. Você pode me perdoar? Se eu tivesse entrado com você nada disso teria acontecido...
- Tem uma coisa que você pode fazer para conseguir meu perdão.
- Manda. Faço qualquer coisa!
- Você precisa dar uma chance a Felipe.
- Ai Lílian! Eu aqui pensando que você está falando sério!
O restante das férias se passou sem que nada de extraordinário tivesse acontecido. Brincamos todos os dias, vovó e Berenice fizeram lanches maravilhosos, Trevo se comportava mais como cachorro do Felipe que meu, vovô deu aulas sobre administração de fazenda para mim e Flora, mamãe começou a preparar as aulas que daria às crianças da fazenda e meu pai não aparecia. Também comecei a olhar para Felipe e Sara como pessoas diferentes do que eu imaginava. Era como se eles tivessem poderes sobrenaturais e eu ficasse na expectativa de que alguma coisa acontecesse. Obviamente que nada acontecia, mas eu ficava esperando o tempo todo. Flora também via Felipe de maneira diferente, mas não da mesma forma que eu. Insisti para que se declarasse a Felipe enquanto fosse possível, mas ela ainda não sabia o que significava ficar longe de quem se ama. Quando chegasse à Cabeceira, certamente se arrependeria.
Sem que eu estivesse pronta para isso, o dia de Flora retornar a sua casa chegou. Despedimo-nos com muita tristeza e ela me prometeu que viria caso eu não fosse à Cabeceira nas próximas férias. Acho que ela sabia de alguma coisa porque eu passei dois anos sem colocar os pés fora de Poço das Almas. E conforme prometido, ela veio no ano seguinte. O tempo passou rápido, apesar de minhas preocupações com papai, Daniel e as coisas que eu ignorava sobre Azagaia. Depois que Flora voltou à Cabeceira na segunda vez que esteve na fazenda, me aprofundei nos estudos com Dona Manuela, na tentativa de esquecer meus problemas. Antes que as aulas terminassem naquele ano, porém, uma carta chegou à fazenda e mudou completamente a rotina da casa. Era do meu pai e dizia que precisava de ajuda. Na mesma hora meu avô colocou suas coisas na caminhonete da fazenda e partiu para Cabeceira. Mandou um recado dois dias depois para que eu e mamãe fôssemos para casa. Senti um torpor no corpo e temi pelo pior. O que poderia ter acontecido ao meu pai de tão grave para que tivéssemos que ir ao seu encontro? Vovô não avisou na carta se papai estava vivo ou não. E para mim e minha mãe era como se nunca mais fôssemos vê-lo.










X – Você me ama?

Orestes nos levou à Cabeceira num carrinho velho de vovô que parecia que desmontaria a cada buraco que passava. Surpreendentemente, a velharia conseguiu chegar inteira na cidade. Ao contrário de nós, que estávamos quebradas, mais pela incerteza do que encontraríamos ao atravessar a porta de casa, do que necessariamente pelos solavancos que levamos no caminho. Enquanto o carro atravessava a cidade em direção a casa onde nasci, eu observava o movimento das pessoas nas ruas e uma nostalgia invadiu meu coração. Pela primeira vez pude detectar uma sensação que não soube nomear imediatamente, como um lamento sobre o fato de eu ser obrigada a viver dividida entre dois lugares onde era igual e miseravelmente feliz. Durante o tempo em que permaneci em Poço das Almas, esqueci quase que completamente das ruas cheias de senhoras sentadas em cadeirinhas reclináveis, conversando e observando seus filhos brincarem até que o suor e a poeira, juntos, dessem conta de torná-los irreconhecíveis. Agora, assim que senti a primeira brisa de Cabeceira bater em meu rosto, parecia que a vida na fazenda tinha sido um sonho bom que eu acabara de ter. Estar de volta me trouxe à realidade. Dessa vez, ao invés de pensar nos amigos que eu reencontraria, ou nos sorvetes deliciosos do Sr. Eusébio, a única coisa que ocupava meus pensamentos era como encontraríamos meu pai. Na estrada, pensei em todas as possibilidades e descartei cada uma delas. A esperança estava colada ao medo como a areia fina se agarra ao corpo e entra pelos olhos, nariz e boca, e se acumula debaixo das unhas. Não havia um só centímetro do meu corpo que não temesse pelo pior e até o aguardasse como um destino certo. Desci do carro e atravessei o portão, metade querendo resolver logo tudo o que estava por vir, e a outra querendo parar no quintal e passar a eternidade suspensa entre o instante de agora e o seguinte. Pensei na última vez que passei por ali e tinha Trevo comigo. Procurei pela mão de minha mãe e a encontrei suada e trêmula. Por mais absurdo que pareça, senti-me humana e frágil. Entramos assim, de mãos dadas, e meu avô veio nos receber na sala.
- Meus amores! Que bom que chegaram. Podem ficar tranquilas, Camilo está machucado, mas não corre risco de vida. Só precisa de descanso e do carinho de vocês.
- O que houve papai? - minha mãe perguntou aflita.
- Depois falaremos sobre isso. Podem ir, ele as aguarda.
Fui para o quarto mais confiante, as palavras do meu avô me encorajaram. Mas quando entrei foi impossível evitar o choque. Papai estava muito mais machucado que da primeira vez que foi à Poço das Almas me buscar. A cabeça estava raspada e com cortes, um olho não abria por causa do inchaço, e todo o seu peito estava enrolado em ataduras. Chorei e ajoelhei ao seu lado.
- Eu devo estar horrível mesmo! – ele disse, os olhos preocupados com minha reação.
- Papai! O que houve?
- Controle-se, Lílian – mamãe pediu com a voz embargada – Não deixe seu pai emocionado.
- Tudo bem, Marina. Acho que eu ficaria pior se vocês não se assustassem.
- Não deve estar tão ruim assim, para fazer piadas com uma coisa tão séria. Você não se emenda, Camilo Amaral!
Quando olhei para os dois, vi que mamãe deu uma piscadela para ele e percebi que era mais forte que eu imaginava. Senti uma vontade incontrolável de ser como ela, mas chorava como uma bebezinha.
- Vou passar um café. Está se alimentando normalmente? – ela perguntou.
- Não. Só posso ingerir líquidos. Não via a hora de você chegar e preparar uma daquelas sopas de abóbora que só você sabe fazer.
- Tudo bem. Mas fique quieto agora! E não dê muita conversa a essa chorona.
Mamãe foi para a cozinha e tudo fazia lembrar antigamente, menos pela situação de papai e a voz de trovão de vovô conversando com mamãe. Pela primeira vez na vida preferi não fazer perguntas. Papai notou a mudança em meu comportamento, porque disse:
- Ou estou tão feio que te fiz emudecer, ou minha princesinha está começando a crescer e aprendeu a esperar a hora certa das coisas...
- Ou os dois.
- Acho que é isso. Mesmo com um olho só aberto, pude perceber o quanto cresceu. Você está linda!
- Pena que não posso dizer o mesmo de você!
E rimos. Depois eu peguei uma cadeira e sentei ao lado de papai com uma bacia de água bem gelada que mamãe trouxe e fui colocando sobre os edemas. Aquele dia eu passei assim, cuidando do meu paizinho, sem me preocupar com mais nada. À noite fui substituída por mamãe. Subi ao quarto tão cansada que mal vesti uma roupa depois do banho, caí na cama e desmaiei. Tive pesadelos a noite toda, mas não me lembrava deles ao acordar. Pela manhã, Flora veio me fazer uma visita e me chamou para almoçar na casa dela. Eu não queria ficar longe do meu pai, mas vovô foi aceitando pra mim, dizendo que seria bom eu me distrair um pouco. Até que um tempinho com minha amiga não seria nada mau. Mesmo assim, passei a manhã inteira ao lado de papai. Na hora combinada, saí de casa com uma compota de damascos que mamãe mandou para Dona Fernanda, e uns chocolates de Poço das Almas, os melhores de Azagaia. Quando atravessava a rua, ouvi alguém chamando meu nome e virei o rosto na direção de onde vinha aquela voz tão conhecida por mim. Daniel Castilho estava parado a dez passos de distância com o mesmo porte de príncipe do dia em que o conheci, mas com uma expressão bem mais madura no rosto. Senti todo o corpo formigar, como sempre acontece quando estou nervosa. Estanquei onde estava, entre a calçada e a rua, e de uma maneira muito constrangedora, não conseguia tirar os olhos dele. Não demorou muito para que viesse em minha direção, os passos firmes de quem sabia muito bem o que estava fazendo. Tive vontade de desaparecer, mas esse é um desejo que já aceitei não poder realizar.
- Olá, Lílian!
- Oi, Daniel. Como vai?
- Bem, soube de seu pai e sinto muito. Realmente lamento o que aconteceu a ele.
Achei engraçada a maneira como falou, parecia que poderia ter evitado aquilo...
- Tudo bem, ele está melhor agora. E a Catarina, como tem passado?!
Ele olhou para mim como se esperasse que eu não tocasse no assunto e falou:
- Olha, eu preciso ir. Desejo melhoras para o seu pai.
- Obrigada.
Fiquei ainda um bom tempo parada, pensando em como tenho o dom de falar coisas desnecessárias. Queria ter aquelas atitudes das mocinhas dos romances, que só dizem o estritamente necessário para que não passem por idiotas.  Continuei meu caminho, mas com uma sensação de não tocar o chão ao pisar. Quando faltavam dois metros para o portão da casa de Flora, escutei uma pessoa correndo atrás de mim e me virei assustada.
- Lílian! – era Daniel de volta, com o corpo encurvado e as mãos apoiadas nos joelhos, ofegante e vermelho com o esforço da corrida.
- Que susto me deu! O que houve?
- A gente precisa conversar. Posso passar na sua casa mais tarde?
- Conversar? Sobre o quê?
- Não faça isso. Uma das coisas que mais gosto em você é sua rapidez de pensamento. Você sabe do que estou falando.
- E a Catarina?
- Você pode parar de fazer essa pergunta? Mas que droga! Parece um brinquedo quebrado!
- Tudo bem. Depois do jantar. E não posso me demorar porque quero ficar com meu pai.
- Feito. Prometo que não tomarei muito o seu tempo. Até mais então.
- Até.
E quando me virei para a entrada da casa de Flora, parecia que o sol estava a poucos metros do meu rosto: ao mesmo tempo que me queimava, não me deixava enxergar nada.
Flora veio me receber à porta e percebeu imediatamente que alguma coisa havia acontecido. O problema das melhores amigas é que elas têm o poder de ler nossas mentes.
- Que houve? Essa cara de quem viu um cometa assobiando o Hino Nacional não tem nada a ver com seu pai que eu te conheço.
- Ai Flora, me dá um copo d’água e um lugar para sentar...
- Vem aqui.
Como sempre, minha amiga querida cuidou de mim direitinho. Depois que me deu água, sentou na minha frente com a mão no queixo e esperou que eu abrisse o jogo.
- Daniel - eu disse, quase sem ar.
- Eu sabia!
- Sabia nada.
- É não sabia, mas só podia ser. Eu ia acabar deduzindo. Que ele fez dessa vez? Como vocês se encontraram? Onde? Quem falou primeiro?
- Você pode me deixar contar ou vai ficar perguntando?
- Hum – E ela fez um sinal de que passava um zíper na boca.
- Quando saí de casa para vir para cá ele me chamou. Estava vindo da direção da praça, pela rua, tão lindo... Foi educado, disse que lamentava o que houve com papai e depois foi embora.
- Tão formal. Vocês não se vêem há dois anos e meio e ele fala como se não fosse nada? Nem elogiou você?
- Eu perguntei da Catarina.
- Lílian, você é muito burra! Esse encontro tinha que ser depois do nosso almoço.
- Por quê?
- Simplesmente porque eu já teria te contado que Daniel terminou com Catarina assim que soube que você viria.
- Ai meu Deus!
- Também acho. E agora?
- Agora nada. Ele voltou depois e marcou de passar lá em casa hoje à noite para conversarmos.
- E você só me conta agora? Termina logo essa história Lílian!
- Terminei. Ele vai passar lá em cada depois do jantar.
Dona Fernanda apareceu de repente na porta da cozinha e eu pensei que ela poderia ter escutado alguma coisa.
- Vocês duas vão ficar de conversinha aí, ou vão colocar a mesa do almoço? – ela perguntou com as mãos na cintura.
- De-de-desculpe Dona Fernanda, é que eu...
- Tudo bem, minha filha. Você sabe como Florinha é enrolada quando o assunto é trabalho de casa. Coloque-a para fazer alguma coisa pela mãe que a comida está atrasada. Fiquei enrolada com Dona Domingas me contando as novidades. Você sabia que o menino Castilho terminou o namoro com Catarina e que ela está em greve de fome? Tatiana disse que levará a filha ao médico caso ela continue com essa maluquice.
“Ela ouviu! Tenho certeza!”- pensei. Olhei para Flora e ela fazia uma cara de “deixa pra lá”, mas eu sabia que essa história ainda ia longe.
- Mamãe mandou compotas de damasco, Dona Fernanda.
- Que delicado da parte dela! Com tantos problemas... Dona Domingas está dizendo por aí que seu pai levou uma surra de algum marido ciumento em Redenção....
- Mãe! – Flora interrompeu, mas eu já havia escutado a única coisa que me interessou na fofoca.
- Redenção?
- Você não sabe? Seu avô foi à Redenção buscar seu pai. Estava numa clínica de lá, passou dois meses em coma e ninguém sabia quem era. Se ele voltasse desmemoriado você talvez nunca mais o visse.
- Flora, eu preciso ir.
- Não, fique! Mamãe! Fala com ela...
- Desculpe querida. Não faça essa desfeita de ir para casa sem almoço. Prometo que mantenho minha boca fechada.
- Mas eu quero falar com meu pai...
- Depois você fala. – disse Dona Fernanda – Agora vamos comer!
Fomos para a cozinha e eu ajudei Flora a colocar a mesa, mas estava agoniada para ir embora dali. Tenho isso de ter que fazer alguma coisa com as mãos quando estou nervosa. Acho que é para arrumar um lugar onde colocá-las. Arrumei os talheres como minha mãe havia me ensinado para os dias de festa e tentei me concentrar nisso, mas Flora e a mãe me olhavam como se eu fosse gritar a qualquer momento.
O almoço estava uma delícia. Dona Fernanda havia trabalhado no restaurante de Seu Giovanni durante anos antes de se casar com o filho mais novo dele. Depois que Flora nasceu se tornou dona de casa, mas o tempero continuava o mesmo. Ainda arrumamos a cozinha antes de ir para casa. Flora me fez jurar que voltaria lá depois do encontro com Daniel, e eu não tive como negar. A possibilidade de falar com Daniel me fazia tremer, mas não estava em primeiro plano naquele momento. Meu desejo de descobrir o que havia acontecido ao meu pai no tempo em que passou desaparecido tomou conta de mim de tal forma que não pude esperar pelo momento certo. Entrei em casa e o silêncio fez com que eu ouvisse meu coração bater em minhas orelhas. Vovô dormia no sofá e, pelo visto, não perceberia se o circo entrasse com seus instrumentos e anunciasse o espetáculo da noite bem ao lado dele. Pensei que mamãe estivesse no quarto, mas encontrei papai sozinho. Quando abri a porta ele olhou em minha direção.
- Oi anjo! Pensei que passaria a tarde na casa de Flora.
- Eu também.
- Hum... Quando você vem misteriosa é porque eu estou enrascado.
- Talvez esteja, mas só se me negar o que vou pedir.
- E o que você quer?
- A verdade.
- Entendo. A cidade está especulando sobre o que aconteceu comigo?
- Não ligo a mínima para a cidade! Quero saber o que houve!
- Menina, isso não é jeito de falar comigo. Você acha que eu te escondo alguma coisa? Está enganada! Não te escondo nada que seja da sua conta. O que você não sabe não te diz respeito. Você pensa que tem quantos anos? Que é gente grande? Eu amo você filha, e justamente por isso não posso te fazer crescer antes da hora. Você consegue entender isso?
Meu pai nunca havia falado tão sério comigo. A coisa toda devia ser muito grave para ele se aborrecer daquele jeito. O problema é que somos tecidos pela mesma linha, e eu não sairia daquele quarto sem uma resposta satisfatória. Eu havia me cansado dos mistérios. Afinal de contas, aquilo tudo era a história da minha família. A minha história.
- Desculpe papai. Não era minha intenção ser grosseira com você, mas estou cansada de ouvir dos outros o que meus pais deveriam me contar. Vocês deveriam me deixar preparada para as coisas que escuto na rua.
- Nisso você tem razão. Venha aqui menina, vamos conversar um pouquinho. Mas não se anime, porque é só um pouquinho. O que você quer saber?
- O que você tem para me contar?
- Espertinha. O que você ouviu que te deixou tão aborrecida?
- Dona Fernanda falou que estão dizendo que você levou uma surra de um marido ciumento...
- E você acreditou?
- Não pai! Tá maluco? Mas o que me chamou a atenção foi o lugar que ela disse que vovô te encontrou. É verdade que estava numa clínica em Redenção?
- Agora o assunto ficou sério. É verdade sim. Eu estava em Redenção.
- E vai me contar por quê?
- Lílian, depois que te deixei em Poço das Almas fui para a Ilha do Véu tentar descobrir quem tentou matar os filhos do Rei Amadeo. Quem fez isso quis que parecesse que fomos nós e eu pensei que descobrindo o verdadeiro culpado poderia livrar Azagaia de uma guerra desnecessária.
- Mas não era perigoso?
- Quem você acha que me fez esses ferimentos? Fui escondido, porque sabia que não me deixariam entrar. O problema é que eu me deixei capturar quando estava dentro do castelo. Você faz ideia da confusão que criei? Pensaram que eu fosse o responsável pelo atentado e que tivesse ido lá terminar o serviço. Fiquei preso todo esse tempo, e quando tentei fugir e falhei, apanhei tanto que acharam que tivesse morrido.
- E eu nunca mais teria te visto! Você não pensou em mim? Na mamãe?
- Claro que sim! E justamente por isso fui até lá. Você já imaginou o que seria de todos nós se Azagaia entrasse em guerra? O que seria de Flora? Dos seus amigos? Você está preparada para ver destruídos os lugares onde você cresceu?
- Não.
- Filha, a vida nem sempre é como gostaríamos que fosse. Algumas vezes, precisamos fazer o que estiver ao nosso alcance para que as pessoas que amamos fiquem protegidas. E alguns sacrifícios são necessários. Se eu pudesse, você e sua mãe jamais teriam saído daqui. E eu nunca teria ido à Ilha do Véu. Só que nem tudo é como desejamos. Temos que nos acostumar com isso.
- Mas agora nós vamos ficar aqui com você, não vamos?
- Ainda não. Você e sua mãe voltarão para Poço das Almas quando eu estiver melhor.
- Por quê?
- Porque sim.
- Não é justo.
- Ouvi dizer que você tem outros motivos para querer permanecer na cidade.
- Que motivos?
- Você sabe do que estou falando. Sua mãe está chegando aí e a coisa não vai ficar boa para o seu lado. Não é só de mim que fazem fofocas. E você deveria nos deixar preparados para o que escutamos por aí.
- Papai!
- Você acha que não sabemos do que acontece com nossa filha? Esse menino não é para você. Não agora.
- Por que diz isso?
- Confia no seu pai?
- De olhos fechados.
- Então diga a ele que você não tem permissão para namorar tão nova. Que ele espere até você completar dezesseis anos. Se ele gostar mesmo de você vai esperar.
- Tudo bem, papai. O senhor sabe que vou encontrá-lo hoje?
- Não sabia. Que bom que contou. Você é a melhor filha que eu poderia ter.
- Posso ir ao encontro?
- Tem minha permissão. Mas terá que dizer o que falei. Não se esqueça de que eu saberei se estiver mentindo.
- E a mamãe?
- Eu cuido da sua mãe. Quando chegar diga que quero falar com ela com urgência. Isso deverá resolver as coisas.
Realmente ele resolveu as coisas, porque mamãe não tocou no assunto comigo. Depois do jantar, subi e me arrumei para esperar por Daniel. Já que minha resposta seria não naquele momento, decidi que ficaria o mais simples possível para não passar a impressão errada. Vesti um jeans e uma camiseta, e não coloquei nenhuma maquiagem. Enquanto esperava, pensei na conversa que havia tido com meu pai e em como eu gostaria de pegar o safado que bateu nele daquele jeito. Eu não me incomodaria de ir à guerra com a Ilha do Véu se fosse para vingar o que fizeram com ele. Não naquele momento.
Minha mãe me avisou que Daniel já havia chegado e eu desci. Quando o vi parado na porta com cara de domingo na missa, tive vontade de rir. Estava com os cabelos molhados e penteados para trás, e uma camisa estalando de nova. Trouxe uma rosa branca, que entregou à mamãe com um sorriso que me fez lamentar que meus pais não entendessem o que seria dizer não a ele. Pela reação que dona Marina teve, o gesto amansou um pouco seu coração de mãe preocupada.
- Não quer entrar rapaz?
- Não, obrigado. Gostaria de pedir a seu marido para levar Lílian para tomar um sorvete.
- Nós já conversamos com ele. Não foi, Lílian?
- Sim, mamãe.
- Vocês podem sair para tomar um sorvete, mas ela tem uma hora.
- Sim senhora. Entendo. Não vamos demorar.
- Imagino que não. Lílian, não esqueça seu casaco.
Peguei a jaqueta e saí correndo, antes que o sorriso desmontasse do rosto de mamãe. Seria difícil conversar com Daniel, mas eu nunca decepcionaria meus pais. E numa coisa meu pai tinha razão: Daniel me esperaria se fosse verdadeiro o seu sentimento. Fomos à sorveteria de Seu Eusébio, mas depois que escolhemos os sabores, pedi que conversássemos num lugar mais reservado.
- Aqui estamos! – Daniel falou quando chegamos à praça.
- No mesmo lugar onde nos vimos a primeira vez.
- É verdade. Você me chamou de fantasma.
- Nem me lembre.
- Eu gostaria de conversar com calma, mas temos pouco tempo. Você já deve saber que terminei com Catarina. Ela está fazendo questão de tornar isso público. Eu gostaria que soubesse que foi um erro começar a namorá-la.
- Não acho bacana você dizer isso.
- Não tive a intenção. É que é difícil falar sobre isso. Eu achei que nunca mais te veria. Tive meus motivos. O caso é que eu gosto de você e quero que fiquemos juntos...
- Daniel, não vou deixar você perder seu tempo.
- Perder meu tempo?
- Conversei com meus pais e eles não querem que eu namore agora. Se você quiser, terá que esperar até que eu complete dezesseis anos. Além do mais, volto para Poço das Almas quando meu pai estiver melhor. Seria complicado.
- Posso fazer alguma coisa para mudar isso?
- Nem tente. Poderia perder o pouco que temos. Podemos ser amigos ate lá. Ninguém me proibiu de te ver.
- É uma situação delicada. Não tenho escolha. Tudo bem para mim se você responder a uma pergunta.
- Faça.
- Você me ama?
- Desde a primeira vez que o vi.
- Então a gente espera.


XI – Vento e Passarinho.

Percebi quem era a pessoa de pé diante de mim antes mesmo de abrir meus olhos de manhã. Aquele perfume e a disposição de acordar cedo e ir até a casa de outra pessoa só para saber das novidades não poderiam pertencer a mais ninguém.
- Você dormiu aí, Flora? Eu não me surpreenderia se a resposta fosse afirmativa!
- Sabe que eu poderia, mas não. Acabei de chegar e valeu à pena, você deveria ter visto o sorriso estampado em seu rosto agora há pouco.
- Eu não estava rindo. Estava?!
- Foi muito engraçado!
- Ai, que droga!
- Estou esperando...
Só então abri os olhos e me sentei. Flora ainda estava de pé, com os braços cruzados sobre o peito e uma cara de quem não me deixaria fazer outra coisa antes de contar a ela o que queria saber.
- O que é Flora? Você não tem nada melhor para fazer?
- O que acha? Conta logo para a gente descer porque sua mãe está fazendo torradinhas amanteigadas para o café.
- Senta aí, você de pé me deixa nervosa.
Flora se sentou na ponta da cama e abraçou um travesseiro.
- Sou toda ouvidos...
Contei a ela da conversa que tive com meu pai antes do encontro, de como Daniel foi compreensivo e respeitador, de como estou cada vez mais apaixonada... Contei o que sentia em relação a tudo o que estava acontecendo, porque Flora é a única para quem eu posso dizer que tenho medo de que ele me esqueça durante o tempo que passaremos separados, que meu coração dói só de pensar que não poderei ficar juntinho dele esse tempo todo, que sinto ciúmes de Catarina, que meus pais não sabem como será difícil esperar...
- Ai, que romântico! Você tem muita sorte, Lílian.
- Sorte? Não ouviu o que falei? Ainda vou ter que esperar durante três anos!
- Mas você pelo menos sabe que ele te ama. O pior é quando a gente não faz ideia.
- O que está dizendo tem alguma coisa ver com certo morador de uma fazenda em Poço das Almas?
- Hã? Quê? Você ficou doida?!
- Que pena! Porque Orestes e Felipe estão chegando daqui a pouco para buscar meu avô e trazer Trevo.
- Você está dizendo isso para brincar comigo!
- E porque seria? Que interesse você pode ter na chegada deles?
- Ai Lílian! Vamos para o café que ganhamos mais.
Descemos e encontramos uma mesa farta e muito bonita. Minha mãe é aquele tipo de mulher que confere beleza e elegância a um banquinho e uma caixa de fósforos. Qualquer coisa ganha charme em suas mãos, e sabe receber como ninguém. Estávamos loucos para provar dos bolos, doces e pãezinhos que havia preparado. Só o meu pai não tomaria café conosco porque ainda não podia usar as escadas. Eu e Flora comemos torradinhas e tomamos suco de graviola até nossas barrigas estufarem. Só nos levantamos porque mamãe pôs um fim ao exagero.
- Chega de café-da-manhã para vocês duas. Mas que coisa, parece que o mundo acaba em meia hora!
Enquanto ela falava, ouvimos o barulho do caminhão de Orestes parando em frente de casa. Logo os latidos de Trevo me fizeram pular da cadeira e correr em sua direção com Flora atrás de mim.
- Trevo, meu amigo! – falei enquanto o abraçava – Você cresceu! Que saudades!
- Percebi que Flora e Felipe já haviam se olhado e achei muito estranho já que não se viam há tempos. Havia alguma coisa acontecendo e eu não estava satisfeita de ter ficado de fora.
- Oi Felipe! Lembra da Flora?
- Claro! Tudo bem?
- Bem – ela respondeu envergonhada – E você?
- Vamos entrar! – falei – Mamãe ainda tem uma mesa de café posta para vocês!
Entramos todos e conversamos sobre as novidades na fazenda, as mudanças feitas na cidade pelas chuvas de verão e o quanto vovó e Berenice reclamavam da falta que fazemos. Depois, vovô e Orestes subiram para falar com papai e aproveitei para levar Felipe a um passei comigo e Flora. Minha intenção era apresentá-lo aos meus amigos, mas não encontrei todo mundo. Daniel, Sérgio e Paulo tinham ido à Pedra Marcada para mais um de seus passeios de meninos. Catarina também não saía mais de casa, mas era um favor que me fazia. Davi estava lá, e foi simpático como de costume.
- Imagino o quanto deve ser interessante aprender a domar cavalos... – ele falou com Felipe.
- É muito bom. Alguns animais são mais fáceis de lidar que as pessoas. O cavalo é um desses, muito sensível e fiel. – Felipe respondeu.
Deixei os meninos se entendendo e fui para o balanço com Michele e Flora. Gostaria que Daniel aparecesse, mas foi bom que eu tivesse um tempo para pensar em como deveria reagir a sua presença. Não sei se era um segredo o que havíamos combinado. Acho que eu não me sentia muito bem com o fato dele ter terminado um namoro para ficar comigo. Mesmo pensando em Daniel, pude perceber que Flora se posicionou de forma que pudesse olhar para Felipe o tempo todo. Aquilo estava me incomodando muito, porque não achava justo que minha amiga tivesse segredos para mim. Queria esperar até o momento em que estivéssemos a sós, mas foi Flora mesmo quem começou a falar depois que percebeu que eu começava a demonstrar sinais de mau humor.
- Lílian, tenho uma coisa para te falar...
- Isso eu sei, só não sei os detalhes e porque não contou antes.
- Do que vocês estão falando? – Michele perguntou surpresa.
- Flora está de segredinhos com a gente.
- Sobre o garoto de Poço das Almas?
- A Michele está sabendo? Mas é muito pior do que eu imaginava! Você sabe que te conto tudo Flora.
- Não é isso. Vou te contar como as coisas aconteceram e você vai entender.
- Acho bom mesmo!
- Você se lembra que foi você quem me disse que ele parecia interessado?
- Claro! Eu já havia percebido.
- Pois é. Depois daquele dia comecei a ficar mais atenta aos sinais, porque também estava gostando dele. Eu não tomaria a iniciativa nunca, mas queria que ele percebesse que estava aberta para uma conversa. Nas outras vezes que estive na fazenda nos tornamos mais próximos, mas não ficávamos sozinhos nunca e o tempo foi passando. Um dia, eu estava aqui na praça com a Michele e os outros e vi quando o caminhão de Orestes parou no portão de sua casa e ele desceu com Felipe. Demorei um tempo para tomar coragem, mas fui até lá e perguntei o que estava acontecendo. Orestes entrou na casa e Felipe ficou comigo do lado de fora. Disse que estavam procurando notícias do seu pai e que haviam recebido um sinal de que ele estaria em Redenção. Passaram aqui a pedido de seu avô para pegar uns pertences, algumas roupas e objetos pessoais de Seu Camilo. Foi aí que conversamos sobre nós dois e prometemos trocar correspondência. Foi rápido.
- Mas porque não me contou?
- Quando você chegou não havia clima. Seu pai estava de cama e você muito preocupada. Depois teve o encontro com Daniel, e antes que eu pudesse encontrar uma brecha no nosso tempo eles chegaram.
- Não parece ruim com você explicando dessa forma, mas eu teria te contado muito antes. Se bem que foi barra pesada a minha chegada aqui, não foi?
- Isso que estou tentando fazer você entender.
- E vocês dois estão de namoro então?
- Não exatamente. Felipe é ainda mais tímido que eu e nossas cartas falam de muitas coisas, mas pouco sobre sentimentos. Acho que só uma conversa poderia deixar tudo mais claro. O que você acha?
- Que falta você me responder uma coisa.
- O quê?
- Por que não está aproveitando o pouco tempo que tem para dar uma voltinha e tomar um sorvete?
- Boa pergunta. A melhor que você já me fez na vida! Você acha que eu deveria chamá-lo?
- Já foi?!
- Michele, faça companhia para Lílian e Trevo, por favor. Vou resolver um probleminha.
Enquanto Flora se afastava, aproveitei o fato de estar sozinha com Michele para perguntar sobre uma coisa que estava me incomodando. E se havia uma pessoa que saberia me responder e não teria motivos para esconder qualquer detalhe era ela.
- Michele.
- Oi?
- Tem uma coisa que eu gostaria de saber e acho que você pode ajudar.
- Pode falar.
- Não é a primeira vez que ouço alguém me dizer que os meninos foram até a Pedra Marcada. Você sabe o motivo? Os adultos dizem que não devemos ir até lá sozinhos, mas os garotos insistem em ignorar esse aviso. É só curiosidade ou estão aprontando alguma?
- Não sei. Pode ser só coisa de garotos, mas seria muita ingenuidade nossa descartar outros motivos.
- Por que diz isso?
- A Pedra Marcada é lendária e os moradores da região sempre a visitam para tentar encontrar a tal marca...
- Mas a marca não é a inscrição?
- Não!
- Nem o fato dela marcar o limite com a Terra das Rotas Diagonais?
- Não mesmo! Há uma marca nela que indica um segredo, mas ninguém consegue encontrá-la. Algumas pessoas acreditam que só a escolhida para unificar Azagaia é que poderá achá-la.
- Interessante! Você já tentou?
- Claro que sim! Meu pai me levou lá alguns anos atrás, lembra-se?
- É verdade. E nada?
- Nada. É difícil procurar uma coisa que você nem sabe do que se trata.
- O que será o segredo que ela guarda?
- Isso é o que toda a região gostaria de saber. E eu posso apostar que é o que os meninos procuram.
Fiquei pensando na conversa com Michele pelo resto da manhã. Pensei em perguntar a Daniel, mas não sabia se queria parecer dessas meninas que querem saber de cada passo do namorado e resolvi que esperaria ele me contar alguma coisa. O barulho do vento indicava que a chuva estava a caminho e eu pensei que seria bom para Flora que Felipe não pudesse pegar a estrada hoje. Além do mais, o cheiro de terra molhada é um dos meus preferidos. Fui correndo até a sorveteria e chamei o mais novo casal de Azagaia para o almoço. Era impressionante que eu estivesse com tanta fome depois do café-da-manhã que tomei, mas meu estômago parecia completamente vazio. Quando eu me aproximava de casa, Davi me alcançou com um bilhetinho de Daniel em mãos.
- Meu irmão mandou te entregar.
- Obrigada, Davi. Por que você não foi com eles?
- Daniel não deixou. Disse que um de nós deve sempre fazer companhia para mamãe.
- Certo. Até mais então.
- Até.
Foi só o tempo de entrar em casa que a chuva desceu com força sobre a cidade. Ainda pude ver as senhoras correndo para recolher suas roupas do varal, com toalhas sobre as cabeças, gritando para os filhos fecharem as janelas dos quartos. De longe, Davi ainda tentava chegar a casa. Só então me lembrei de abrir o bilhete.
“Quer andar de bicicleta depois do jantar? Te espero do outro lado da rua. D.”
Minhas mãos formigaram na mesma hora. Era engraçado que Daniel me deixasse dormente todas as vezes que eu o via ou pensava em seu nome. E sem perceber, eu sorria. Despertei do torpor que ele me causou com minha mãe parada na minha frente.
- Você não está me ouvindo, Lílian Amaral? Tira esse sorriso bobo da cara e vem me ajudar na cozinha. Vou levar a comida do seu pai e já volto. Você está com alguma coisa nas mãos?
- Eu? Não. O que quer que eu faça?
- Olha o pernil no forno. A Flora está colocando a mesa.
- Tudo bem. Mãe?
- O que é?
- Nada.
Depois do almoço, mamãe separou umas roupas de cama para Orestes e Felipe porque a chuva os impediu de viajar. Tínhamos o costume de descansar um pouco toda tarde, mas a casa parecia agitada demais para que a rotina continuasse a mesma. Os adultos foram para o quarto de papai e nós ficamos ajudando mamãe a arrumar a cozinha. Quando subi para perguntar se vovô e Orestes queriam um café eu mesma havia acabado de passar, escutei uma frase vinda do quarto de papai que me fez esperar para anunciar minha presença.
- O que você disse Orestes?
- Isso mesmo que o senhor acabou de escutar. Houve outra tentativa contra a vida de Amadeo e as coisas estão ficando cada vez mais delicadas. Eu viajo muito e ouço de tudo o que acontece por aí. Posso garantir a vocês que a guerra não demora a começar. Se alguma coisa acontecer ao rei da Ilha do Véu...
- Nem pense nisso! – escutei meu avô interromper – Ainda não estamos prontos para uma guerra dessas proporções. Fui informado de que Cabeceira apoiará Amadeo e Azagaia estará dividida. Além do mais, precisamos descobrir onde a família de Amadeo está escondida. Eles correm grave perigo, e se alguma coisa lhes acontecer Amadeo não nos poupará. O que acha Camilo?
- Tenho uma forte desconfiança de onde a família do rei Amadeo se esconde. Precisamos levar Lílian para Poço das Almas até que as coisas se acalmem.
Quando escutei meu pai dizer isso, senti uma angústia enorme. Por causa dessa confusão toda eu teria que ficar mais tempo longe de Daniel. Não era justo! Precisava arrumar um jeito de ir ao encontro dele de qualquer maneira. A única coisa que poderia atrapalhar era a chuva, que não dava uma trégua.

****************

 Depois de uma tarde inteirinha temendo que a chuva não passasse e eu não pudesse ver Daniel, finalmente o tempo deu mostras de que melhoraria. O que não era exatamente bom, porque sem chuva a estrada estaria liberada para viajarmos pela manhã. Eu não tinha certeza se meus pais me mandariam agora para Poço das Almas, mas não poderia esperar para não correr o risco de ir sem me despedir de Daniel.  À hora marcada, abri a janela do quarto e desci pela sebe que cobria toda a parede externa da minha casa, tomando cuidado para não me machucar com os espinhos e acabar lá embaixo mais rápido do que desejava. Flora já havia ido para casa e eu disse que precisava dormir um pouco para me recuperar do dia incomum que tivemos. De qualquer forma eu tinha pouco tempo. Precisava voltar antes de Trevo acordar e começar a latir no quarto.
Quando saí pelo cantinho do muro, vi Daniel parado, segurando a bicicleta com uma das mãos e com a outra no bolso. Pulei o quanto pude, gesticulando nervosamente para chamar sua atenção sem precisar me arriscar em frente a minha casa. Ele não demorou a perceber que eu estava ali, feito uma louca criminosa, abaixando e levantando enquanto gesticulava. Quando vi que ele começava a rir, me senti a idiota que realmente devo ser. Fiz sinal para que ele me esperasse mais à frente e voltei para pegar a minha bicicleta. Foi quando percebi, no escuro, uma figura enorme parada diante da garagem e olhando diretamente para mim. Prendi a respiração por alguns segundos na esperança que ele não tivesse me notado, mas foi em vão.
- O que a senhorita está fazendo aqui fora? Não precisava descansar?
- Vovô? Eu-eu-eu...
- Você o quê? Estou esperando.
- Eu-eu... Vovô, por favor?
- Cinco minutos, Lílian. Esse é todo o tempo que eu posso esperar por você. Vá até lá e diga para o seu amigo que mudou de ideia e não vai mais acompanhá-lo. E quando entrar vai explicar tudinho para o seu pai.
Eu nem discuti porque era perda de tempo. Deixei a bicicleta ali e fui até Daniel quase chorando.
- Meu avô me pegou tentando sair. Tenho que voltar agora. Só quero te dizer que acho que vão me levar para Poço das Almas amanhã. Não faço ideia de quando poderei voltar.
- Por que tão de repente?
- Não posso te explicar. Você me espera?
- Já te disse que pelo tempo que for necessário. Escreva para mim mandando o endereço de onde você vai ficar.
- O que você vai fazer?
- Só faça o que estou dizendo.
- Vou sentir muitas saudades. Não me esqueça.
- Sinto sua falta no instante em que você sai do alcance dos meus olhos. 
- Tenho medo que você seja como um passarinho, livre demais para viver preso a mim.
- Se eu sou um passarinho, você é o vento que sustenta meu voo. Eu não poderia voar sem você, poderia?




XII – O Príncipe Escondido

Contar uma história não é tarefa simples, mesmo as histórias vividas são impossíveis de lembrar em todos os seus ângulos. O que conto para vocês é uma sombra, porque não me recordo de cada detalhe do que passou e ignoro o que há de vir. Só sei é que a vida da gente desfila diante de nossos olhos quando entendemos o quanto somos insignificantes e frágeis. E sabe o que mais lamentei enquanto minha vida corria perigo? Não ter tido muito tempo com meu amor. Prometi a mim mesma que sobreviveria a esse campo de batalha, e que encontraria Daniel ou quem quer que ele fosse agora...



Voltar para Poço das Almas não foi nada fácil dessa vez. É muito difícil lidar com separações no decorrer da vida, mas quando somos adolescentes e achamos que tudo deveria ser como sonhamos, as coisas podem ficar um pouco piores do que realmente são. Entrei no carro velho de vovô com ódio por ter sido obrigada a me separar de tudo o que amo.
- Quando estou em Cabeceira tenho que ir para Poço das Almas, quando estou em Poço das Almas me arrastam para Cabeceira, vocês querem fazer o favor de se decidir?!
- Lílian, não seja uma garota mimada. Nem fica bem, na idade em que está já passou da fase de chorar e fazer beicinho.
- Vovô, o senhor nunca entenderia!
- Você acha? Você realmente acredita que já nasci velho? Também tive a sua idade, mocinha. Para seu conhecimento, esperei por sua avó por doze anos.
- Por que demorou tanto?
- É uma longa história...
- E o que vamos fazer até Poço das Almas? Conte-me uma história de amor.
- Aquele rapaz é seu namorado, menina?!
- Conte-me sua história que eu conto a minha.
Vovô soltou uma gargalhada que fez meus ouvidos dilatarem.
- Essa é boa! Você já tem uma história? Sorte sua mãe não estar aqui, ela te trancaria num quarto até você ter idade suficiente para ter netos!
- O pior é que sei que o senhor tem razão. Mamãe é mais linha dura que papai, não é?
- Ela só é mais preocupada. Mas não se engane todas as decisões que tomam a seu respeito são avaliadas pelos dois. Um não fala com você sem a autorização do outro. Aqueles dois são o casal mais unido que já conheci.
- Mais que o senhor e a vovó?
- Com certeza! Sua avó manda em mim, Lílian. Só não diga a ela que admiti isso, certo?
- Pode deixar. Mas me conte a história de vocês.
- Hum, deixe-me ver, conheci sua avó na fazenda. Ela e a família pediram ao meu pai abrigo durante alguns dias. Estavam a caminho de Tornados quando a filha mais nova teve febre. Eu tinha trinta e um anos e sua avó onze.
- Você gostou de uma menina de onze anos?
- Não como você imagina. Não me apaixonei por sua avó assim que a conheci, mas ela sabia que se casaria comigo quando me viu a primeira vez.
- Como?
- Não sei querida, mas sua avó tem dessas coisas. Até hoje não entendi como ela descobre algumas coisas antes mesmo que aconteçam. O caso é que os pais precisavam partir, mas a menina não melhorava. Então eles pediram que meu pai permitisse que elas ficassem aqui até que eles retornassem da viagem.
- E elas ficaram?
- Oh, sim, ficaram.
- E eles voltaram?
- Voltaram. Só que quatro anos depois. Durante esse tempo, sua avó se tornou uma linda moça e eu me apaixonei. Mas quando os pais dela voltaram nem quiseram conversar sobre a possibilidade de nos casarmos, então partiram sem rumo e eu só pude encontrá-la doze anos depois. Quando eu apontei na pequena propriedade que ela vivia com a mãe e as irmãs depois que seu pai as abandonou, ela sabia que era eu mesmo de longe. Entrou em casa e disse à mãe que me acompanharia. Desde esse dia estamos juntos, e eu não posso imaginar minha vida sem ela.
- Que linda história, vovô!
- Tenho uma coisa para te dizer, mas não pode contar a sua avó que abri minha boca.
- Prometo que selarei minha boca – e fiz um sinal com as mãos nos lábios, como se tivessem sido colados.
- Quando Marina fugiu com seu pai, eu e meus homens fomos atrás deles até as montanhas a oeste de Tornados. Estávamos a um passo de capturá-los quando um moleque da fazenda chegou com um bilhete de sua avó que dizia assim: “Deixe-os ir. Eles precisam cuidar do nosso futuro.” Sabe de quem ela falava?
- De mim?
- Você é uma menina inteligente, Lílian Amaral!
- Vovô?
- Fale querida.
- Pensei numa coisa agora... e se eu fosse essa garota que Azagaia está esperando? A que vai encontrar o segredo da Pedra Marcada e unificar o país? Já pensou?!
- Já sim. O que você acha disso?
- Que seria muito legal! Eu seria importante e meu pai se orgulharia de mim.
- Nós já nos orgulhamos de você, Lílian. De como trata as pessoas com carinho e consideração. Ser a escolhida para unificar Azagaia seria uma honra, mas seria um fardo também. Você teria que deixar seus planos em segundo lugar para priorizar o bem de muitas pessoas. Teria que pensar no efeito de suas decisões sobre a vida dos que dependem de você, teria que enfrentar oposições e inimigos nem sempre óbvios em seus intentos. De qualquer forma, teremos que esperar até que você complete dezesseis anos. O segredo da pedra só se revelará nesse tempo. O que acha disso?
- Não sei, vovô. Quando penso em ser essa menina só o que me vem à cabeça é a cara de meus amigos. Seria engraçado.
- E aquele rapaz? O que te fez sair sorrateiramente de casa na outra noite?
- Ele não fez isso! Fui eu a culpada.
- Sim. Mas e aí?
- Eu gosto dele vovô. Nós queremos namorar, mas vamos esperar até que eu com-ple-te...
- O que foi?
- ... dezesseis anos. É isso! Meu pai só vai me deixar namorar depois que descobrir se eu sou a escolhida ou não! E se eu for? Existe a possibilidade dele não permitir meu namoro?
- Eu avisei a ele que você juntaria as peças.
- O senhor sabia disso?
- Lílian, é complicado explicar agora. Eu teria que conversar com Camilo primeiro. Só posso te dizer que seu pai não vai se opor ao seu namoro com o rapaz. Só o que ele espera é que você tenha maturidade suficiente para tomar algumas decisões antes de se envolver com o menino. Além do mais, o autocontrole é um dom que um líder precisa cultivar.
- Já estou achando um péssimo negócio ser essa escolhida de Azagaia.
- Não é uma missão fácil. Falando nisso, tenho uma tarefa para a senhorita amanhã.
- E o que seria?
- Você vai conhecer uma pessoa. Alguém que já conhece de certa forma.
- E eu vou ficar sabendo quem é antes ou o senhor vai fazer mistério?
- Quero que você conheça Ferus, o homem que você viu na mata quando entrou com Felipe.
- Então eu não tive uma alucinação?! Eu sabia! Engraçado é que ele tem o mesmo nome de Ferus que lutou ao lado dos Fundadores. Funciona como um título esse nome?
- Não. Ele tem esse nome há anos, e nunca houve outro homem chamado Ferus nessa região.
- O senhor não está dizendo que é o mesmo Ferus, está? Isso seria impossível!
- Lílian querida, um dia você vai perceber que nada é impossível em Azagaia.
O restante da viagem nós fizemos boa parte em silêncio. Eu tinha muitas coisas nas quais pensar e minha cabeça estava tentando juntar os fatos e entender o que não queriam me dizer. Eu já sabia que Azagaia e a Ilha do Véu lutavam antes mesmo de terem esses nomes, que minha família estava metida nessa guerra até o pescoço, que eu poderia ser essa escolhida para liderar Azagaia e uní-la num só país, que, por algum motivo meus pais achavam que eu precisava de maturidade para um namorico de verão e que Ferus ainda existia. Essas coisas não pareciam fazer o menor sentido e nem tinham qualquer ligação para mim até aquele instante. E essa história maluca de um homem com mais de duzentos anos estava me provocando curiosidade e medo no mesmo grau de intensidade. Conhecer Ferus para quê? Que importância isso poderia ter para mim ou para ele? Havia em minha vida um mistério que começava a me preocupar e eu não sabia onde tudo isso poderia me levar, mas tinha medo que fosse para longe de Daniel.
Quando paramos na estrada para fazer a merenda que mamãe havia preparado e puxei a lata de biscoitos de dentro da caixa de papelão no banco de trás do carro, vi um pequeno pedaço de papel cair e automaticamente me abaixei para pegá-lo sabendo que era para mim. Quando abri o bilhete, li as palavras que, no fundo do coração, já esperava encontrar ali:
"Em dois dias estarei em Poço das Almas. Beijos, D."
Não pude acreditar e passei os dois dias mais longos de toda a minha vida. Sim, porque dali para a frente eu não teria mais muito tempo para agonizar por amor. A gente pensa quando ama que nunca será suficiente o tempo que temos para estar ao lado de quem amamos, mas no meu caso não foi mesmo.
Continuamos a viagem e fiquei aliviada quando vi as Montanhas Rochosas de longe. Sabia que no ponto onde podia visualizá-las restava apenas uma hora para chegar a Poço das Almas, mais alguns minutos até a fazenda e a poeira da estrada ficaria para trás. Fomos recebidos com festas e muita alegria, mas tudo o que eu queria era um banho e silêncio. De dentro do meu quarto pude ouvir as músicas e a conversa animada de todos, mas não consegui pensar em mais nada que não fosse a vinda de Daniel. Ao mesmo tempo que me preocupava, pensava no quanto era valente o meu principezinho. Nem consigo me lembrar como passei aqueles dias e o que aconteceu no espaço de tempo em que esperei por ele, não podia deixar de me perguntar como Daniel faria para me avisar que estava na fazenda. Passei o segundo dia depois de minha chegada atenta a todos os detalhes e nada parecia diferente do que estava habituada. Os mesmos horários, as mesmas pessoas, a mesma rotina. Nenhum sinal de que alguém poderia estar invadindo a fortaleza dos Gutierrez. Consegui adiar o encontro com Ferus e isso levantou suspeitas em meu avô, porque minha curiosidade era famosa por todo lugar onde eu andava. Apesar disso, não acredito que ele fosse capaz de imaginar o motivo de tanta distração e angústia. Fiquei decepcionada quando a hora de dormir chegou e Daniel não deu sinais de que havia cumprido sua palavra. Fui para o quarto louca de vontade de ficar sozinha para lamentar minha falta de sorte e chorar um pouquinho. Nem tive tempo de me entregar ao desespero, porque no canto do quarto, abaixado entre o guarda-roupas e a parede, encontrei um garoto lindo, de cabelos desarrumados e os dentes mais perfeitos do mundo que me recebeu assim:
- Pensei que fosse ficar escondido aqui a vida toda! Vim cumprir minha promessa.









XIII – Formigamento.


Não acreditei quando vi Daniel no meu quarto.
- Como você conseguiu entrar? – falei, sentindo todo o meu corpo tremer com a emoção de vê-lo misturada ao medo de ser descoberta.
- Mas que recepção calorosa! Exatamente como eu havia imaginado!
- Desculpe-me Daniel, mas você há de convir que isso não é uma maneira doce de surpreender uma namorada.
- Gostei disso. Você pode repetir?
- Bobo. Namorada? Não é o que sou?
- É sim. A mais linda e a mais complicada.
- Eu não sou complicada, minha vida é que é. Agora sai desse canto que eu já estou começando a querer rir. Como foi que chegou até aqui?
Daniel Castilho se levantou e veio em minha direção com aquela firmeza característica e que parece arrogância quando ainda não o conhecemos direito. Tinha a roupa amassada e a cara de quem não dormia direito desde o instante em que nos separamos. Minha tremedeira deu lugar ao meu famoso formigamento e, à medida que ele se aproximava eu sentia um aperto no peito que me impedia de respirar.
- Nervosa?
- Por que a pergunta?
- Por nada, só achei que seria natural ficar nervosa numa hora dessas.
- Do que você está falando exatamente?
- Disso.
Daniel se aproximou tanto de mim que parei completamente de respirar e, por um segundo pensei que fosse morrer. Não consigo me lembrar de todos os detalhes, só que meu coração estava muito acelerado, meu rosto quente e minha boca colada à dele. Senti como se meus pés não tocassem o chão, como seu meu corpo flutuasse para longe dali, como se não houvesse mais som no mundo... Queria nunca mais me desgrudar dos lábios macios que tocavam os meus, do hálito doce que vinha de sua direção. Sem dúvida eu não poderia ser mais feliz que isso aos treze.
Como uma boba que nunca diz o que deveria nos momentos de estresse, eu abri minha boca e falei a primeira coisa que veio em minha cabeça depois que nos desgrudamos:
- Você me prometeu esperar pela autorização dos meus pais.
- Será que foi tão ruim assim? - ele respondeu com um sorriso ainda mais sufocante que o beijo.
- Não! Sei lá porque eu disse isso! Acho que você me pegou de surpresa e eu não sabia...
- Tudo bem. Se acalme. Prometo que não repetirei até que você me peça.
Eu gostaria de dizer que não era preciso tanto protocolo, mas fui orgulhosa e deixei passar.
- Acho bom! Assim não teremos com que nos preocupar. Como foi a viagem?
- Nem queira saber. Azagaia está mergulhada em um silêncio angustiante com o que está por vir. As pessoas se fecharam e perderam o brilho nos olhos. Parece que aguardam por algo realmente destruidor.Acho que perderam a fé em dias melhores. Se ao menos eu soubesse..
- O quê? O que você poderia saber sobre o que está acontecendo que mudaria alguma coisa?
- Nada. Eu só tenho curiosidade sobre o comportamento das pessoas.
- Hum, e sobre o meu comportamento? Você não gostaria de saber alguma coisa?
- Eu já sei o que preciso, que é que você me ama. O resto eu tenho medo de descobrir porque você não me parece dessas meninas comuns. Acho que poderia saber de algo que nos transformaria.
- Tipo o quê? Que assunto louco!
- É verdade. Nem sei porque disse isso. É só uma coisa que sinto. É uma angústia de perder o que ainda não é meu de fato. Entende? 
- Como se o tempo que nos pede calma fosse um obstáculo eterno? Como se o dia de ficarmos juntos não estivesse escrito?
- Exatamente! Você também se sente assim?!
- O tempo todo.
- Então deve ser natural aos apaixonados.
- Ou um aviso.

Daniel tentou disfarçar, mas era óbvio que nossa conversa havia deixado um gosto amargo em nossas bocas. Apesar do beijo lindo, nunca mais esquecemos aquelas palavras que pareciam saídas de um livro já escrito, com um final nada agradável. Tentamos espantar os pensamentos de mau agouro com notícias frívolas sobre Cabeceira do Rio Seco. Os beijos que me mandaram, as fofocas de Dona Domingas, os novos sabores de sorvetes de Seu Eusébio... Falamos de tudo o que nos ocorria, até de Catarina e seus devaneios de princesa esquecida. Dormi com a cabeça recostada no ombro de Daniel, e me lembro que ele disse que voltaria no dia seguinte para se despedir. O sono pesado não me permitiu perguntar onde ele passaria a noite, ou a que horas viria me ver. Sonhei anoite inteira com guerras e com as pessoas que amo sendo separadas de mim bruscamente. Meus sonhos eram tão reais que acordei chorando e quase gritei quando senti que tocavam meu rosto.
- Daniel!
- Quem é Daniel minha querida? Você estava sonhando?
- Ah, oi Berenice! Bom dia! Eu acho que tive um pesadelo.
- Então não me conte. Dizem que os pesadelos não devem ser contados antes do desjejum para que não se realizem.
Berenice não fazia ideia, mas aqueles pesadelos eu não contaria nem que tivesse almoçado e jantado dias seguidos. Teria que contar sobre a visita de Daniel, e para falar a verdade, eu nem sabia se tinha sido real.
- Vá  para o banho. Eu separo sua roupa e deixo sobre a cama. Seu avô a aguarda na sala, tem um compromisso com você em algum lugar sobre o qual não quer falar. 
- Acho que sei do que se trata.
Levantei-me sem vontade e fui para o banheiro pensando se Berenice saberia escolher uma roupa para que eu fosse à floresta. Com certeza vovô queria que eu conhecesse Ferus finalmente. Eu queria matar minha curiosidade, mas não gostaria de me ausentar do quarto até que Daniel voltasse para se despedir, caso sua visita não tivesse sido outro dos meus sonhos. Felizmente, não precisei esperar muito tempo, porque ele estava sentado em minha cadeira de estudos, comendo os bolinhos de chuva que Berenice trouxe com meu café.
- Pensei que tivesse sonhado contigo.
- Bom dia! Quer dizer que não sou um sonho?!
- Você me entendeu. Onde passou a noite? 
- Na floresta. Lugar agradável.
- Como assim? Meu avô me disse que só Planicianos tem autorização para entrar lá!
- Não achei nada estranho, só mato e bichos. Arrumei um cantinho sossegado e pernoitei. Ninguém veio me proibir de ficar ou me expulsar dela não. 
- Estranho.
- Estranho é você ficar perdendo nosso tempo com perguntas sem sentido ao invés de se despedir de mim decentemente.
- Tem razão. Desculpe-me. Você tem mesmo que ir?
- Claro que sim! Antes que minha mãe mande alarme para os quatro cantos de Azagaia. E tenho minhas responsabilidades também. Prometi a meu pai que não deixaria mamãe sozinha e me sinto mal em não cumprir minha promessa. Sabe que o filho mais velho tem muitas responsabilidades e eu não posso me esquivar delas.
- Entendo. Isso significa que passaremos esses anos de espera sem outras visitas?
- Eu não suportaria. Darei um jeito de voltar. Se não for possível deixar minha família sem minha proteção eu posso conversar com meu pai e ele mandará um de seus empregados para me substituir.
- Você fala como se corressem perigo. O que seu pai faz de tão importante para que vocês tenham que tomar tanto cuidado?
- Hoje não tenho tempo para te contar sobre minha família, mas teremos essa conversa futuramente.
- Não me diga que você também tem a triste mania de me fazer mistério?!
- E quem mais faz isso com você, meu tesouro?
- Meu pai é um deles. E você acaba de falar igualzinho a ele.
- Hum, interessante. 
- Preciso descer. Meu avô está me esperando e vai desconfiar da demora. Promete que volta logo?
- Tem minha palavra.
Saí do quarto com aquela sensação de que deixava minha felicidade para trás, mas tinha a esperança de que Daniel poderia voltar logo e seria mais um dia de sonho a seu lado. 
Vovô estava me aguardando na sala como Berenice falou, e sua aparência era a de alguém impaciente.
- Desculpe a demora, vovô. Hoje é um daqueles dias em que eu não gostaria de ter saído do quarto.
- Está indisposta? Algum problema?
- Não. Só uma vontade que passou. Diga-me qual será a aventura de hoje?
- A senhorita já deve imaginar...
- Ferus. Ainda não sei como poderei conhecer um homem que deveria estar morto há anos, mas tudo bem.
- Sente-se que precisamos conversar antes do encontro.
Obedeci ao meu avô pensando na história mirabolante que ele teria que me contar para explicar um fenômeno impossível de ser explicado: um cara de mais de duzentos anos com a aparência de um rapaz de quase trinta e com a vida toda pela frente. Meus pensamentos fugiram rapidamente para Daniel, o que ele estaria fazendo, como faria para voltar e quando isso seria. Só voltei à sala da fazenda quando ouvi meu avô dizer meu nome.
- Você está prestando atenção, menina?
- Desculpe-me vovô, eu não acordei ainda.
- Sei, mas vamos ao que interessa. Você já sabe da existência de Ferus e de que sua aparência demonstra que ele possui muito menos idade do que na verdade tem. Seu encontro com ele não foi dos melhores, mas a culpa foi minha que não a alertei sobre o acordo que temos com os planicianos. 
- Vovô, quais são as pessoas que podem entrar na Floresta Descomunal sem que Ferus tenha o direito de ferir, ou seja lá o que for que ele faça?
- Os planicianos e os que tem a autorização deles. Por que pergunta?
- E se uma pessoa vem até aqui e atravessa a Floresta por engano?
- Ela corre o risco de sofrer nas mãos de Ferus, mas ele pode simplesmente deixá-la passar em paz. A decisão é dele. 
- Entendo. Eu não o peguei com bom humor naquele dia.
- É possível, mas vamos ao final disso. Quero que entenda porque precisa conhecê-lo. Os planicianos são os guardiões do segredo da Pedra Marcada. Foram eles que guardaram nela a chave que só a escolhida pode obter a fim de tirar de dentro da pedra o que ela protege com tanto cuidado. Ferus vive há anos esperando que essa menina apareça e o liberte de uma vida longa demais para ser feliz. Ele está condenado a perder os que ama ano após ano, sem o direito de se reunir a eles. Vamos até a tribo para que ele possa averiguar se você é essa menina.
- E como ele saberia? Não me reconheceu ao me ver na floresta..
- Isso nós só descobriremos lá. Pronta?
- Acho que não.
Vovô soltou uma gargalhada de fazer vibrar meus ouvidos e uma onda de arrepio percorreu meu corpo. No mesmo instante percebi que estava ficando toda dormente como jamais havia ficado em toda a minha vida. Tinha medo da resposta de Ferus. Ser a escolhida seria uma honra, mas alguma coisa me dizia que eu estaria condenada a viver longe do meu amor.