I – Introdução.
Não sei quanto tempo fiquei parada,
braços cruzados, pernas levemente afastadas. Poderia ter sido um minuto ou uma
hora, estava tão mergulhada em meus pensamentos que não vi o tempo passar; só
sentia a brisa fresca do mar batendo em meu rosto, embolando as pontas dos meus
cabelos. Sempre que me sinto angustiada ou quando estou triste, ou simplesmente
quando não posso fugir de tomar uma decisão venho ao Campo dos Refugiados – o
nome não poderia ser mais apropriado – e me esvazio de tudo para me ocupar
apenas do que é essencial no momento. Olho para as ondas batendo nas pedras, a
espuma desaparecendo em segundos, fecho os olhos e me concentro no som que vem
delas. É impressionante constatar o quanto o mar me acalma. Sinto tanta
segurança no barulho das águas se movendo que não consigo resistir e chego mais
para a ponta das pedras, ouço uma voz me chamar atrás de mim, mas antes que
pudesse discernir seu rosto sou puxada violentamente para o mar. Tento me
segurar, mas só o que consigo é deixar as marcas dos meus dedos no limo sobre
as pedras. É inevitável que eu afunde então me lembro que a maneira mais rápida
de uma pessoa se afogar é entrando em desespero. Deixo a corrente me levar até
a força que me empurra para o fundo diminuir, a claridade do sol denuncia onde
fica a superfície e uso toda a energia que me resta para nadar em sua direção.
Para minha surpresa, uma camada espessa de vidro transparente impede minha
passagem. Procuro uma saída, mas o mar está todo coberto de vidro. Desesperada,
na certeza de que não tenho mais saída, começo a me debater e engolir água,
aquela água salgada entra por minha boca e nariz como se fosse fogo, ardendo e
arranhando tudo por onde passa. Em questão de segundos sinto que estou perdendo
os sentidos, mas algo dentro de mim insiste em lutar. Olho para o alto como
última tentativa de sobrevivência, dando murros contra o vidro para chamar a
atenção da única pessoa parada nas pedras, no exato lugar de onde caí. Ela vira
o rosto na minha direção, impassível, e só então me dou conta de que a pessoa
sou eu.
Acordei assustada, o corpo embebido
em suor, já é de manhã e parece que dormi durante meia hora no máximo, meu
corpo precisa descansar, mas minha cabeça não relaxa. Há meses venho sofrendo
de insônia e tendo esse mesmo sonho de que estou me afogando e não tenho
escapatória, desde que recebi a notícia de que minha vida mudaria drasticamente
pela segunda vez. A primeira foi há muitos anos, quando eu era apenas uma
garotinha...
II – A História de Amor Mais Linda de Azagaia.
Quando nasci, o Carvalho do Limite
já não separava Cabeceira do Rio Seco da Terra das Rotas Diagonais. Em seu
lugar havia uma pedra com a inscrição gravada em tinta branca:
O homem aprovado é um homem feliz.
Os forasteiros não sabiam o que
significava essa frase, mas os moradores de Cabeceira davam a ela a importância
que os gregos davam aos oráculos. Avistar a pedra pela perspectiva de
quem entra na cidade equivale a receber um diploma com mérito.
Terra das Rotas Diagonais é o
nome que se dá a uma extensa planície ao sul de Azagaia, que circunda as
cidades de Tornados e Cabeceira do Rio Seco. Nela os ventos vespertinos sopram
com energia, formando sons assustadores quando o sol começa a se por. A
extensão é incalculável, pois se pode atravessá-la em oito dias em alguns
pontos ou levar meses em outros. Também não há como consultar uma rota segura,
porque todos os que conseguem atravessá-la esquecem-se do caminho percorrido no
instante em que cruzam suas fronteiras. Mas há um detalhe mais importante que
todos os outros quando o assunto é enfrentar a Terra das Rotas Diagonais,
qualquer que seja o caminho percorrido. Não há como atravessá-la em linha reta
ou fazendo ziguezagues, não há liberdade em seus domínios, o viajante que
quiser chegar ao seu destino são e salvo deve traçar uma rota diagonal e
obedecê-la. De outra sorte, ele se perde e morre antes de conseguir se lembrar
quem é ou o que faz ali.
Quem me deixou a par de todas as
histórias envolvendo a Terra das Rotas Diagonais e a região de
Azagaia foi meu pai. Todas as noites, antes de dormir, ele contava um pedaço do
que considerava a história de nossa origem. Eu bebia suas palavras com a
inocência e a curiosidade que só as crianças tem. Além do mais, aquele era o único
momento em que meu pai era só meu e de mais ninguém. Cada vez que eu
acrescentava mais informações às pesquisas que ele fazia sobre a vida de nossos
ancestrais mais próxima a ele me sentia. Por isso, quando meu pai me mandava
dormir eu não discutia, cumpria o ritual diário a caminho da cama, parando
somente para puxar da estante da sala um livro bem grande, com a capa azul
escura e estrelinhas de tamanhos diferentes salpicadas que imitavam o céu da
noite. No centro havia uma lua cheia, e em volta dela o título em letras
prateadas: Histórias para ficar acordada – a verdade sobre Azagaia. Esse não era o tipo de leitura que
fazíamos na escola. Não era a versão oficial, o que a tornava muito mais
divertida e consultada. Eu possuía outro motivo particular para manter esse
momento vivo. É óbvio que a essa altura já conhecia todas as histórias de cor,
mas não cansava de ouvi-las porque isso mantinha meu pai em casa. Ultimamente
ele andava muito ocupado e trabalhava tanto que, às vezes, me colocava para
dormir e saía outra vez. Nesses dias eu ouvia mamãe chorar baixinho e imaginava
que papai era caçador de feras bestiais e corria grande perigo lá fora. Essa
era a única explicação possível para minha cabecinha infantil, afinal de
contas, o que poderia ser tão grave a ponto de deixar minha mãe tão abalada?!
Isso me deixava nervosa, com medo de que ele não voltasse, mas não podia encher
minha mãe de perguntas, alguma coisa dentro de mim dizia que isso a faria
piorar. Em alguma dessas noites eu ia para a cama de minha mãe e fazia carinho
em seu cabelo até uma de nós dormir. Geralmente era ela. Não sei como, no dia
seguinte eu sempre acordava na minha cama, e tudo dava a impressão de eu haver
sonhado.
- Você vai se atrasar para a
escola, Lílian! Será que todo dia tem que ser assim? Ficou até tarde lendo,
mocinha?
- Não, mamãe. Eu estava na sua...
- Não importa! Já falei com seu pai
que ele está te acostumando muito mal, com essas leituras fora de hora. E deixe
de conversa. Você não sabe conversar e se arrumar ao mesmo tempo. Pegue sua
mochila que eu vou te levar.
- Mãe?
- Oi, Lílian. Que é agora?
- Não é nada, deixa pra lá.
A escola ficava duas ruas depois da
nossa, um quarteirão à frente. Eu poderia ir perfeitamente sozinha, mas meus
pais não permitiam. Ser filha única às vezes é um pouco frustrante. Os gêmeos
Paulo e Sérgio costumavam ir de bicicleta! Imagina! E Catarina morava bem mais
longe que eu e só andava sozinha.
Mas eu não era a única a ir acompanhada. Flora, minha melhor amiga, ia com a
babá. Eu pelo menos não tinha que passar por isso.
Fui em silêncio o caminho todo.
Provavelmente meus amigos já haviam chegado o que explicaria a ausência de
crianças na rua.
- Marina! Marina espere um minuto!
– Dona Domingas estava gritando na outra calçada. Todos os dias ela chamava
minha mãe e trocavam algumas palavras. A maior diversão daquela mulher magra,
de olhos saltados e cabelos sempre presos debaixo de um lenço estampado era
provocar minha mãe. Não se gostavam, mas a boa educação as obrigava a se
tratarem com cortesia.
- Essa não! Lá vem a fofoqueira da
rua tentar saber porque seu pai não dormiu em casa. – disse minha mãe.
- E você não está preocupada mãe? –
perguntei.
- Claro que não, meu bem. Eu sei
perfeitamente onde seu pai está e ele está ótimo!
- Bom dia! Olá Marina, fugindo de
mim?
- E por que eu fugiria de você,
Domingas?
- Estou brincando sua boba. Não
está de bom humor?
- Nem bom, nem ruim. Estou com o
humor de sempre. Você me conhece há anos e sabe que nunca fui muito espirituosa.
- Nem eu seria se fosse você.
- Dona Domingas? – eu interrompi- A
senhora não dormiu à noite? Por que está com umas olheiras enormes!
- Eu? Olheiras? Acho que dormi
pouco sim. Tenho que ir deixei alguma coisa no fogo. Até mais...
- Menina, você não é fácil – disse
mamãe, morrendo de rir – não sabe que ela tem verdadeiro horror às olheiras que
herdou de família?
- Claro que sei, mas estamos
atrasadas e ela não nos deixaria em paz de outra forma.
- Isso é verdade. Vamos!
Quando chegamos, seu Osvaldo já
estava passando o cadeado no portão. Ele sempre demorava a fechar porque sabia
que chegava atrasada, mas não faltava.
- Bom dia, menina Lílian! Bom dia
Dona Marina? Como vai seu Camilo?
- Bom dia Osvaldo. Vai bem,
obrigada. Mandou um abraço para o senhor.
- Mande outro. E diga-lhe que passe
lá em casa qualquer dia, tenho novidades que trouxe de Tornados.
- Digo sim. Lílian! O que está
fazendo aí de boca aberta? Vá para a sala!
- Sim mamãe. Até mais tarde.
- Até. E veja se não fica de
conversa na aula. Não quero Dona Arlinda fazendo reclamações novamente.
- Sim mamãe.
As aulas passaram rápido. Por isso
gostava de estudar de manhã. Na hora da saída quem me esperava era
papai. Corri em sua direção, o coração disparado.
- Olá, princesa!
- Oi papai. Você não estava em casa
de manhã.
- Não vamos falar sobre isso agora.
Quer tomar um sorvete?
- Mas antes do almoço? Mamãe vai
brigar com a gente.
- Não vai não. Hoje ela se atrasou
um pouco e deixou a gente tomar um sorvete, mas avisou que é só uma bola.
- Eu sabia! Tudo bem, melhor uma
que nenhuma.
- Também acho.
Fomos à sorveteria de seu Eusébio,
a única de Cabeceira. Escolhi o sorvete de Jabuticaba, meu preferido. Eu sabia
que alguma coisa estava acontecendo e que meu pai queria conversar comigo. O
sorvete era uma maneira de me compensar ou distrair, não sei. Só sei que aquela
foi a última vez que tomei sorvete de jabuticaba. Depois desse dia o sabor
sempre me enjoava.
- Lílian, precisamos conversar.
- Pai, eu acho que o sorvete me fez
mal. Preciso ir ao banheiro. Vamos para casa?
- Sim, meu bem, vamos. Você pode
andar?
- Acho que seria melhor você me
levar no colo.
- Você sabe que temos que
conversar, não sabe?
- Tá doendo minha barriga pai! Você
não entende?
- Venha.
Meu pai me levou correndo para
casa, mas percebi que minha reação doía mais nele que em mim. Fui chorando o
caminho todo e ele não falou mais nada. Quando entramos em casa minha mãe
perguntou o que ele havia feito e os dois começaram a discutir. Não adiantou eu
falar que foi alguma coisa que havia comido no colégio, percebi que não havia o
que fazer e resolvi deixar as coisas acontecerem. Quando eles viessem conversar
comigo da próxima vez eu os ouviria.
Quando meu pai foi me colocar para
dormir aquela noite percebi que a hora havia chegado. Não adiantaria chorar ou
inventar uma doença, não adiantaria fugir. A decisão já estava tomada e só o
que queriam era me avisar. Enquanto escutava os passos dele em direção ao meu
quarto pensei em quanto tempo eu voltaria a ouvi-los. Fiz um esforço enorme
para não chorar. A vida que eu conhecia estava acabando e eu era muito novinha
para entender que nada dura para sempre. Dentro de mim havia um desejo enorme
de negar tudo aquilo, mas eu sabia que seria inútil. A porta se abriu e o rosto
de meu pai apareceu com uma expressão de desconforto.
- Posso entrar mocinha?
- Pode. Onde está o livro?
- Hoje eu vou te contar uma
história que não está naquele livro, mas que deveria. É a história de amor mais
linda de Azagaia.
- Pensei que fôssemos conversar.
- Meu amor, você sabe que é a
pessoa mais importante do mundo para mim, não sabe?
- Acho que sim, papai.
- Não ache, estou dizendo que é.
Você acredita no seu pai?
- Acredito.
- Então escute a história que vou
lhe contar hoje porque é muito importante. Há alguns anos, um rapaz magrinho e
muito valente recebeu do pai uma missão muito especial. Ele precisava viajar
até uma cidade distante para levar uma carta secreta a um amigo de seu pai. A
carta só poderia ser entregue em mãos e o rapaz não poderia voltar até que
houvesse uma resposta. O moço ouviu tudo com atenção e partiu. Ao chegar ao
destino indicado foi recebido com festas e muita alegria. Foi convidado a se
hospedar na casa do homem a quem levou a carta até que esse estivesse pronto
para mandar uma resposta. No dia seguinte, ao passear pela propriedade, viu uma
moça ensinando a um grupo de crianças e se apaixonou imediatamente. Descobriu
que a menina era filha do homem a quem levou a carta e resolveu agradar-lhe até
que surgisse um momento oportuno para pedir-lhe a mão de sua preciosidade. O
rapaz pertencia a uma família muito respeitada em sua cidade o que o tornava um
excelente partido. Antes de conversar com o pai, porém, decidiu que falaria com
ela para saber se tinha chances. A moça correspondeu aos seus sentimentos, mas
avisou que estava prometida a outro e que seu pai jamais voltaria atrás de uma
palavra dada. Planejaram uma fuga e partiram dois dias depois. A viagem de
volta para a cidade do rapaz foi difícil e perigosa, pois estavam sendo
procurados pela família dela e não podiam usar as estradas conhecidas. Levaram
meses até que chegassem à casa do pai do rapaz, e a moça esperava uma criança.
Quando finalmente chegaram, não foram recebidos como imaginaram. Descobriram
que o noivo da moça era o irmão mais velho do rapaz e que a carta pedia que o
pai dela a enviasse para o casamento. Houve um rompimento entre as famílias por
causa da fuga e os amigos de tantos anos agora eram inimigos mortais. Pelo
costume local, a mulher passava a fazer parte da família do marido e seu
destino a eles pertencia enquanto fosse casada. Como castigo, os dois foram
banidos e deserdados. Agora estavam sozinhos. Apesar de todo o contratempo, o
casal viveu feliz por muitos anos e tiverem uma filhinha linda. Uma verdadeira
princesa...
Então meu pai se levantou, me cobriu, apagou a luz e se dirigiu até a porta. Senti um medo inexplicável e um aperto no peito. Não poderia deixá-lo ir sem ao menos perguntar o fim de tudo aquilo.
Então meu pai se levantou, me cobriu, apagou a luz e se dirigiu até a porta. Senti um medo inexplicável e um aperto no peito. Não poderia deixá-lo ir sem ao menos perguntar o fim de tudo aquilo.
- Pai?
- Pois não, meu bem?
- Como essa história termina?
- Ela ainda não terminou. Agora durma, minha princesa, amanhã
conversaremos.
Na manhã seguinte, desci para tomar
o café e encontrei meus pais na sala. Ele estava sentado no sofá, cotovelos
apoiados nos joelhos e as mãos segurando a cabeça. Mamãe estava de pé, os olhos
vermelhos e inchados, e uma expressão de quem não havia dormido. No chão ao seu
lado estavam várias malas, inclusive minha mochila cor-de-rosa.
- Oi querida! – meu pai quebrou o
silêncio me obrigando a olhar para ele.
- Mamãe? - chamei em busca de respostas.
- Venha tomar seu café Lílian, –
ela disse – seja boazinha porque a mamãe vai precisar de você hoje. Nós vamos
visitar o vovô e a vovó, vamos passar um tempo com eles. Você vai gostar.
- Mas mãe, e a escola? E meus
amigos? Não avisei a eles. Não quero ficar longe deles!
- Querida, não faça perguntas.
Prometo que conto tudo para você, mas isso não vai acontecer hoje. Seja
paciente e se comporte como a mocinha que você já é. Estamos combinadas?
Enquanto ela falava, eu podia
perceber o quanto sofria pela voz tremida e os olhos marejados. Pela primeira
vez na minha vida senti raiva do meu pai e me assustei. Tentei não pensar no
que estava acontecendo e entrei no jogo deles.
- Quero café com leite – falei,
enquanto andava em direção à cozinha.
Mamãe preparou meu café, mas antes
que eu tomasse me deu um comprimido dizendo que era para que eu não enjoasse na
estrada.
- Quanto tempo levará para
chegarmos lá? – perguntei.
- Algumas horas, se o tempo ajudar.
– mamãe respondeu.
De uma maneira constrangedora, agíamos
como se ele não estivesse ali. Como todas as manhãs nos últimos meses. Eu não
queria olhar em sua direção. Temia que estivesse sofrendo e isso me deixasse
dividida, ou pior, que não estivesse sentindo nada.
- Mãe?
- Oi querida?
- Como são o vovô e a vovó? Eles
vão gostar de mim?
- Eles vão adorar você, querida! Só
um louco não gostaria. Na verdade, mesmo sem te conhecer eles já te amam,
porque você é parte deles. Entende?
- Mais ou menos.
Mamãe riu da minha sinceridade.
- Fique tranquila. Acabou com seu
leite?
- Acabei.
- Vá escovar os dentes. O ônibus
sai em uma hora.
Eu estava curiosa para conhecer
meus avós, ansiosa por fazer minha primeira viagem, triste por minha mãe, com
raiva de meu pai e me sentindo errada por ter raiva dele. Tudo isso junto me
fazia sentir uma coisa estranha em meu peito, como se alguma coisa fosse
explodir. Pensei que fosse passar mal, depois percebi que era só vontade de
chorar. Se eu tivesse mais tempo choraria, mas estava louca de vontade de sair
dali.
- Lílian? – ouvi a voz de minha mãe
me chamando – Vamos menina!
As malas já estavam no carro. Não
parei em nenhum momento para olhar o que ficava para trás. O ônibus sairia da
praça principal em meia hora. Fomos em silêncio. Quando descemos o meu pai me
puxou e disse:
- Lílian, você é a pessoa mais
importante do mundo para mim. Não se esqueça disso.
- Então por que está me deixando
ir?
- É por pouco tempo. A gente vai se
ver logo.
- Promete?
- Prometo filha.
Fiquei com pena do meu pai. Quem
cuidaria dele? Embarcamos no ônibus e fiquei olhando pela janela. Acho que o
remédio que tomei para enjoo me deu sono porque dormi logo. Quando acordei
estávamos entrando na cidade de Poço das Almas, a cidade de minha mãe, onde a
história de amor mais linda de Azagaia começou.
III – Trevo da Sorte.
Quando o ônibus parou no pequeno
terminal rodoviário na área central da cidade pude distinguir entre as pessoas
que aguardavam o desembarque um homem alto, magro, com uns óculos quadrados e
bem maiores que os usuais. A seu lado, uma senhorinha rechonchuda e de olhinhos
espertos movia nervosamente as mãos cheias de anéis. Assim que os vi soube que
se tratavam dos meus avós. O rosto do homem era anguloso como o de minha mãe e
tinham a mesma cor de olhos. Ele também estava parado com as mãos cruzadas
sobre o peito da mesma forma como mamãe fazia quando se encostava ao batente da
porta da cozinha, bebendo seu café e olhando o horizonte como se esperasse
respostas.
- Olha os seus avós ali! Dona
Maurícia e Seu Silvestre não mudaram quase nada. – minha mãe falou apontando
para o casal.
- Eu sei quem eles são. – respondi
– E ela olhou para mim um pouco surpresa.
Descemos do ônibus e minha avó
correu em nossa direção, enquanto vovô caminhava lentamente. Pensei que ele
fosse nos tratar com hostilidade, mas estava enganada. Ao chegar mais perto de
mim, ele se abaixou e me ergueu no colo como se eu fosse uma pena dizendo:
- Finalmente estou conhecendo a
menina mais linda do mundo! – então se dirigiu a minha mãe – Como foi a viagem?
- Bem, obrigada.
Como ela ficou nitidamente
atordoada e seus olhos se encheram de água minha avó interrompeu:
- Ora, ora, o que temos aqui?
Deixe-me ver... O correio me trouxe uma encomenda bem grande... Hum, e ela tem
dentes! Ó meu Deus, é uma garotinha! – E rimos a valer, como se nos
conhecêssemos há anos.
O caminho para casa foi bem
comprido. Meus avós moravam em uma fazenda um pouco afastada do centro
comercial de Poço das Almas. A casa era enorme, branca e de janelas vermelhas.
Eu nunca havia visto janelas dessa cor. No caminho para a porta principal havia
uma alameda de carvalhos tão extensa que não se podia ver a entrada da
propriedade até que estivesse na metade dela. Fiquei fascinada com tantas
novidades, por todo lado podia-se ver árvores e em frente à casa havia um
pequenino lago artificial. Minha mãe me apontava algumas coisas e dizia o que
ainda permanecia desde os seus tempos de menina, mas a maioria delas era
novidade para nós duas.
- Vocês fizeram mudanças
maravilhosas aqui! – ela disse.
- Temos um administrador muito
competente. Quando dissemos a ele que você já trabalhou como professora aqui,
ficou muito interessado em reativar a escolinha. O que acha?
- Acho ótimo! Seria muito bom me
ocupar de algo que pudesse me distrair dos meus atuais...
- Bem, foi o que pensei. Acho que
eu não poderia discordar de você Marina. Não agora.
O carro parou bem em frente à
entrada da casa e logo apareceram rapazes para carregar as malas. Uma senhora
muito bonita e elegante, com os cabelos escuros presos num coque e grandes
olhos azuis, se colocou ao lado de minha avó como se esperasse alguma ordem.
- Tudo bem por aqui, Berenice? –
foi vovó quem perguntou.
- Tudo na mais perfeita ordem, Dona
Maurícia.
- Esta aqui é Marina, minha filha.
E essa boneca é Lílian, minha neta.
- Sejam bem-vindas! É muito bom que
estejam aqui – Berenice falou com um largo sorriso no rosto – Espero que a
viagem tenha sido agradável.
- Para mim foi ótima! – respondi –
Dormi o tempo todo!
- Foi muito agradável, Berenice.
Obrigada por perguntar.
- Vou levá-las aos seus quartos.
Devem estar ansiosas por um banho. O jantar será servido em uma hora.
- O que tem para comer? –
perguntei.
- Lílian! – mamãe me
repreendeu. – Não dê muito espaço a essa garotinha ou nunca mais
terá sossego na vida Berenice.
- Imagina! Teremos um ensopado de
frango com batatas e salada de feijão.
- Oh meu Deus! Parece que nenhuma
criança jamais comeu aqui!
- Menina Lílian – falou Berenice –
Terei um imenso prazer em ouvir suas sugestões para o almoço de amanhã. Quer
que eu mande fritar umas batatas para hoje?
- Não! – minha mãe interrompeu –
Ela comerá o que for servido.
- Ai, ser criança não é nada fácil!
- Você diz isso porque não tem uma
filha como a minha!
- Mamãe!
E caímos, as três, na gargalhada.
Depois do jantar demos um passeio a
pé pela fazenda, e enquanto caminhávamos pelos belíssimos carvalhos que vi na
chegada, dois pequenos vultos nos seguiam de longe. Tentei me aproximar, mas
cada vez que eu chegava mais perto eles desapareciam. Acabei me cansando de
tanto correr e vovô me distraiu com a notícia que me deu.
- Lílian, mandei buscar um presente
para você na cidade e ele chegará amanhã. Espero que goste, porque me deu um
pouco de trabalho.
- O que é vovô?
- É uma surpresa. Amanhã pela manhã
você descobrirá.
- Agora ela vai perguntar até
descobrir – disse mamãe.
- Não vai não. Você precisa
aprender a esperar Lílian. Tudo na vida tem seu tempo e antecipar as coisas só
nos traz frustração e arrependimento. Vamos combinar uma coisa, cada vez que
você perguntar sobre o presente atrasará em uma hora a entrega dele.
- Vovô, isso não é justo!
- É sim, bem razoável. Você que ou
não o presente?
- Claro que quero!
- Então saberemos quanto o deseja
pelo controle que terá de sua ansiedade.
- E eu que pensei que nada poderia
ser pior que ensopado e salada de feijão!
Quando amanheceu a primeira coisa
que fiz foi andar pela casa a procura de um sinal do presente. Não havia nada.
Meu avô, que me observava, perguntou:
- Procurando alguma coisa menina?
- Não, nada. – respondi.
- Então vá se arrumar para o café.
Eu e sua mãe vamos cavalgar e gostaríamos que você nos acompanhasse. Você quer?
- Sim. Só que eu nunca...
- Não se preocupe, você vai no meu
colo.
Tomei o café correndo e me arrumei
para o passeio. Estava agitada com a possibilidade de fazer uma coisa nova. Mas
o que impressionou não foi estar sobre um cavalo de verdade. Nunca na minha
vida poderia imaginar que minha mãe fosse tão linda. Parecia uma amazona, com
os cabelos soltos até a cintura balançando ao vento. Em Cabeceira eu não sabia
que mamãe poderia rir tão despreocupadamente, parece que a vida na fazenda era
tudo o que ela precisava. Assim como eu, ela precisava do carinho dos pais. Só
meu avô estava mais feliz que ela. A impressão que tive era a de que ele
realizava um desejo antigo. Pena que a felicidade dele me deixasse longe de meu
pai. Como ele estaria agora? Como ele consegue ficar longe de uma mulher tão
linda como a minha mãe?
Ao voltarmos para casa minha avó
veio nos receber à porta com uma cesta nas mãos. Olhei para vovô e ele fez
sinal que sim com a cabeça: era o meu presente! Quando vovó colocou a cesta no
chão percebi que se tratava de um cachorro. Uma bolinha de pelo preta com dois
olhinhos redondos.
- Oh meu Deus! É um cachorrinho! Um
cachorro mãe! Eu sempre quis ter um cachorro!
- Que bom que gostou – disse vovô –
Fico feliz em saber.
- Obrigada vovô! Estou muito feliz,
muito mesmo. Ele já tem nome?
- Não. Você vai ter que arranjar
um.
- Já tenho um. Sempre quis ter um
cachorro chamado Trevo. De que marca ele é?
- Não é marca filha, é raça. - vovô
respondeu sorrindo – É um labrador. Tem poucos dias, por isso você precisa
tomar muito cuidado. Vamos arranjar uma coisa que sirva de cama. Por enquanto
ele terá de ficar em seu quarto, até ter tamanho suficiente para dormir lá
fora.
Aquele cachorro preencheu meus
primeiros dias na fazenda. Foi muito inteligente da parte do meu avô me dar
algo com o que me ocupar, algo pelo qual eu seria responsável. Trevo foi meu
cachorro da sorte.
Enquanto Trevo me distraía, a reforma
da nova escolinha para os empregados da fazenda ocupava o tempo ocioso de minha
mãe. Ela planejava ensiná-los a ler, escrever e fazer as quatro operações
básicas da matemática, a exemplo do que fez comigo. A vida na fazenda, com meus
avós, minha mãe e Trevo, foi tão intensa e atraente que não senti a falta de
Cabeceira da maneira que pensei que sentiria. Sentia falta de meu pai, mas
também estava zangada por ele ainda não ter vindo nos buscar, e agora eu quase
nem queria mais isso.
No terceiro dia após a chegada de
Trevo, resolvi dar uma voltinha com ele dentro da cesta para apresentá-lo a
fazenda onde iria morar. De longe vi duas crianças brincando perto da vila dos
empregados e resolvi saber do que se tratava. Descobri que eram filhos de
Orestes, o motorista de vovô, e que se chamavam Sara e Felipe. Depois fiquei
sabendo que eles eram os vultos que vi entre os carvalhos na noite do passeio.
Logo nos tornamos amigos e eles me ajudaram com Trevo e conquistaram meu
coração. Foi bem mais fácil me adaptar com a companhia deles. Tínhamos o
costume de nos reunir todas as noites debaixo dos jacarandás que ficavam nos
fundos da propriedade, bem próximos à entrada da Floresta Descomunal. Felipe
nos contava histórias terríveis de pessoas que desapareceram depois que
desafiaram a floresta, mas dizia que as crianças eram poupadas. De acordo com
ele, Azagaia era um país impossível de ser deixado. Muito tempo depois descobri
que o problema não é deixar Azagaia, mas sim encontrá-lo novamente.
- Lílian, você teria coragem de ir
à Floresta Descomunal comigo qualquer dia? – perguntou Felipe.
- Que ideia é essa, Felipe? – Sara
perguntou assustada.
- É claro que eu teria – respondi –
Posso jurar que não passa de uma floresta como outra qualquer. Pode marcar o
dia e a hora. A não ser que seja só conversa sua...
- Amanhã, depois do almoço.
- Fechado.
- Fechado. E quem vai entrar
primeiro?
- O último a chegar à sede da
fazenda contando de agora!
Disparamos a correr na direção da
fazenda, o vento jogando meus cabelos nos olhos, Trevo para trás com Sara. Eu
estava disposta a não permitir que Felipe me ganhasse porque podia apostar que
ele não teria coragem de ser o primeiro na floresta. Mas uma coisa que vi me
fez estancar de repente. Uma coisa não, uma pessoa. Lá estava ele, sentado nas
escadinhas de pedra que davam acesso a entrada principal.
- Papai?!
IV – Quem é Daniel
Castilho?
Sempre
tenho o mesmo sonho. O do mar envidraçado que me aprisiona na imensidão de água
e tenta me matar. Esse sonho só me visita em tempos de estresse, quando tenho
que tomar uma decisão que afetará minha vida, ou quando alguém já fez isso por
mim. Ultimamente esses dias tem se tornado longos demais. Tenho dezesseis anos
e uma história para contar. Aqueles dias na fazenda foram a base para a vida
que eu teria, mas as férias com meu pai foram o início da vida que quero ter...
Quando vi meu pai parado em frente
à casa de meus avós meu coração tomou a velocidade do vento. No mesmo instante
dois sentimentos conflitantes tomaram conta de mim e adormeceram meus braços
até as pontas dos dedos: a felicidade de rever meu pai e imaginar que cumpriria
sua promessa de nos levar de volta e a dor de outro rompimento, com a vida que
eu já amava e que fazia mais sentido que tudo até ali. Fui em direção ao meu
pai, mas sem correr. Ele notou que não seria fácil como antes, quando eu era
sua garotinha e confiava em suas promessas. Enquanto me aproximava, os
pensamentos se misturavam em minha mente como uma receita dos bolos de vovó, e
eu não fazia ideia do que sairia de minha boca quando fosse hora de falar.
Tinha vontade de tantas coisas diferentes, de gritar, de chorar, de bater.
Estava preparada para mostrar a ele que não é com um beijo na testa que se
compra uma menina com sentimentos sinceros como os meus, mas quando me
aproximei o suficiente para ver os detalhes percebi que ele estava muito
machucado, com cortes no rosto e manchas roxas nos braços e queixo. Tudo o que
eu havia pensado em fazer ficou esquecido e voltei a correr, pulei em seu colo
e comecei a chorar.
- Ai filha, devagar, seu pai está
um pouco quebrado.
- O que aconteceu pai? O que foi
que te machucou desse jeito?
- Você sabe, nunca fui muito bom em
fazer comida e sem sua mãe...
- Ah não! Não me venha com essa.
Alguma coisa séria aconteceu com você e vai me dizer o que foi.
- Olha só minha menina com o
jeitinho da mãe quando é contrariada! Foi um acidente de trabalho, nada demais.
- Meu Deus! Você deve trabalhar
para um lobisomem ou algo parecido!
- E se for?
- Papai! Eu não sou mais uma
criança não! Daqui a duas semanas faço dez!
- Estou vendo. Você cresceu
bastante.
- Já viu a mamãe?
- Não. Sua avó me disse que ela
está na escolinha com um tal de Olímpio medindo o espaço para colocar mais
bancos.
- Ah sim, o Olímpio é o namorado
dela.
- O que?
- O namorado dela. Vocês não estão
mais casados, que mal há?!
- Quem te falou que não somos mais
casados? Onde é essa escolinha? Vou buscar sua mãe e ela terá que me explicar
direitinho...
- Não precisa me buscar em lugar
nenhum – minha mãe apareceu do nada e deu um susto na gente – Como você está
Camilo?
- Bem. Que história é essa de
Olímpio ser seu namorado?
Mamãe olhou pra mim com uma cara de
quem estava pensando em quantas chineladas me daria e eu percebi que era hora
de procurar outro lugar para ficar.
- Vou até a cozinha e já volto.
- Não fuja agora não mocinha. Temos
que conversar.
- Deixe-a ir Marina. Preciso mesmo
falar com você.
Aproveitei a distração dos dois e
corri para os braços de vovó. Entrei na cozinha e contei o que fiz pensando que
ela me daria uma bronca, mas ela riu e respondeu:
- Fique tranquila, um pouco de
ciúmes não faz mal a ninguém.
- Vovó?
- O que foi minha querida?
- Nós vamos voltar para Cabeceira?
- Você tem que perguntar isso aos
seus pais. É o que você quer?
- Não sei.
- Entendo. Vamos? Ajude sua velha
avó a servir um lanche. Depois a gente se preocupa com as coisas mais sérias,
agora vamos comer uns biscoitinhos de polvilho. Venha e traga os guardanapos.
Sentamos para o lanche da tarde e
conversamos como uma família comum. Meu avô estava viajando o que deve ter
facilitado um pouco as coisas. Apresentei Trevo a papai e ele ficou feliz em
saber que finalmente eu tinha um cachorro. Quando comi o último pedaço de bolo
que cabia em minha barriga, meu pai perguntou:
- Filha, você gostaria de passar um
tempinho comigo em Cabeceira?
- Nós não vamos voltar? Quer dizer... Não voltaremos definitivamente?
- Não, ainda não. Você e sua mãe
ainda irão morar com seus avós por um tempo. Agora só o que posso fazer é
levá-la para umas férias. Você gostaria?
- E a mamãe?
- Eu não posso Lílian. Tenho um compromisso
com as crianças daqui. As aulas ainda não acabaram e elas já estão atrasadas
para as provas escolares. Você vai com seu pai e volta em três meses.
- Posso levar Trevo? – perguntei.
- Claro querida! – mamãe falou –
Você não terá que deixar seu cachorro. Ele vai para onde você for.
- Tudo bem então. Quando partimos?
- Amanhã bem cedo. – disse papai –
Seus amigos estão te esperando ansiosos.
Só quando papai falou em meus
amigos foi que me lembrei da saudade louca que sentia de Flora, Patrícia,
Michele e os meninos. Até a Catarina eu queria ver. Quase não dormi aquela
noite. No dia seguinte saímos enquanto ainda estava escuro. Deixei um bilhete
para vovô e outro para Sara e Felipe. Coloquei Trevo numa caixa de papelão no
chão da caminhonete de papai e minha mochila no banco de trás. Mamãe me deu o
remédio para enjoo e um travesseirinho para me recostar. A vida no campo é
assustadoramente silenciosa de madrugada. Tive a sensação de que estava
abandonando minha mãe e chorei. Papai me olhou com uma expressão de que sabia o
que eu sentia e perguntei:
- Será sempre assim? Vocês nunca
mais ficarão juntos?
- Durma querida, a viagem é um
pouco longa.
Acordei quando meu pai estacionava
o carro em frente a nossa casa. Trevo começou a latir e seria impossível qualquer
pessoa continuar dormindo com o alvoroço dele. Desci do carro e papai continuou
porque precisava comprar nosso almoço. Foi até melhor entrar sozinha em casa.
Uma sensação estranha de que não pertencia mais aquele lugar me invadiu. Trevo
ia de um cômodo ao outro cheirando tudo e latindo feito um louco. Marcou o
território perto da geladeira e da porta da sala, e continuaria pela casa toda
se eu não tivesse dado uma bronca daquelas nele. Fomos para o quarto e eu pude
me acostumar ao local até a volta de papai. Aquela casa sem mamãe não era nada,
não era um lar, só um monte de paredes e móveis. A porta da sala abriu e papai
entrou acompanhado.
- Olha quem encontrei pelo caminho
Lílian!
- Flora!
- Lili! Quanto tempo!
Abracei minha amiga com força e
quase não tive vontade soltá-la. Papai preparou a comida e Flora almoçou com a
gente.
- E Michelle? Sérgio? Leonardo?
Como estão todos? E as novidades?
- Todos vão bem. Que bom que vai
passar seu aniversário aqui! Pode deixar a festa por minha conta. Posso fazer
na minha casa Seu Camilo?
- Só se eu for convidado.
- Claro que sim!
- Então está autorizada a festa.
- Flora?! – perguntei – Tive a
impressão de que a casa velha de Dona Augusta estava aberta quando passamos.
Algum fantasma resolveu mostrar as caras?
- Não! Nada disso. Tem uma família
morando lá agora. A mãe parece uma princesa de tão linda. Não sei o nome dela.
E tem dois meninos. O mais velho é amigo de Sérgio e Paulo, o nome dele é
Daniel; o mais novo é Davi e é muito engraçado. Você vai gostar deles, são muito
legais.
Papai apareceu na ponta da mesa com
um pote enorme de sorvete de graviola.
- Vocês querem meninas?
- Queremos! – respondemos juntas.
- Flora, porque não dorme aqui
hoje?
- Posso? Adoraria.
- Papai?
- Quer que eu peça a sua mãe Flora?
- Se o senhor puder?
- Comportem-se então. Vou até a sua
casa e volto em dois minutos.
Flora gostou muito de Trevo e ele
dela. Pareciam amigos de muitos anos. Os cachorros conhecem as pessoas.
Passamos a noite conversando sobre Poço das Almas, sobre Sara e Felipe, meus
avós, a Floresta Descomunal...
- E então, ela é assustadora como
dizem?
- Nada. Achei até uma floresta
simpática. Mas não entrei nela ainda. Não sei lá dentro como é.
- Dizem que as coisas acontecem à
noite.
- Pode ser. Um dia você vai me
visitar e entraremos lá juntas.
No dia seguinte acordamos tarde e
com muito sono ainda. Sempre me arrependo de dormir tarde pela manhã, mas na
hora me parece uma excelente ideia. Tomamos café e fomos para a rua. Eu estava
ansiosa por rever meus amigos e, como era oficialmente o primeiro dia das
férias sabia que os encontraria na praça em frente à sorveteria e não me
enganei. De longe os gêmeos me viram e gritaram:
- Lílian? Olha a Lílian ali gente!
Foi divertido rever a turma porque
estavam crescidos e tinham histórias para contar de coisas que eu nem imaginava
que aconteceriam enquanto estive fora. Michelle foi com o pai até a pedra que
marca a divisa de Cabeceira com a Terra das Rotas Diagonais. É um lugar
turístico entre os cabeceirenses. Leonardo ganhou uma tartaruga de estimação,
os gêmeos ficaram doentes e Catarina ganhou uma irmãzinha que não era filha da
mãe dela. Mas um assunto toda hora voltava a boca de todos como se um meteoro
tivesse passado dando piscadelas para cada um deles: Daniel Castilho.
- Eu já sei. Está morando na casa
velha, a assombrada. Vai ver é um fantasma!
- E você? Quem é? – uma voz de
menino falou às minhas costas. Quando me virei vi um garoto alto, de cabelos e
olhos castanhos e os dentes mais brancos que já vi na vida. Vestia uma blusa
xadrez meio antiga para um moleque e um short jeans bem surrado. Percebi de
quem se tratava porque era o único que não conhecia e pelo silêncio incômodo
que se instalou entre meus amigos. Sérgio foi quem nos apresentou.
- Lílian, esse é Daniel Castilho.
Daniel, essa é Lílian, uma amiga nossa.
- Grande coisa – ele disse. E ao
invés de ir embora, ficou me encarando como se esperasse minha reação.
- Ah sei, o fantasma que vocês me
falaram. – E peguei o braço de Flora para sair correndo dali. Quando estávamos a uma distância segura, Flora parou e me colocou contra a parede.
- Lílian! – disse ela. – Que foi aquilo? Você não foi nada educada...
- Eu?! Ele me chamou de
insignificante! Quem é esse Daniel Castilho? Algum rei? Quem ele pensa que é?
- Mas Lílian, você que chamou o
garoto de fantasma primeiro! E ele não disse que você é insignificante.
- Não chamei não. Eu disse para
vocês que ele deveria ser um fantasma. Além do mais, foi muita grosseria dele ouvir.
Passamos a tarde separadas dos
outros porque eu não queria mais ver o Daniel nem que pintassem ele de sorvete
de chocolate. Fomos para minha casa e brincamos no quintal com Trevo. Depois
Flora foi embora e eu fiquei pensando em Daniel com uma raiva que me fez morder
o canto da boca até sangrar. Papai veio ao meu quarto contar histórias, mas eu
não conseguia ouvir uma palavra. Só pensava no menino de dentes brancos e
cheiro de roupa lavada que me tratou como se eu não fosse nada. O que foi que
fiz de tão grave? Estava fazendo uma brincadeira. Será que ele não tem senso de
humor?
Os dias se passaram bem rápido e
logo chegou o dia de minha festa. Acordei com uma caixa enorme em cima da cama.
Achei que fosse o presente de papai, mas tinha um carimbo de Poço das Almas.
Abri correndo e fiquei muito feliz. Vovó mandou um vestido rosa, vovô uma
boneca e mamãe um diário novo. Sara e Felipe mandaram bilhetinhos e uma flor de
jacarandá. Até Berenice mandou um presente: compotas de damasco. Tomei o café e
papai me chamou para dar uma olhadinha no quintal. Lá estava o meu presente:
uma bicicleta novinha em folha! Acho que meu aniversário de dez anos foi um dos
dias mais felizes de minha vida. Passei o dia aproveitando meus presentes e
esperando a hora da festa.
- Pai? Vamos! Não quero chegar
atrasada.
- Você é muito apressada Lílian.
Ainda são seis horas e sua festa só começou há meia hora. Que horas Flora disse
para chegar?
- Não importa. Quero aproveitar
tudo e ver quem está chegando. Não consigo ficar aqui esperando a hora certa.
Vamos!
- Está bem. Pode ir andando que eu
já chego. Tenho que terminar minha barba. Vou acabar fazendo mais um corte no
rosto com você me chamando toda hora.
- Estou indo!
Atravessei a rua correndo e já ia
virar a esquina quando ouvi alguém me chamar. Não acreditei no que vi. Daniel
todo arrumado com uma flor na mão vindo em minha direção.
- Feliz aniversário! – disse
estendendo a flor para mim – A Flora me convidou. Paz?
- Por mim... – falei, fingindo não
me importar.
- Posso te acompanhar?
- Pode.
Fomos até a porta da casa de Flora
em silêncio. Eu estava tão nervosa que minha boca estava seca. Ele parecia
tranquilo. Quando chegamos e Catarina nos viu entrar fiquei tão desnorteada que
falei sem pensar:
- Você até que é agradável para um
fantasma!
- E você bem pequena para uma
menina de dez anos.
Quando Flora veio me dar os
parabéns eu estava rindo do que acabava de acontecer. Minha amiga foi a
primeira que soube.
- Gosto dele Flora. E acho que ele
gosta de mim!
V – Descoberta.
Depois de minha festa de
aniversário, Daniel e eu passamos a ser mais cordiais um com o outro. Nos
cumprimentávamos quando estávamos no mesmo grupo, mas isso era difícil de acontecer
porque ele quase não saía de casa. Meu interesse por ele só aumentava. Acho que
toda garota gosta de um amor complicado e não correspondido. Quanto mais
difícil era vê-lo, mais meu coração ansiava por esse momento. E quando ele
aparecia era como se o próprio sol saísse de trás das nuvens e viesse
especialmente para mim, para alegrar meu dia e aquecer meu coração. O primeiro
amor é uma coisa muito engraçada. A gente ainda não entende que o sofrimento da
espera é parte importante da conquista, e fica naquela agonia de realizar o que
tem tempo certo para acontecer. Em minha busca incansável por respostas, por
qualquer coisa que me desse esperanças, perguntei um dia a Sérgio o motivo da
ausência do amigo. Acreditava que Sérgio saberia por que era o único que
frequentava a casa dos Castilho.
- Daniel estuda a maior parte do
tempo. – ele respondeu – Vive rodeado de livros da história de Azagaia e de
outros assuntos que não me interessam. Também tem um professor de guerra, que
ensina desde diferentes lutas até as histórias das guerras de Azagaia e da Ilha
do Véu. É um cara estranho esse professor, mas muito gente boa.
- E por que motivo o Daniel precisa
saber sobre essas coisas? Nunca vi ninguém estudar nada disso!
- Olha Lílian, não sei o motivo de
tantos estudos, mas sei que ele leva isso bem a sério. Se você não quiser
arrumar mais confusão é melhor mostrar respeito pelo que ele faz. O Daniel é
mais velho que você uns três anos e é um garoto sério. Talvez ele seja assim
porque não tem um pai por perto. De qualquer forma, para conquistar sua amizade
é preciso mostrar interesse e levar as coisas menos na brincadeira.
- E quem disse que me interessa? –
respondi automaticamente.
- Bem, eu avisei.
Ouvi o conselho de Sérgio apesar de
ter tentado parecer o contrário. Depois daquele dia pedi a papai para me contar
umas histórias de Azagaia.
- Filha, eu não faço outra coisa
desde que você nasceu!
- Não pai. Não quero mais ouvir
historinhas infantis. Agora quero saber das coisas que aconteceram de verdade,
das guerras, do que está acontecendo.
- E porque motivo você quer se
inteirar de coisas sérias? Posso saber?
- Porque sou uma menina curiosa.
Conta pai?
- Tá certo. Hoje à noite a gente
vai bater um papo diferente.
Não é preciso dizer que passei o
resto do dia roendo as unhas para que a noite chegasse. Uma coisa curiosa,
porém, aconteceu antes do início de minhas aulas sobre o mundo dos adultos.
Michelle me ouviu contando à Flora sobre o que meu pai havia prometido e falou:
- Que estranho, Lílian! Você não
sabe nada sobre sua origem ainda?
- Não entendi Michelle. O que eu
deveria saber?
- Deveria saber que só há uma
família Amaral aqui em Cabeceira, e que se seu sobrenome é igual ao deles você
pertence à linhagem dos governadores daqui. Meu pai me conta muitas coisas porque
é um costume de Cabeceira. Lembra que te falei que fomos visitar o limite da
cidade com a Terra das Rotas Diagonais?
- Sim, lembro. Que é que tem?
- Tem que você já devia conhecê-lo.
Lílian, Azagaia sempre foi uma terra de guerras e mortes. A última grande
guerra aconteceu um pouco antes da gente nascer. Depois disso o rei Amadeo
subiu ao poder na Ilha do Véu e entrou em acordo de paz com os governantes das
cinco cidades. Agora, o trono da Ilha do Véu está sendo ameaçado e tudo pode
mudar. Parece que tentaram matar o rei e seus filhos. A família real teve que
deixar a ilha e o rei está tentando descobrir quem quer tomar o poder.
Desconfia de nós, claro, mas meu pai me garantiu que não temos nada com isso.
- Meu pai já me contou essas
coisas, mas eu pensava que eram historinhas para dormir.
- Essa é boa! Em que mundo você
vive Lílian? Nas histórias para dormir os maus morrem ou se dão mal. Nunca
percebeu que as nossas nem sempre terminam bem?! Simplesmente porque não
terminaram ainda.
- Interessante. Eu achava que
crianças não deviam saber de coisas assim. Isso não é assunto para adultos?
- Deveria ser. Mas a paz em Azagaia
só vai ser conquistada através de uma jovem, que unirá as cinco cidades em um
país finalmente. Nossos pais nos contam as histórias desde cedo porque não
sabem quem é essa jovem e precisam nos treinar.
- Como uma menina poderia conseguir
uma coisa que ninguém pôde até hoje? Quem é essa garota?
- Não sei te responder a nenhuma
das perguntas. Só sei que gostaria muito de ser essa garota.
Quando cheguei a minha casa meu pai
estava fazendo o jantar. Olhei para ele com uma interrogação enorme no rosto e
ele logo percebeu que eu queria falar alguma coisa.
- O que está criando essas
ruguinhas na testa do meu amor?
- Pai? Hoje a Michelle me disse que
pertenço à família dos Amaral. Isso é verdade?
O rosto de meu pai ganhou uma expressão de preocupação. Percebi que ele recomeçou a falar um pouco contrariado.
O rosto de meu pai ganhou uma expressão de preocupação. Percebi que ele recomeçou a falar um pouco contrariado.
- É filha. É verdade sim.
- E por que nunca vamos a casa
deles e eles não falam com a gente na rua? Não estou entendendo nada. Pensei
que o senhor não fosse daqui.
- Vamos fazer o seguinte: jantamos
e depois conversamos sobre tudo o que você quiser saber. Certo?
- Tá bem. O que tem para o jantar?
- Fiz pizza. Se sua mãe estivesse
aqui me mataria.
- Ainda bem que não está. Amo
pizza!
Depois do jantar sentamos no sofá
da sala e papai começou a falar sem livros:
- Lílian, preciso que preste muita
atenção. Lembra quando te contei a história de amor mais linda de Azagaia na
noite anterior a sua partida?
- Claro que sim!
- Bem, está na hora de você ouvir a
história completa. Quando me apaixonei por sua mãe não sabia que ela estava
prometida ao meu irmão. Trouxe Marina para Cabeceira do Rio Seco pensando
em pedir ao meu pai para conversar com o pai dela e consertar as coisas para
todo mundo. Só que as coisas não saíram como planejei e fui expulso da família.
Seu avô e seus tios não falam comigo desde então. O pai de Marina também passou
muitos anos sem falar com a gente, mas quando você nasceu o coração dele
balançou e pode nos perdoar. Ele e sua avó vieram a Cabeceira para te conhecer
e tivemos uma longa conversa. Seu avô Silvestre não teve filhos e você é sua
única neta. Prometi a ele como condição para o perdão que você seria mandada
para lá assim que tivesse idade para entender que deverá substituí-lo no
governo da cidade quando ele morrer.
- Então você e mamãe não estão
separados?
- Não exatamente.
- E suas noites fora de casa?
Pensei que estivesse com outra pessoa.
- Não. Nunca vai haver ninguém pra
mim além de sua mãe.
- Ai pai, o Olímpio não é namorado
dela não. Falei aquilo pra te deixar com ciúmes e trazer a gente de volta.
- Eu sei. Sua mãe me explicou tudo.
Mas me deixe continuar. Você quer ou não saber de tudo?
- Quero! Claro que sim!
- Bem, ficou combinado que teríamos
você só pra gente até que fosse hora de te mandar para Poço das Almas. Consegui
adiar em dois anos sua partida, mas depois não tive mais argumentos.
- E por que não me falou?
- Pensei que isso poderia impedir
que você aceitasse bem seus avós. E eles não merecem que você os despreze. São
boas pessoas Lílian, amam você tanto quanto eu ou sua mãe.
- Pai?
- Fala minha pérola!
- É verdade que vai haver uma
guerra em Azagaia?
- Isso é outra história. Ainda não
podemos afirmar que haverá guerra alguma. Estamos lutando para que vocês não
herdem um país cheio de problemas como foi o nosso caso. No que depender de mim
sua vida será muito mais fácil que a minha. É obrigação dos pais proteger seus
filhos, uma obrigação e um prazer. O rei Amadeo está furioso porque tentaram
matar seus herdeiros. Eu também ficaria se estivesse no lugar dele. Mas acredito
que o inimigo esteja dentro de seu próprio castelo. A Ilha do Véu tem uma
extensão territorial semelhante à Azagaia e o acesso a ela é difícil porque é
cercada por cordilheiras. Não acredito que alguém daqui tenha se aventurado até
lá só para provocar a fúria de um rei que não nos causa dano.
- E quem é essa menina que terá que
unificar Azagaia?
- Você está bem informada mesmo,
hein Lílian Amaral? E falando difícil!
- Foi a Michelle que falou...
- Não sabemos ainda quem é essa
garota. Mas tenho uma forte suspeita.
- E quem seria?
- Isso eu não vou te dizer. Aliás,
nada do que conversamos pode ser dito a ninguém.
- Mas meus amigos sabem sobre essas
histórias...
- E não vão parar de falar nelas,
não é?
- Não mesmo.
- Lílian, você me lembra muito o
menino que eu era quando tinha a sua idade. Tenho muito orgulho de você filha.
- Eu também de você pai. Estava
triste porque pensei que tivesse nos abandonado, mas agora entendo.
- Jamais abandonaria as duas
pessoas mais importantes do mundo pra mim. Sem você e sua mãe minha vida não é
nada. Quando chegar o momento de você voltar para Poço das Almas, quero que
conte a seu avô a conversa que tivemos. Ele precisa falar algumas coisas
também. E quero que cuide de sua mãe.
- Pode deixar pai. Eu continuarei
vindo te ver?
- Sim. Todo verão eu irei te
buscar.
- Vou esperar por isso o ano
inteiro.
- Agora você quer ouvir a história
de como Azagaia foi fundada?
- Quero sim!
- Então pegue uma almofada e venha
para a varanda. Está fazendo uma noite incrível e não podemos perder isso.
VI – O
Encontro.
“Há muitos e muitos anos – papai começou a contar – nove homens entraram
em Azagaia fugidos de uma guerra terrível num lugar distante daqui. Seus nomes
eram: Capitão Feliciano do Amaral, Genésio Gutierrez, Doutor Amaranto, Tenente
Honório Figueiras, Edvaldo Santana Patrício Laurentino, Coronel Rodolfo
Justino, Aristides Gentil e Teodomiro Vargas. Algumas mulheres estavam
acompanhando o grupo, mas poucas resistiram à travessia da terra das Rotas
Diagonais.
Esses homens descobriram que se segurassem um punhado da terra de seu
país natal em uma das mãos durante o trajeto da Terra das Rotas Diagonais,
sairiam dela ilesos, e resolveram tentar. Qualquer coisa seria melhor que
continuar num lugar onde a morte os aguardava. Assim, entraram no território
que hoje compreende Azagaia apenas com as armas que tinham e a força para
recomeçar. Infelizmente, o destino de um homem não pertence somente a ele aqui,
e a guerra de que tanto fugiam os seguiu até Azagaia. O território era motivo
de uma disputa sangrenta de séculos e o Capitão Amaral e seus amigos foram
feitos prisioneiros de um homem chamado Ferus. Ferus era líder dos Planicianos,
e lutava contra os Continentais, liderados por Goshat, aparentemente por
território e poder. Os Forasteiros, como ficaram conhecidos Amaral e os outros,
passaram dois anos servindo a Ferus e ganharam sua confiança. Aprenderam o
idioma local e tomaram mulheres para si. Quando perceberam que o momento era
propício, sugeriram ao líder dos Planicianos que ele aceitasse a ajuda dos
forasteiros na guerra em troca de território e proteção contra os de fora. A
parceria entre os dois grupos foi acertada e os Forasteiros utilizaram suas
armas e técnicas de guerra para expulsar os Continentais e garantir a vitória a
Ferus. Agradecido aos estranhos, Ferus cedeu Azagaia e se retirou com seu povo
para a Floresta Descomunal. Os Forasteiros dividiram o território de acordo com
a participação de cada um nas batalhas e começaram a formar as cidades e um
sistema de governo independente baseado na ajuda mútua entre os líderes e na
preservação do poder entre os membros das famílias. Cabeceira do Rio Seco ficou
com o Capitão Feliciano Amaral, Poço das Almas com os Gutierrez, Tenente
Eusébio Figueiras com Açucena, que depois teve seu nome mudado para Arremedo
numa história que te contarei outro dia; Doutor Amaranto fundou Redenção e o
Coronel Rodolfo Justino, a cidade de Tornados. Azagaia começou assim.”
Ouvi aquilo tudo com curiosidade e
espanto. Na verdade, ainda pareciam histórias infantis para mim. Não conseguia
imaginar que pudessem acontecer de verdade. Meus pensamentos estavam voltados
para outros interesses agora, meu coração esperava por outra resposta, um pouco
mais difícil de obter: se Daniel, um dia, gostaria de mim como eu queria que
fosse.
No dia seguinte marcamos um
piquenique. Fomos todos, inclusive Daniel e Davi. O irmão mais novo de Daniel
Castilho era o oposto dele. Davi era um menino solar e alegre, sua presença
irradiava energia e espontaneidade. Os cabelos eram castanhos como os do irmão,
mas os olhos tinham um tom de verde tão claro que impressionavam quando ele os
fixava nos nossos por mais de dois segundos. Apesar de ser mais novo não era
muito menor em estatura, exatamente como Daniel, tinha uma postura imponente,
como se soubesse algo a seu respeito que o fazia diferente das pessoas comuns.
Definitivamente os irmãos Castilho eram muito bonitos e confiantes.
O piquenique estava ótimo. Foi no
Campo Permanente, onde costumavam ser os encontros dos namorados nos horários
impróprios para nós, crianças. Como não sabíamos cozinhar direito, papai pediu
à Dona Isaurinha para preparar uns biscoitinhos de Araruta e duas garrafas de
suco de carambola. O bolo de abacaxi da mãe de Flora é que estava delicioso,
mas nada se comparava à torta de maçã de Dona Celina Castilho. A mãe dos
meninos parecia bem nova, ainda mais nova que minha mãe. Daniel e Davi não
tinham sua cor de olhos, que eram bem azuis e cintilantes, mas fora isso não
havia dúvidas de que eram seus filhos. Ela também era alta e magra, e como se
fosse uma herança genética, possuía o mesmo porte e certa arrogância no olhar.
Enquanto eu saboreava meu pedaço de torta e admirava os meninos jogando bola,
escutei Catarina falar:
-... É o que estou dizendo, minha
mãe soube que Dona Celina é excelente pianista e a contratou para me dar aulas.
Toda tarde vou à casa dos Castilho. Claro que minha intenção não é aprender um
troço chato como tocar piano, mas quero que Dona Celina veja que linda nora eu
serei um dia e promova meu casamento com o filho dela.
- Catarina! Você ainda é uma
criança, como pode pensar em casamento?! – ouvi Patrícia respondendo.
- Minha avó casou aos treze, e para
mim só faltam dois anos.
- Sua avó, doida! Hoje em dia é
diferente. Credo! E com qual dos dois você acha que casará?
- Com o Daniel, óbvio!
- O que foi Lílian? Engasgou? –
perguntou Michelle.
- É, acho que o suco entrou pelo
nariz. – respondi – Catarina? Aconteceu alguma coisa entre você e o Daniel para
ter tanta certeza de que vai casar com ele?
- Ainda não. Mas eu percebo o jeito
que ele me olha quando estamos sozinhos na sala.
- E você gosta dele?
- Gostar Lílian? Eu tenho 11 anos!
Não gosto de ninguém. Além do mais, minha mãe me disse que não podemos escolher
um marido pelo que sentimos por ele, mas pelo que sabemos sobre ele. E a
família Castilho é riquíssima até onde eu sei. São donos de terras no País
Além. O pai está lá cuidando dos negócios, enquanto mantém os filhos aqui para
estudar.
- Para estudar? – eu disse. Que
estranho! Soube que no País Além os recursos são muito mais avançados que em
Cabeceira...
- Lílian, você pergunta demais. Vai
acabar solteira desse jeito! Ninguém gosta de gente que procura saber o motivo
de tudo. Ouça meu conselho. Se quiser ser feliz fique burra!
Catarina levantou e foi para mais
perto dos meninos, num lugar onde seria impossível não ser notada. Eu e as
meninas ficamos olhando umas para as outras boquiabertas.
- Não sei o que mais me assustou –
disse Michelle, quebrando o silêncio – Se o fato de ela querer se casar tão
nova, ou o de acreditar que a burrice é boa casamenteira!
- É verdade! – falei – Essa é boa!
Rimos muito daquilo tudo, mas por
dentro fiquei preocupada com a possibilidade de ter chegado atrasada ao coração
de Daniel Castilho. Tentei descobrir se ele a olhava interessado, mas fiquei
com medo de que percebessem minha preocupação e acabei me atrapalhando toda.
Antes de irmos embora, porém, os meninos propuseram um pique esconde para
encerrar a tarde e fomos todos para a clareira, onde teríamos bastante lugar
para nos esconder. Durante a primeira rodada, o pique ficou com Paulo, e quando
ele começou a contar senti uma mão me puxar em direção às pedras do
despenhadeiro e obedeci ao movimento.
- Aqui não nos encontrarão tão
cedo. – disse Daniel, depois que entramos num vão entre as pedras.
- Que susto você me deu!
- Não gostou do esconderijo que te
arrumei?
- Não sei... quer dizer... acho que
sim. É seguro?
- O mais seguro de todos.
- E porque logo eu? Pensei que
fosse trazer a Catarina!
- Catarina? Por quê?
- Por nada.
- Trouxe você porque estava mais
perto. Satisfeita?
- Pelo menos agora eu sei o motivo.
- Garota, você é muito criança! E
ingrata!
- E você? O que é?
- Eu sou um bobo.
E dizendo isso Daniel saiu do
esconderijo e foi direto para casa. Ninguém entendeu o motivo daquele mau humor
súbito e a brincadeira acabou. Cada um pegou suas coisas e fomos para nossas
casas também, tomar banho e descansar. Eu não dormi bem aquela noite, pensando
no motivo daquela raiva toda que Daniel demonstrava ter de mim. Depois desse
dia ele não saiu mais de casa e não nos vimos mais. Isso reforçou minha tese de
que ele realmente estava interessado em Catarina.
Para tentar esquecer e minimizar
minha ansiedade em relação ao Príncipe Castilho, como Flora e eu o chamávamos às
escondidas por causa de seu porte e beleza, mergulhei nos livros de história de
Azagaia e pesquisei tudo o que pude sobre a família que eu não conhecia: os
Amaral. Na manhã anterior ao meu retorno à Poço das Almas, falei com meu pai à
mesa do café:
- Pai?
- Lá vem bomba! – ele falou,
sabiamente.
- Quero que me leve à casa dos
Amaral.
- O quê?
- Isso mesmo que o senhor ouviu!
Quero conhecer meus avós.
- Lílian querida, eu adoraria fazer
o que está me pedindo, mas prometi ao meu pai que jamais poria os pés naquela
casa sem que fosse chamado.
- E quem disse que eu não posso ir?
- Você não está pensando que vou
deixar você entrar sozinha naquela casa. Está?
- E por que não? Eles matam
criancinhas?
- Mais ou menos.
- Hã?
- Nada, filha. Só pensei alto. O
que você quer lá?
- Quero conhecê-los pai! Você não
acha que tenho esse direito? Você não acha que eles têm o direito de saber se
querem ou não minha presença?
- E a senhorita não acha que se
eles quisessem já teriam vindo aqui?
- Pai! Talvez eles não queiram dar
o braço a torcer. Será possível que vocês precisem de uma garota de dez anos
para dizer como as coisas funcionam nessa família?!
- Talvez esteja certa, mas não acho
que seja hora. Quando você estiver pronta prometo que te levo lá.
Infelizmente, meu pai parece não
conhecer direito a filha que tem. Tomei o café e recolhi a louça para que papai
lavasse. Era engraçado ver isso, mas naquele dia eu tinha coisas mais
importantes para resolver. Como costumava passar na casa de Flora todas as
manhãs, meu pai não estranhou quando peguei minha bicicleta e saí. Só que ao
invés de ir para a casa de minha melhor amiga, fui para o bairro dos
Fundadores, no lado sul da cidade, onde as casas costumavam ter mais de dois
andares e jardins enormes com árvores desenhadas em formatos assustadores.
Parei em frente ao portão com a placa Família Amaral, nada poderia ser mais
fácil que isso. Perto da grande varanda dividida com pilares romanos havia um
senhor que depois descobri ser o jardineiro, “Seu” Joaquim Felix, e dois cachorros
de pernas compridas e pintinhas pretas pelo corpo.
- Ei! – gritei o mais forte que
pude – Senhor?!
O jardineiro veio em minha direção
num ritmo de tartaruga ultrapassar e foi falando do meio do caminho:
- Fala menina! Que quer a
senhorita?
- Gostaria de poder falar com
alguém da casa. O senhor poderia fazer o favor de chamar?
- Sim, menina. E anuncio a quem?
- Lílian Amaral.
No mesmo instante os olhinhos do
jardineiro brilharam e ele trocou o peso do corpo de uma perna para a outra.
- A senhorita é a filha do patrão
Camilo?
- Sou sim. Conhece meu pai?
- Vi seu pai nascer menina. Se eu
te falar uma coisa, menina Lílian guarda segredo?
- Claro!
- Joaquim tem saudades de patrão
Camilo. Muita mesmo!
O jardineiro abriu o portão, mas
pediu que eu esperasse do lado de fora da casa para o caso da resposta ser
negativa. Enquanto aquele senhor de passos lentos subia as escadinhas da
varanda e entrava na casa de meus avós, meu coração saltava aos trambolhões
dando a impressão de que sairia do peito e se espatifaria ao chão. Olhei ao
redor e percebi que a família que eu pensei que não tivesse era bem rica na
verdade, o espaço da casa parecia o mesmo do meu quarteirão inteiro. Pelo canto
esquerdo da varanda era possível ver um estábulo na parte de trás da casa, e
muitos empregados passavam de um lado para o outro com seus afazeres.
- Menina? – uma voz interrompeu
minha pesquisa visual e uma senhora se postou no alto da varanda. – Seu pai te
mandou aqui?
- Não senhora. Vim porque quis.
- Você deve se parecer mais com ele
na audácia que nos traços então. Como se chama?
- Lílian. E a senhora?
- Aureliana Amaral. Avise a seu pai
que não nos comovemos com criancinhas nesta casa. Agora vá, que não tenho tempo
para desperdiçar com bobagens.
Saí daquela casa com tanta raiva
que nem me despedi de Seu Joaquim. Que mulher intragável! Como meu pai poderia
ter saído de um lugar assim? Inacreditável! O pior seria contar a ele.
Não vou dizer nada - pensei - Vou esquecer que um dia pisei naquele lugar
horrível! Voltei para casa e não saí mais aquele dia. Arrumei minhas malas e
dei um banho em Trevo à tarde. Quando anoiteceu, Flora veio se despedir e
jantou com a gente. Nem para ela contei sobre o encontro desastroso que tive
com a megera de minha avó. Era uma coisa que eu gostaria de esquecer. Ouvir
nossos pais nos protege de algumas dessas decepções na vida, mas tem coisas que
temos que aprender sozinhas. A minha teimosia ainda me levaria a muitos lugares
perigosos, minha avó não era nada perto do que eu ainda enfrentaria. Passei uma
noite tranquila apesar do encontro desastroso do dia. Papai me acordou ainda de
madrugada, entramos na caminhonete e partimos. Sem mamãe para me dar o remédio
para enjoo fiquei acordada todo o caminho, mas não me pergunte como foi porque
entendi o motivo do remédio. Estava tão enjoada que não me lembro de nada, só
da força que fiz para não vomitar e que me deu uma enxaqueca terrível. Quando
avistei as janelas vermelhas da casa da fazenda, Cabiceira ficou para trás e
dei graças a Deus por estar em casa outra vez.
- Pai?
- Diz amor!
- Quando vamos nos ver novamente?
- No próximo verão Lílian. Agora eu
preciso fazer uma viagem e só voltarei para buscar você para as férias do ano
que vem.
- Tudo bem. Eu posso aguentar isso.
Enquanto a caminhonete velha do meu
pai fazia a volta no laguinho em frente à casa, vi meus avós, mamãe e Berenice
na varanda, e uma sensação de que estava em outro mundo me invadiu
completamente.
VII – A Visita.
Amo o meu pai de todo o meu
coração. Mas é impressionante como o lugar da gente está intimamente ligado à
presença materna. Transferi minha cidade natal para Poço das Almas dentro de
minha alma muito antes de ter de fazer isso por motivos políticos. Retornar à
fazenda foi como voltar para casa. Além do mais, eu queria muito conversar com
meu avô sobre todas as minhas descobertas. Alguma coisa me dizia que elas eram
somente a ponta do iceberg. Saí do carro meio tonta, por causa da enxaqueca, e
minha mãe já foi me segurar enquanto olhava com cara de reprovação para papai.
Tomei um banho e um analgésico e fui para a cama mais cedo. Nada de conversas
naquele dia. Pensei que meu pai fosse pernoitar na fazenda, mas a viagem que
precisava fazer não podia esperar e ele partiu à noite mesmo.
Acordei no dia seguinte com o
cheiro de café fresquinho e o corpo revigorado. Tomei café na cozinha mesmo,
com Berenice me contando as novidades da fazenda e Trevo deitado aos meus pés
esperando que eu dividisse com ele o bolo de fubá delicioso da minha avó.
- Lílian, você precisava ver o
nascimento do cabritinho da Pomposa. Você já viu um parto? – Berenice falava
enquanto comíamos.
- Eu?! Deus me livre! Deve ser
nojento.
- Que nojento que nada. Não diga
bobagens. Ver uma criatura nascer traz esperanças ao coração. É como se tudo
fosse dar certo porque a vida se renova. Não sei explicar, mas é emocionante.
- Talvez tenha razão, mas não
consigo imaginar onde dor e sangue possam parecer bonito. Berenice, você viu
Sara e Felipe?
- Com saudades dos amigos! Eles
foram com o pai numa viagem que Orestes precisou fazer para o seu avô. Sem você
aqui eles viajaram muito com o pai. Devem chegar amanhã cedo, se tudo correr
bem.
- Como assim “se tudo correr bem”?
- É só uma expressão Lílian.
- Hum... Você sabe onde meu avô
está?
- Na sala. Parece que está te
esperando.
Fui ao encontro de meu avô com a
impressão de que ele já sabia o assunto que conversaríamos. De fato, meu pai
havia comentado com ele sobre o que eu e meus amigos estávamos conversando em
Cabeceira.
- Oi vovô! Bom dia!
- Bom dia, minha pequena! Como passou
a noite?
- Muito bem. Ontem não estava muito
boa quando cheguei.
- Sua mãe também era assim quando
pequena. Não podia ir até a cidade sem tomar um remedinho para enjoo. Ainda
hoje sofre de enxaquecas de vez em quando. Acho que é de família, porque sua
avó também é assim. Eu tive dor de cabeça duas vezes na vida, e uma foi porque
levei uma pancada.
- E a outra?
- Foi uma desidratação que sofri
quando fiquei perdido na Terra das Rotas Diagonais durante quase uma semana.
- Como foi isso?
- Bem, eu precisei atravessar o
lugar, mas soltei o punhado da terra que carregava quando dormi e perdi a
memória.
- E como o senhor sabe disso?
Deveria estar morto!
- Eu estava acompanhado. Orestes
estava comigo e me carregou nas costas até entrarmos em Tornados.
- E a memória voltou
instantaneamente?
- Não, claro que não! Fui até uma
casa de repouso e fiquei internado por três dias. Eles administraram alguns
remédios que me fizeram recuperar a memória de quase tudo, menos do período que
passei na Terra das Rotas Diagonais. Sobre isso eu só sei o que Orestes quis me
contar.
- O que quis te contar?
- Dizem que um homem fala loucuras
quando esquece quem é e para que existe. Acho que nunca descobrirei as loucuras
que saíram de minha boca naquele lugar.
- Vovô?
- Sim, meu bem?
- O senhor já sabe sobre o que
quero conversar, não sabe?
- Sim, eu sei. Seu pai falou
comigo. Mas eu gostaria de ouvir de você o que quer saber, o que está nesse seu
coraçãozinho.
- Bem, nem sei explicar... Papai me
disse que serei sua substituta no governo de Poço das Almas. É verdade? O que
isso quer dizer realmente? E como eu vou saber o que fazer? E que raio de
guerra é essa que pode começar? E quem é Amadeo? Ele é gente boa?...
- Espere Lílian, vamos dividir
essas questões em partes e falar sobre elas detalhadamente. Como você já sabe,
eu não tive outros filhos além de sua mãe, e ela, por sua vez, também só teve
uma filha. Portanto, você é minha única herdeira. Sua mãe perdeu esse direito
quando se casou. É assim que funciona aqui. Ela pertence ao marido agora.
- Isso quer dizer que também sou
herdeira deles?
- Não. Seu avô paterno retirou seu
pai do testamento. Além do mais, ele não é o filho mais velho. O próximo
governador de Cabeceira será seu tio, Constantino, ou o filho mais velho dele,
caso ele morra antes de seu avô.
- Hum... Parece história inventada.
- Mas não é. Na verdade ela é bem
real e pertence a nós.
- Então eu só irei governar a
cidade se o senhor morrer? Falta muito pra isso!
- Espero que sim! De qualquer forma
você teria um tutor até completar dezoito anos.
- O que é um tutor?
- É alguém que cuidará de tudo até
que você tenha capacidade legal de assumir seu cargo.
- E quem é meu tutor? Meu pai?
- Não. Tem que ser alguém de minha
família. Seu tutor é o meu irmão mais novo, Valdívio, ele governaria eu seu
lugar caso eu faltasse. Mas faremos o possível para que isso não seja
necessário, certo?
- E ele é gente boa?
- Se ele é confiável? Tenho minhas
reservas com Valdívio. Mas não temos escolhas. Ele é o único que legalmente
poderia representá-la. E o contato dele com Tornados seria de muita utilidade
para você. Lílian, você ainda é muito nova para entender o que toda essa
história significa. Tenho meios de te manter informada caso haja necessidade.
Vamos falar somente o que você precisa saber agora, com o tempo aprenderá tudo
o que envolve Poço das Almas e Azagaia. Antes de tudo, preciso que entenda uma
coisa acima de todas as outras. O que nós conversarmos deve permanecer em
segredo. É um assunto só nosso certo?!
- Mas meus amigos sabem...
- Não Lílian, seus amigos não sabem
sobre o que conversaremos. Só conhecem o que todos dizem. Poucas pessoas têm a
história completa. E essas pessoas não vão conversar com você ainda. Outra
coisa que precisa saber é sobre a Ilha do Véu. Azagaia era o território dos
Continentais. Quando os Forasteiros chegaram aqui eles foram expulsos e se
mudaram para a Ilha do Véu.
- Isso eu já sei.
- Pois é. O que você não sabe é que
não haveria porque se preocupar com eles. A Ilha é um lugar belíssimo e muito
fértil. Seu território é tão extenso quanto o nosso e os Continentais não
precisam voltar para cá.
- Mas então porque brigaríamos?
- O caso é que alguém tentou matar
a família real e fez parecer que fomos nós. O rei Amadeo é um homem justo e
sábio, mas está cego pelo desejo de proteger sua descendência. Amadeo não
entraria em guerra contra Azagaia inteira, mas corre um boato de que Cabeceira
o apóia secretamente.
- E o senhor acha isso possível?
- Mais que possível. É desejo de
seu avô dominar toda a região há anos. E seu tio pensa que atingindo você
poderia se vingar de seus pais. Enquanto eu estiver no poder, dificilmente essa
guerra poderia estourar. Tenho aliados fortíssimos que impedem os Amaral de
agir.
- Acho que isso é muita coisa para
uma menina de minha idade.
- Talvez seja melhor a gente
continuar a conversa depois. O que você acha?
- Excelente ideia! Quero dar um
passeio agora.
- Uma cavalgada?
- O senhor me levaria?
- Só se for agora!
Nosso passeio foi maravilhoso.
Percorremos uma boa parte da fazenda e vovô Silvestre ia me mostrando como tudo
funcionava. Queria que eu ficasse bem informada sobre a rotina do lugar. E até
que era divertido. Passamos pelos jacarandás e me lembrei dos meus amigos.
Estava com saudades de Felipe e Sara e não via a hora de reencontrá-los. Quando
retornamos a casa o almoço estava sendo servido. Vovô e eu nos juntamos a
outras três pessoas à mesa: vovó, mamãe e uma moça ruiva, de olhos pretos e
pele muito branquinha.
- Desculpem o atraso. Assumo que o
culpado fui eu. – disse vovô enquanto sentava à cabeceira da mesa.
- Lílian – disse minha avó –
gostaria de te apresentar a Manuela. Ela será sua preceptora de agora em
diante.
- E o que é isso? – perguntei.
- Uma espécie de professora. Ela
ficará responsável por sua educação.
- Eu não vou frequentar a escola?
- Não. – minha mãe interrompeu -
Depois conversaremos melhor e você entenderá os motivos.
Quando minha mãe falava assim eu
compreendia que era hora de parar de perguntar. Cumprimentei a professora e me
calei até terminar o almoço.
- Posso me levantar?
- Sim, Lílian – mamãe respondeu -
Vá para o seu quarto. Irei em seguida para conversarmos.
Pensei que havia feito algo de
errado. O que eu não sabia e que só descobri mais tarde, é que a seriedade de
minha mãe naquele momento não tinha nada a ver comigo. O motivo era bem
diferente: meu pai. Ele havia sido capturado pelos Continentais mais uma vez e
ela temia pelo pior. Eu seria poupada de muitas coisas durante minha infância,
mas isso só fez com que eu enxergasse tudo aquilo como loucura quando
finalmente tive que saber a verdade. Ouvi batidas à porta e a voz de minha mãe
em seguida.
- Filha?
- Estou aqui.
- Lílian, desculpe ter te mandado
subir como se fosse um castigo, mas estou um pouco chateada hoje. Tem uns dias
que a gente fica meio entediada, não é?
Eu conhecia minha mãe o suficiente
para saber que não falava a verdade. Mas também não pensei que pudesse ser algo
grave e continuei como se tivesse acreditado.
- É. Você veio para falar da
professora, não é?
- Sim. Manuela é excelente professora
e seu avô acha que você deve aprender algumas coisas que a escola não poderá
ensinar.
- Exemplo?
- Como a língua dos Planicianos.
- Mas ainda existem Planicianos?
- Lílian, você pode só obedecer sem
perguntar dessa vez?
- Tudo bem. Mas não é justo.
- Eu sei.
No dia seguinte acordei com Felipe
me chamando debaixo de minha janela. Tive aquela sensação boa de que o dia
seria maravilhoso na companhia de meus amigos e Trevo. Fomos os quatro para os
jacarandás depois do café e matamos as saudades colocando os assuntos e dia.
- Pois é agora tenho uma professora
particular. Não vou à escola com vocês.
- Que pena! Mas ainda poderemos
brincar quando voltarmos? – perguntou Sara.
- Claro que sim!- respondi.
Felipe estava mais pessimista.
- Não sei não. Você se esquecerá da
gente depois que começar a se distrair com seus afazeres de menina rica.
- Felipe!
- Deixa Sara, aprendi nessas férias
que os meninos podem ser tão bobos quanto a burrice deles permitir.
- Então Felipe pode ser muito bobo
mesmo!
Rimos tanto de Felipe que ele
resolveu terminar a tarde ajudando o pai a carregar o caminhão. Eu e Sara
brincamos de esconder até a hora do lanche, e tivemos que tomar banho antes de
sentarmos à mesa. Trevo sentou-se aos meus pés, como sempre, esperando sua
parte nas guloseimas. Os dias se passaram com tanta rapidez que nem percebi que
as férias se aproximavam novamente. Estava radiante com a possibilidade de
rever meu pai e Daniel também. Durante todo o período das aulas, enquanto Dona
Manuela me ensinava a história e geografia de Azagaia, pensava na possibilidade
de Daniel estar lendo a mesma coisa. Talvez nossos pensamentos estivessem
unidos através das coisas que aprendíamos. Escrevia o nome dele todos os dias
em meu diário e fiz uma contagem regressiva para os dias que faltavam até que
estivesse em Cabeceira novamente. Mas todas as vezes que eu perguntava a minha
mãe sobre o dia que papai chegaria para me busca ela desconversava. Os adultos
sabem ser irritantes quando o assunto é informar. Todos os dias eu esperava
pela caminhonete do meu pai fazendo a volta no laguinho, mas ele não aparecia.
Comecei a ficar preocupada quando percebi que meu aniversário se aproximava e
eu corria o risco de passá-lo em Poço das Almas. Quando faltava uma semana para
eu completar onze anos, um carro diferente entrou pela Alameda de Carvalhos da
fazenda e eu fui até a porta ver quem poderia ser. Uma menina conhecida abriu a
porta do carona de mochila nas costas e eu não acreditei no que estava vendo.
- Flora! O que está fazendo aqui?
- Não te avisaram? Vou passar as
férias com você.
Mamãe vinha ao nosso encontro com aquele ar de quem esconde alguma coisa.
Mamãe vinha ao nosso encontro com aquele ar de quem esconde alguma coisa.
- Ué, eu não vou para Cabeceira
esse ano? E o meu pai? Por que ele não veio me ver? Mamãe?
- Receba Flora primeiro querida.
Depois conversaremos.
- Eu ainda mato um com esse negócio
de depois conversaremos nessa casa! Caramba! Meu pai está bem? Onde ele está?
- Ele está bem Lílian! – mamãe
falou já sem paciência – Está viajando, mas virá te ver assim que puder. Agora
suba com sua amiga que vocês devem ter muito que conversar.
- Flora, estou muito feliz em te
ver. Mas não sou boba, tem alguma coisa acontecendo aqui e você tem que me
ajudar a descobrir.
- Tudo bem. Agora vamos para o seu
quarto que o que tenho para te contar é mais urgente.
Subimos ao meu quarto e Flora ficou
impressionada com o tamanho dele. Realmente a casa do meu avô era bem maior que
todas as casas que já havíamos visto. Conhecia minha amiga o suficiente para
entender que ela só descansaria depois que soltasse a bomba que havia trazido. Então
sentamos na minha cama e eu disse:
- O que foi Flora? Pode falar.
- O Daniel e a Catarina estão
namorando!
- O quê?!
VIII – Ferus.
A visita de Flora era para ser um consolo, mas as notícias que minha amiga querida trouxe me envolveram num emaranhado de angústia e sofrimento. Como um sentimento tão maravilhoso pode ser tão esmagador e decepcionante? Hoje lembro que o que sentia por Daniel já era forte, ainda que não tivesse a complexidade de agora. Aprendi que o amor não tem medidas, ou é ou não será nunca; quando amamos, tudo o que existe torna-se pequeno se colocado ao lado do que sentimos. Mesmo uma menina, eu sentia que nada seria certo se não fosse com ele, no entanto, tudo estava ameaçado por minha ausência e a presença constante de Catarina. Obviamente eu não era a única torturada. Flora precisou repetir a história umas mil e duzentas vezes. Eu queria saber cada detalhe, cada palavra, a entonação de cada uma delas...
- Estou arrependida de ter te
contado! – Flora disse alguns dias depois – Agora vamos passar dois meses
ouvindo a mesma história de como eu soube, o que eu vi blá, blá, blá... É
desanimador Lílian! Pelo amor de Deus, esquece o que te falei!
- Não posso. Quero ver quando for a
sua vez de gostar de alguém. Você nem imagina o quanto é ruim saber que a
pessoa não escolheu você. O pior é que eu pensei que ele gostasse. Aquela
implicância parecia o que os meninos entendem de manifestação de sentimentos.
Agora... Nada feito. Nem sei se adiantaria voltar à Cabeceira.
- Claro que sim! Se te serve de
consolo, Daniel não parecia nada feliz depois de anunciado o namorico. É, isso
mesmo, porque não passa de um namorico de crianças. Ou você acha que poderia
ser sério? Catarina? Aquela boba?! Só se ele for muito burro.
- Se não fosse sério porque ele
assumiria para os meninos o namoro então?
- Olha, vou te contar uma coisa
estranha. Não parece fazer sentido, mas foi assim que aconteceu. O Sérgio me
contou que Daniel não parava de falar de você e de perguntar sobre quando
voltaria à Cabeceira e coisa e tal, que ele tinha achado você muito metida, mas
que ele gostava do seu jeito arrogante...
- Ele disse isso? Arrogante?
- Posso terminar?
- Pode. Arrogante é o fim!
- Bem, veja pelo lado bom, pelo
menos ele gosta de alguma coisa em você. Mas como estava dizendo, o Sérgio
disse que isso tinha deixado o Paulo furioso, e que o Daniel parou um pouco de
falar de você para não perder a amizade dos meninos. Mas quando estavam só ele
e o Sérgio, o assunto Lílian sempre voltava de alguma forma.
- Agora mesmo que não entendi nada!
- Só porque você não espera a gente
terminar de contar. Um dia, a Michelle soltou sem querer que você é uma
Gutierrez, não lembro do que falávamos, mas a postura do Daniel mudou
completamente e ele nunca mais falou de você. E ainda por cima proibiu o Sérgio
de falar. No dia seguinte, veio com essa de namorar Catarina.
- Que estranho! Não entendo como o
fato de eu ser uma Gutierrez pode alterar o sentimento de alguém a meu
respeito.
- Também não entendi. Talvez ele
pense que você seja uma dessas fundadoras esnobes que Azagaia tem. Quem sabe?
- Só se ele for idiota o suficiente
para julgar as pessoas pelos outros. Talvez tenha sido melhor assim. Mas meu
coração não esqueceu Daniel Castilho ainda.
- Lílian, para falar a verdade, nós
somos muito novas para escolher o amor de nossas vidas. Daqui a quatro dias
você faz onze anos! Deixa isso pra mais tarde. Vamos aproveitar para brincar de
todas as coisas que pudermos, porque depois não teremos tempo para isso.
- É verdade. Não me deixa mais
falar de Daniel Castilho então?!
- Nunca mais.
Depois que eu decidi não me
torturar mais com coisas que eu não poderia entender minhas férias ficaram bem
mais divertidas. Sara e Flora tornaram-se grandes amigas quase instantaneamente
e Felipe viajava muito com o pai por não se encaixar num mundo feminino ao
nosso lado. Nas poucas vezes que ficava na fazenda passava mais tempo com
Trevo, andando pelo limite da Floresta Descomunal. Meu aniversário passou com
menos alarde do que eu gostaria. Acordei com os presentes na cômoda como era de
costume e no lanche da tarde cantamos parabéns com um bolo delicioso que vovó
preparou especialmente para mim: chocolate e nozes. Quando apaguei minha vela
de onze anos desejei que meu pai viesse logo me visitar. E se me levasse para
Cabeceira seria melhor. Claro que eu adoraria reencontrar Daniel, não falar
dele não me impedia de sentir saudades. Por outro lado, eu também estava
preocupada com meu pai. Essas viagens dele nunca haviam me preocupado tanto,
mas as coisas não eram mais como eu imaginava. Algo me dizia que ele
não estava numa viagem comum de trabalho. Mamãe andava muito pensativa e
impaciente nos últimos dias para que eu me sentisse segura. De qualquer forma,
Flora, Trevo, Sara e meus avós não me deixavam divagar muito sobre os possíveis
problemas que meu pai poderia estar enfrentando.
- Seu pai deixou esse presente para
você Lílian! – disse minha mãe, enquanto estendia para mim um embrulho colorido
com uma fita verde enrolada – Ele me entregou antes de ir e pediu que eu
aguardasse até o seu aniversário.
Quando abri fiquei surpresa e
eufórica ao mesmo tempo. Era uma caixinha de música num formato familiar, mas
que demorei a entender: uma réplica exata da casa dos Amaral no Bairro dos
Fundadores, e que eu havia visto uma única vez. Dentro havia um bilhete:
“Eu sei que você esteve lá. Da
próxima vez, escute seu pai.”
Quando coloquei para tocar, minha
mãe me disse que papai havia dado a ela essa caixinha quando chegaram a
Cabeceira, e que foi essa música que ela cantou pra mim durante a gravidez.
- E que música é essa, mamãe?
- Foi seu avô Amaral quem compôs
para seu pai quando ele ainda estava na barriga de sua avó. Chama-se Luz dos Olhos,
e fala do amor eterno de um pai pelos filhos.
- Parece que o amor não era tão
eterno assim.
- Há pessoas que colocam o orgulho
sobre todas as coisas e não conseguem perdoar. Só certifique-se de que você não
será uma dessas pessoas.
- Claro que não, mamãe!
- É fácil falar agora Lílian. Mas
eu quero que você se lembre disso quando achar que foi muito magoada. Quero que
você se coloque no lugar do outro e veja se ele não tem nem um pouquinho de
razão. Um dia você será uma governadora, e as coisas que aprender agora
nortearão suas decisões. Só espero estar fazendo tudo certo.
- Você não faz nada errado, mamãe.
- Lílian, você é a melhor filha que
uma mãe poderia querer...
- Obrigada, mãe. Estou amando esse
meu aniversário.
Dias depois do meu aniversário,
enquanto brincávamos debaixo dos jacarandás e Trevo latia sem parar para o nada
na direção da Floresta Descomunal, Felipe chegou dizendo que estava na hora de
vermos quem era corajoso o suficiente para entrar na Floresta e trazer uma
pedra branca que margeava o rio Ité. Flora e Sara não gostaram da ideia, mas
não queriam passar como medrosa diante da valentia estampada no rosto de
Felipe. Eu achava tudo uma grande bobagem. Coisa mais fácil era entrar numa
florestinha de nada e pegar uma pedra num rio que devia ser bem pertinho,
porque dava para ouvir o barulho dele. Aquele suspense era coisa de menino
querendo assustar a gente. Concordei na hora e combinamos nossas estratégias.
- Flora vai comigo e Sara com você!
– falei – A gente pega a tal pedra e quem chegar primeiro aqui é o vencedor e
terá que dar banho em Trevo durante um mês!
- Fechado! – concordou Felipe.
- Por mim tudo bem. – disse Flora.
- Mas eu não estou com vontade de
ir não. – Sara falou com os olhos esbugalhados – Dizem que é estranho aí
dentro.
- Deixa de bobagem, Sara! – Felipe
respondeu na hora.
- Mas se você não for o Felipe vai
com quem?
- Com Trevo! Eu posso ir com Trevo.
- Tá bom então! Você vai com Trevo
e eu com a Flora. E Sara fica aqui para ver quem chega primeiro.
- Então conta até dez Sara, que a
gente vai entrar.
- Um, dois...
- Com medo, Lílian? – Flora
perguntou.
- Cinco...
- Imagina! Coisa de menino querendo
parecer interessante pra você.
- Sete...
- O quê?
- Vai dizer que não notou?
- Tá doida Lílian?!
- Dez!
Ao som da largada, corri o mais que
pude e só percebi lá dentro que Flora não estava comigo. Tentei voltar, mas não
vi a saída e não queria perder tempo procurando porque Felipe já devia estar
longe. Ouvi os latidos de Trevo se distanciando e resolvi pegar a pedra antes
de Felipe de qualquer jeito. Não seria difícil encontrar o rio, eu sabia que
ele ficava uns cem metros depois da clareira em linha reta. Parti em busca da prova
de que os meninos não são os únicos aventureiros em Azagaia com a rapidez que
desenvolvi nos piques que brinquei na vida. Estava certa de minha vitória.
Cheguei à margem direita do rio ofegante, mas satisfeita. Coloquei
algumas pedras nos bolsos da bermuda e olhei ao redor para ver se achava
Felipe. Foi quando eu o vi. De pé, do lado oposto ao meu. Era o homem mais alto
que eu já havia visto, e trazia um arco nas mãos. O rosto estava pintado com
uma tinta escura, que fazia os olhos sobressaírem e se tornarem mais
assustadores que qualquer coisa que eu já havia visto. Tirou uma flecha de uma
bolsa presa às costas, enfiou no arco e apontou em minha direção. Só me lembro
de haver gritado, e do céu se misturar ao chão. Lembro também de ter chamado
pela última pessoa que me veio à memória: Daniel!
IX – O
Retorno à Cabeceira.
Acordei no meu quarto, com um gosto amargo na boca e minha
mãe fazendo compressa fria na minha testa. Estava com os pensamentos
confusos, e não conseguia falar claramente. Queria dizer o que havia visto, mas
as palavras não saíam. Como se tivessem medo de serem levadas pelo vento.
Aquela criatura na floresta não poderia ser quem eu pensava. Ele era exatamente
como meu livro descrevia Ferus. Mas isso não era possível, ele teria mais de
duzentos anos se ainda existisse. Aquele homem na mata parecia ter a idade do
meu pai. Algum tempo depois que recobrei a consciência pude identificar melhor
quem estava no quarto e o que faziam. Minha avó abria as janelas, Flora
segurava minha mão e Berenice recolhia uns vidrinhos que estavam sobre a
escrivaninha.
- Que é aquilo? – perguntei apontando os vidrinhos e ainda
tonta.
- Remédios. Sua avó faz de tempo em
tempos para essas ocasiões em que é necessário tomar uma atitude antes que o
médico chegue. – minha mãe me respondeu.
- Sempre cuidei de todos aqui com
eles querida. – vovó falou – Pode ficar tranquila que são ótimos para o que
foram feitos. Você já acordou não foi?
- Vocês estão falando como se eu
tivesse sofrido um grave acidente. Foi só um susto, não foi? Aliás, o que era
aquilo na mata? Aquele homem com cara de tigre?
- Que isso, minha filha, você está
vendo coisas agora?
- Como assim “vendo coisas”? Você
falou como se eu não tivesse visto nada...
- E o que você poderia ter visto?
Não há ninguém lá.
- E o que você sabe? Não estava lá.
- Ôpa, minhas duas princesas estão
discutindo sobre o quê? – vovô entrou no quarto e o preencheu com sua voz de
trovão.
- Não estamos discutindo, pai. Só
estou dizendo a Lílian...
- Vocês podem nos dar licença? –
ele pediu – Gostaria de conversar com minha neta.
Imediatamente todas saíram do
quarto, como se estivessem ali para obedecê-lo. Achei a cena engraçada, apesar
de ainda estar assustada com o que havia visto. Afinal de contas, encontrar um
homem com uma cara de felino numa floresta lendária não é coisa que acontece
todo dia.
- Você sabe que não deveria ter
entrado lá, mocinha?
- Agora sei.
- Muito engraçada! Queria ver sua
graça se tivesse perdido o caminho de volta.
- Trevo jamais permitiria isso.
Além do mais, eu segui em linha reta até o rio, não tinha como me perder.
- Sempre há uma forma de se perder
na Floresta Descomunal Lílian. Você sabe pouco sobre ela ou é daquelas pessoas
que precisam aprender por si mesmas?
- Sou essa pessoa aí. Papai já me
contou sobre a Floresta Descomunal o suficiente para que eu não quisesse me
arriscar lá dentro, mas eu não poderia deixar o Felipe ganhar uma aposta...
- Bobagem. Nem tudo é uma questão de ganhar ou perder. Você é uma menina inteligente, Lílian, deveria saber disso.
- Bobagem. Nem tudo é uma questão de ganhar ou perder. Você é uma menina inteligente, Lílian, deveria saber disso.
- Talvez sim. O que eu gostaria mesmo de saber é sobre o homem que eu vi...
- É um planiciano.
- Isso eu poderia concluir sozinha
vovô. O que eu quero saber...
- Lílian, descanse um pouco, outro
dia conversaremos melhor sobre isso. O importante agora é que você se refaça desse
susto. Outra coisa, nada de falar disso para ninguém. Sabe o que significa?
- Que eu tenho que esquecer o que
vi.
- Menina inteligente! Você será
melhor que eu no governo dessa cidade quando for a sua vez de comandá-la.
- Se uma pessoa que nunca pode saber
de nada conseguir ser governante de alguma coisa...
- Sentimentalismos não me iludem.
Você sabe de mais coisas que deveria com a idade que tem.
- Vovô?
- Sim.
- Onde meu pai está realmente?
- Seu pai está viajando a trabalho.
- Ele está em perigo?
- Estamos todos correndo perigo,
Lílian. Viver é muito perigoso.
- Vovô!
- Sossegue minha filha! Seu pai
virá quando puder. Não se preocupe com isso. Agora tente dormir um pouco.
Algumas horas depois, Flora entrou
no quarto com uma cara de quem havia cometido o maior crime do mundo.
- Você está melhor, Lílian?
- Há muito tempo. Não sei por que
esse cuidado todo por causa de um desmaio à toa. Tomei um susto e só. Que cara
é essa?
- Quero te pedir desculpas por não
ter entrado com você. Acho que a conversa que tivemos me deixou um pouco
paralisada.
- Você está com essa cara de quem
roubou um bebê na maternidade por causa disso? Esqueça! Mas por que saber que
Felipe gosta de você te abalou tanto? Você gosta dele? É isso? Eu não acredito
Flora! Que legal! Ele é meio bobo, mas que menino não é?! Mas como vocês
conseguirão namorar se vivem tão longe um do outro?
- Lílian, não viaja! Eu não gosto
de ninguém. Só fiquei surpresa com a notícia.
- Hum, sei. Acho que estou
aborrecida com sua falta de companheirismo de hoje à tarde. Você deveria ter me
seguido.
- Eu sei Lili. Você pode me
perdoar? Se eu tivesse entrado com você nada disso teria acontecido...
- Tem uma coisa que você pode fazer
para conseguir meu perdão.
- Manda. Faço qualquer coisa!
- Você precisa dar uma chance a
Felipe.
- Ai Lílian! Eu aqui pensando que
você está falando sério!
O restante das férias se passou sem
que nada de extraordinário tivesse acontecido. Brincamos todos os dias, vovó e
Berenice fizeram lanches maravilhosos, Trevo se comportava mais como cachorro
do Felipe que meu, vovô deu aulas sobre administração de fazenda para mim e
Flora, mamãe começou a preparar as aulas que daria às crianças da fazenda e meu
pai não aparecia. Também comecei a olhar para Felipe e Sara como pessoas
diferentes do que eu imaginava. Era como se eles tivessem poderes sobrenaturais
e eu ficasse na expectativa de que alguma coisa acontecesse. Obviamente que
nada acontecia, mas eu ficava esperando o tempo todo. Flora também via Felipe
de maneira diferente, mas não da mesma forma que eu. Insisti para que se
declarasse a Felipe enquanto fosse possível, mas ela ainda não sabia o que
significava ficar longe de quem se ama. Quando chegasse à Cabeceira, certamente
se arrependeria.
Sem que eu estivesse pronta para
isso, o dia de Flora retornar a sua casa chegou. Despedimo-nos com muita
tristeza e ela me prometeu que viria caso eu não fosse à Cabeceira nas próximas
férias. Acho que ela sabia de alguma coisa porque eu passei dois anos sem
colocar os pés fora de Poço das Almas. E conforme prometido, ela veio no ano
seguinte. O tempo passou rápido, apesar de minhas preocupações com papai,
Daniel e as coisas que eu ignorava sobre Azagaia. Depois que Flora voltou à
Cabeceira na segunda vez que esteve na fazenda, me aprofundei nos estudos com
Dona Manuela, na tentativa de esquecer meus problemas. Antes que as aulas
terminassem naquele ano, porém, uma carta chegou à fazenda e mudou
completamente a rotina da casa. Era do meu pai e dizia que precisava de ajuda.
Na mesma hora meu avô colocou suas coisas na caminhonete da fazenda e partiu
para Cabeceira. Mandou um recado dois dias depois para que eu e mamãe fôssemos
para casa. Senti um torpor no corpo e temi pelo pior. O que poderia ter
acontecido ao meu pai de tão grave para que tivéssemos que ir ao seu encontro?
Vovô não avisou na carta se papai estava vivo ou não. E para mim e minha mãe
era como se nunca mais fôssemos vê-lo.
X – Você me ama?
Orestes nos levou à Cabeceira num
carrinho velho de vovô que parecia que desmontaria a cada buraco que passava.
Surpreendentemente, a velharia conseguiu chegar inteira na cidade. Ao contrário
de nós, que estávamos quebradas, mais pela incerteza do que encontraríamos ao
atravessar a porta de casa, do que necessariamente pelos solavancos que levamos
no caminho. Enquanto o carro atravessava a cidade em direção a casa onde nasci,
eu observava o movimento das pessoas nas ruas e uma nostalgia invadiu meu
coração. Pela primeira vez pude detectar uma sensação que não soube nomear imediatamente, como um lamento sobre o fato de eu ser obrigada a viver
dividida entre dois lugares onde era igual e miseravelmente feliz. Durante o
tempo em que permaneci em Poço das Almas, esqueci quase que completamente das
ruas cheias de senhoras sentadas em cadeirinhas reclináveis, conversando e
observando seus filhos brincarem até que o suor e a poeira, juntos, dessem
conta de torná-los irreconhecíveis. Agora, assim que senti a primeira brisa de
Cabeceira bater em meu rosto, parecia que a vida na fazenda tinha sido um sonho
bom que eu acabara de ter. Estar de volta me trouxe à realidade. Dessa vez, ao
invés de pensar nos amigos que eu reencontraria, ou nos sorvetes deliciosos do
Sr. Eusébio, a única coisa que ocupava meus pensamentos era como encontraríamos
meu pai. Na estrada, pensei em todas as possibilidades e descartei cada uma
delas. A esperança estava colada ao medo como a areia fina se agarra ao corpo e
entra pelos olhos, nariz e boca, e se acumula debaixo das unhas. Não havia um
só centímetro do meu corpo que não temesse pelo pior e até o aguardasse como um
destino certo. Desci do carro e atravessei o portão, metade querendo resolver
logo tudo o que estava por vir, e a outra querendo parar no quintal e passar a
eternidade suspensa entre o instante de agora e o seguinte. Pensei na última
vez que passei por ali e tinha Trevo comigo. Procurei pela mão de minha mãe e a
encontrei suada e trêmula. Por mais absurdo que pareça, senti-me humana e frágil.
Entramos assim, de mãos dadas, e meu avô veio nos receber na sala.
- Meus amores! Que bom que
chegaram. Podem ficar tranquilas, Camilo está machucado, mas não corre risco de
vida. Só precisa de descanso e do carinho de vocês.
- O que houve papai? - minha mãe
perguntou aflita.
- Depois falaremos sobre isso.
Podem ir, ele as aguarda.
Fui para o quarto mais confiante,
as palavras do meu avô me encorajaram. Mas quando entrei foi impossível evitar
o choque. Papai estava muito mais machucado que da primeira vez que foi à Poço
das Almas me buscar. A cabeça estava raspada e com cortes, um olho não abria
por causa do inchaço, e todo o seu peito estava enrolado em ataduras. Chorei e
ajoelhei ao seu lado.
- Eu devo estar horrível mesmo! –
ele disse, os olhos preocupados com minha reação.
- Papai! O que houve?
- Controle-se, Lílian – mamãe pediu
com a voz embargada – Não deixe seu pai emocionado.
- Tudo bem, Marina. Acho que eu
ficaria pior se vocês não se assustassem.
- Não deve estar tão ruim assim,
para fazer piadas com uma coisa tão séria. Você não se emenda, Camilo Amaral!
Quando olhei para os dois, vi que
mamãe deu uma piscadela para ele e percebi que era mais forte que eu imaginava.
Senti uma vontade incontrolável de ser como ela, mas chorava como uma
bebezinha.
- Vou passar um café. Está se
alimentando normalmente? – ela perguntou.
- Não. Só posso ingerir líquidos.
Não via a hora de você chegar e preparar uma daquelas sopas de abóbora que só
você sabe fazer.
- Tudo bem. Mas fique quieto agora!
E não dê muita conversa a essa chorona.
Mamãe foi para a cozinha e tudo
fazia lembrar antigamente, menos pela situação de papai e a voz de trovão de
vovô conversando com mamãe. Pela primeira vez na vida preferi não fazer
perguntas. Papai notou a mudança em meu comportamento, porque disse:
- Ou estou tão feio que te fiz
emudecer, ou minha princesinha está começando a crescer e aprendeu a esperar a
hora certa das coisas...
- Ou os dois.
- Acho que é isso. Mesmo com um
olho só aberto, pude perceber o quanto cresceu. Você está linda!
- Pena que não posso dizer o mesmo
de você!
E rimos. Depois eu peguei uma
cadeira e sentei ao lado de papai com uma bacia de água bem gelada que mamãe
trouxe e fui colocando sobre os edemas. Aquele dia eu passei assim, cuidando do
meu paizinho, sem me preocupar com mais nada. À noite fui substituída por
mamãe. Subi ao quarto tão cansada que mal vesti uma roupa depois do banho, caí
na cama e desmaiei. Tive pesadelos a noite toda, mas não me lembrava deles ao
acordar. Pela manhã, Flora veio me fazer uma visita e me chamou para almoçar na
casa dela. Eu não queria ficar longe do meu pai, mas vovô foi aceitando pra
mim, dizendo que seria bom eu me distrair um pouco. Até que um tempinho com
minha amiga não seria nada mau. Mesmo assim, passei a manhã inteira ao lado de
papai. Na hora combinada, saí de casa com uma compota de damascos que mamãe mandou
para Dona Fernanda, e uns chocolates de Poço das Almas, os melhores de Azagaia.
Quando atravessava a rua, ouvi alguém chamando meu nome e virei o rosto na
direção de onde vinha aquela voz tão conhecida por mim. Daniel Castilho estava
parado a dez passos de distância com o mesmo porte de príncipe do dia em
que o conheci, mas com uma expressão bem mais madura no rosto. Senti todo o
corpo formigar, como sempre acontece quando estou nervosa. Estanquei onde
estava, entre a calçada e a rua, e de uma maneira muito constrangedora, não
conseguia tirar os olhos dele. Não demorou muito para que viesse em minha
direção, os passos firmes de quem sabia muito bem o que estava fazendo. Tive
vontade de desaparecer, mas esse é um desejo que já aceitei não poder realizar.
- Olá, Lílian!
- Oi, Daniel. Como vai?
- Bem, soube de seu pai e sinto
muito. Realmente lamento o que aconteceu a ele.
Achei engraçada a maneira como
falou, parecia que poderia ter evitado aquilo...
- Tudo bem, ele está melhor agora.
E a Catarina, como tem passado?!
Ele olhou para mim como se
esperasse que eu não tocasse no assunto e falou:
- Olha, eu preciso ir. Desejo
melhoras para o seu pai.
- Obrigada.
Fiquei ainda um bom tempo parada,
pensando em como tenho o dom de falar coisas desnecessárias. Queria ter aquelas
atitudes das mocinhas dos romances, que só dizem o estritamente necessário para
que não passem por idiotas. Continuei meu caminho, mas com uma sensação
de não tocar o chão ao pisar. Quando faltavam dois metros para o portão da casa
de Flora, escutei uma pessoa correndo atrás de mim e me virei assustada.
- Lílian! – era Daniel de volta,
com o corpo encurvado e as mãos apoiadas nos joelhos, ofegante e vermelho com o
esforço da corrida.
- Que susto me deu! O que houve?
- A gente precisa conversar. Posso
passar na sua casa mais tarde?
- Conversar? Sobre o quê?
- Não faça isso. Uma das coisas que
mais gosto em você é sua rapidez de pensamento. Você sabe do que estou falando.
- E a Catarina?
- Você pode parar de fazer essa
pergunta? Mas que droga! Parece um brinquedo quebrado!
- Tudo bem. Depois do jantar. E não
posso me demorar porque quero ficar com meu pai.
- Feito. Prometo que não tomarei
muito o seu tempo. Até mais então.
- Até.
E quando me virei para a entrada da
casa de Flora, parecia que o sol estava a poucos metros do meu rosto: ao mesmo
tempo que me queimava, não me deixava enxergar nada.
Flora veio me receber à porta e
percebeu imediatamente que alguma coisa havia acontecido. O problema das
melhores amigas é que elas têm o poder de ler nossas mentes.
- Que houve? Essa cara de quem viu
um cometa assobiando o Hino Nacional não tem nada a ver com seu pai que eu te
conheço.
- Ai Flora, me dá um copo d’água e
um lugar para sentar...
- Vem aqui.
Como sempre, minha amiga querida
cuidou de mim direitinho. Depois que me deu água, sentou na minha frente com a
mão no queixo e esperou que eu abrisse o jogo.
- Daniel - eu disse, quase sem ar.
- Eu sabia!
- Sabia nada.
- É não sabia, mas só podia ser. Eu
ia acabar deduzindo. Que ele fez dessa vez? Como vocês se encontraram? Onde?
Quem falou primeiro?
- Você pode me deixar contar ou vai
ficar perguntando?
- Hum – E ela fez um sinal de que
passava um zíper na boca.
- Quando saí de casa para vir para
cá ele me chamou. Estava vindo da direção da praça, pela rua, tão lindo... Foi
educado, disse que lamentava o que houve com papai e depois foi embora.
- Tão formal. Vocês não se vêem há
dois anos e meio e ele fala como se não fosse nada? Nem elogiou você?
- Eu perguntei da Catarina.
- Lílian, você é muito burra! Esse
encontro tinha que ser depois do nosso almoço.
- Por quê?
- Simplesmente porque eu já teria
te contado que Daniel terminou com Catarina assim que soube que você viria.
- Ai meu Deus!
- Também acho. E agora?
- Agora nada. Ele voltou depois e
marcou de passar lá em casa hoje à noite para conversarmos.
- E você só me conta agora? Termina
logo essa história Lílian!
- Terminei. Ele vai passar lá em
cada depois do jantar.
Dona Fernanda apareceu de repente
na porta da cozinha e eu pensei que ela poderia ter escutado alguma coisa.
- Vocês duas vão ficar de
conversinha aí, ou vão colocar a mesa do almoço? – ela perguntou com as mãos na
cintura.
- De-de-desculpe Dona Fernanda, é
que eu...
- Tudo bem, minha filha. Você sabe
como Florinha é enrolada quando o assunto é trabalho de casa. Coloque-a para
fazer alguma coisa pela mãe que a comida está atrasada. Fiquei enrolada com
Dona Domingas me contando as novidades. Você sabia que o menino Castilho
terminou o namoro com Catarina e que ela está em greve de fome? Tatiana disse
que levará a filha ao médico caso ela continue com essa maluquice.
“Ela ouviu! Tenho certeza!”-
pensei. Olhei para Flora e ela fazia uma cara de “deixa pra lá”, mas eu sabia
que essa história ainda ia longe.
- Mamãe mandou compotas de damasco,
Dona Fernanda.
- Que delicado da parte dela! Com
tantos problemas... Dona Domingas está dizendo por aí que seu pai levou uma
surra de algum marido ciumento em Redenção....
- Mãe! – Flora interrompeu, mas eu
já havia escutado a única coisa que me interessou na fofoca.
- Redenção?
- Você não sabe? Seu avô foi à
Redenção buscar seu pai. Estava numa clínica de lá, passou dois meses em coma e
ninguém sabia quem era. Se ele voltasse desmemoriado você talvez nunca mais o
visse.
- Flora, eu preciso ir.
- Não, fique! Mamãe! Fala com
ela...
- Desculpe querida. Não faça essa
desfeita de ir para casa sem almoço. Prometo que mantenho minha boca fechada.
- Mas eu quero falar com meu pai...
- Depois você fala. – disse Dona
Fernanda – Agora vamos comer!
Fomos para a cozinha e eu ajudei
Flora a colocar a mesa, mas estava agoniada para ir embora dali. Tenho isso de
ter que fazer alguma coisa com as mãos quando estou nervosa. Acho que é para
arrumar um lugar onde colocá-las. Arrumei os talheres como minha mãe havia me ensinado para os dias de festa e tentei me concentrar nisso, mas Flora e a mãe me olhavam como se eu fosse gritar a qualquer momento.
O almoço estava uma delícia. Dona
Fernanda havia trabalhado no restaurante de Seu Giovanni durante anos antes de
se casar com o filho mais novo dele. Depois que Flora nasceu se tornou dona de
casa, mas o tempero continuava o mesmo. Ainda arrumamos a cozinha antes de ir
para casa. Flora me fez jurar que voltaria lá depois do encontro com Daniel, e
eu não tive como negar. A possibilidade de falar com Daniel me fazia tremer,
mas não estava em primeiro plano naquele momento. Meu desejo de descobrir o que
havia acontecido ao meu pai no tempo em que passou desaparecido tomou conta de
mim de tal forma que não pude esperar pelo momento certo. Entrei em casa e o
silêncio fez com que eu ouvisse meu coração bater em minhas orelhas. Vovô
dormia no sofá e, pelo visto, não perceberia se o circo entrasse com seus
instrumentos e anunciasse o espetáculo da noite bem ao lado dele. Pensei que
mamãe estivesse no quarto, mas encontrei papai sozinho. Quando abri a porta ele
olhou em minha direção.
- Oi anjo! Pensei que passaria a
tarde na casa de Flora.
- Eu também.
- Hum... Quando você vem misteriosa
é porque eu estou enrascado.
- Talvez esteja, mas só se me negar
o que vou pedir.
- E o que você quer?
- A verdade.
- Entendo. A cidade está
especulando sobre o que aconteceu comigo?
- Não ligo a mínima para a cidade!
Quero saber o que houve!
- Menina, isso não é jeito de falar
comigo. Você acha que eu te escondo alguma coisa? Está enganada! Não te escondo
nada que seja da sua conta. O que você não sabe não te diz respeito. Você pensa
que tem quantos anos? Que é gente grande? Eu amo você filha, e justamente por
isso não posso te fazer crescer antes da hora. Você consegue entender isso?
Meu pai nunca havia falado tão
sério comigo. A coisa toda devia ser muito grave para ele se aborrecer daquele
jeito. O problema é que somos tecidos pela mesma linha, e eu não sairia daquele
quarto sem uma resposta satisfatória. Eu havia me cansado dos mistérios. Afinal
de contas, aquilo tudo era a história da minha família. A minha história.
- Desculpe papai. Não era minha
intenção ser grosseira com você, mas estou cansada de ouvir dos outros o que
meus pais deveriam me contar. Vocês deveriam me deixar preparada para as coisas
que escuto na rua.
- Nisso você tem razão. Venha aqui
menina, vamos conversar um pouquinho. Mas não se anime, porque é só um
pouquinho. O que você quer saber?
- O que você tem para me contar?
- Espertinha. O que você ouviu que
te deixou tão aborrecida?
- Dona Fernanda falou que estão
dizendo que você levou uma surra de um marido ciumento...
- E você acreditou?
- Não pai! Tá maluco? Mas o que me
chamou a atenção foi o lugar que ela disse que vovô te encontrou. É verdade que
estava numa clínica em Redenção?
- Agora o assunto ficou sério. É
verdade sim. Eu estava em Redenção.
- E vai me contar por quê?
- Lílian, depois que te deixei em
Poço das Almas fui para a Ilha do Véu tentar descobrir quem tentou matar os
filhos do Rei Amadeo. Quem fez isso quis que parecesse que fomos nós e eu
pensei que descobrindo o verdadeiro culpado poderia livrar Azagaia de uma
guerra desnecessária.
- Mas não era perigoso?
- Quem você acha que me fez esses
ferimentos? Fui escondido, porque sabia que não me deixariam entrar. O problema
é que eu me deixei capturar quando estava dentro do castelo. Você faz ideia da
confusão que criei? Pensaram que eu fosse o responsável pelo atentado e que
tivesse ido lá terminar o serviço. Fiquei preso todo esse tempo, e quando
tentei fugir e falhei, apanhei tanto que acharam que tivesse morrido.
- E eu nunca mais teria te visto!
Você não pensou em mim? Na mamãe?
- Claro que sim! E justamente por
isso fui até lá. Você já imaginou o que seria de todos nós se Azagaia entrasse
em guerra? O que seria de Flora? Dos seus amigos? Você está preparada para ver
destruídos os lugares onde você cresceu?
- Não.
- Filha, a vida nem sempre é como
gostaríamos que fosse. Algumas vezes, precisamos fazer o que estiver ao nosso
alcance para que as pessoas que amamos fiquem protegidas. E alguns sacrifícios
são necessários. Se eu pudesse, você e sua mãe jamais teriam saído daqui. E eu
nunca teria ido à Ilha do Véu. Só que nem tudo é como desejamos. Temos que nos
acostumar com isso.
- Mas agora nós vamos ficar aqui
com você, não vamos?
- Ainda não. Você e sua mãe
voltarão para Poço das Almas quando eu estiver melhor.
- Por quê?
- Porque sim.
- Não é justo.
- Ouvi dizer que você tem outros
motivos para querer permanecer na cidade.
- Que motivos?
- Você sabe do que estou falando.
Sua mãe está chegando aí e a coisa não vai ficar boa para o seu lado. Não é só
de mim que fazem fofocas. E você deveria nos deixar preparados para o que
escutamos por aí.
- Papai!
- Você acha que não sabemos do que
acontece com nossa filha? Esse menino não é para você. Não agora.
- Por que diz isso?
- Confia no seu pai?
- De olhos fechados.
- Então diga a ele que você não tem
permissão para namorar tão nova. Que ele espere até você completar dezesseis
anos. Se ele gostar mesmo de você vai esperar.
- Tudo bem, papai. O senhor sabe
que vou encontrá-lo hoje?
- Não sabia. Que bom que contou.
Você é a melhor filha que eu poderia ter.
- Posso ir ao encontro?
- Tem minha permissão. Mas terá que
dizer o que falei. Não se esqueça de que eu saberei se estiver mentindo.
- E a mamãe?
- Eu cuido da sua mãe. Quando
chegar diga que quero falar com ela com urgência. Isso deverá resolver as
coisas.
Realmente ele resolveu as coisas,
porque mamãe não tocou no assunto comigo. Depois do jantar, subi e me arrumei
para esperar por Daniel. Já que minha resposta seria não naquele momento,
decidi que ficaria o mais simples possível para não passar a impressão errada.
Vesti um jeans e uma camiseta, e não coloquei nenhuma maquiagem. Enquanto
esperava, pensei na conversa que havia tido com meu pai e em como eu gostaria
de pegar o safado que bateu nele daquele jeito. Eu não me incomodaria de ir à
guerra com a Ilha do Véu se fosse para vingar o que fizeram com ele. Não
naquele momento.
Minha mãe me avisou que Daniel já
havia chegado e eu desci. Quando o vi parado na porta com cara de domingo na
missa, tive vontade de rir. Estava com os cabelos molhados e penteados para
trás, e uma camisa estalando de nova. Trouxe uma rosa branca, que entregou à
mamãe com um sorriso que me fez lamentar que meus pais não entendessem o que
seria dizer não a ele. Pela reação que dona Marina teve, o gesto amansou um
pouco seu coração de mãe preocupada.
- Não quer entrar rapaz?
- Não, obrigado. Gostaria de pedir
a seu marido para levar Lílian para tomar um sorvete.
- Nós já conversamos com ele. Não
foi, Lílian?
- Sim, mamãe.
- Vocês podem sair para tomar um
sorvete, mas ela tem uma hora.
- Sim senhora. Entendo. Não vamos
demorar.
- Imagino que não. Lílian, não
esqueça seu casaco.
Peguei a jaqueta e saí correndo,
antes que o sorriso desmontasse do rosto de mamãe. Seria difícil conversar com
Daniel, mas eu nunca decepcionaria meus pais. E numa coisa meu pai tinha razão:
Daniel me esperaria se fosse verdadeiro o seu sentimento. Fomos à sorveteria de
Seu Eusébio, mas depois que escolhemos os sabores, pedi que conversássemos num
lugar mais reservado.
- Aqui estamos! – Daniel falou
quando chegamos à praça.
- No mesmo lugar onde nos vimos a
primeira vez.
- É verdade. Você me chamou de
fantasma.
- Nem me lembre.
- Eu gostaria de conversar com
calma, mas temos pouco tempo. Você já deve saber que terminei com Catarina. Ela
está fazendo questão de tornar isso público. Eu gostaria que soubesse que foi
um erro começar a namorá-la.
- Não acho bacana você dizer isso.
- Não tive a intenção. É que é
difícil falar sobre isso. Eu achei que nunca mais te veria. Tive meus motivos.
O caso é que eu gosto de você e quero que fiquemos juntos...
- Daniel, não vou deixar você
perder seu tempo.
- Perder meu tempo?
- Conversei com meus pais e eles
não querem que eu namore agora. Se você quiser, terá que esperar até que eu
complete dezesseis anos. Além do mais, volto para Poço das Almas quando meu pai
estiver melhor. Seria complicado.
- Posso fazer alguma coisa para
mudar isso?
- Nem tente. Poderia perder o pouco
que temos. Podemos ser amigos ate lá. Ninguém me proibiu de te ver.
- É uma situação delicada. Não
tenho escolha. Tudo bem para mim se você responder a uma pergunta.
- Faça.
- Você me ama?
- Desde a primeira vez que o vi.
- Então a gente espera.
XI – Vento e Passarinho.
Percebi quem era a pessoa de pé
diante de mim antes mesmo de abrir meus olhos de manhã. Aquele perfume e a disposição
de acordar cedo e ir até a casa de outra pessoa só para saber das novidades não
poderiam pertencer a mais ninguém.
- Você dormiu aí, Flora? Eu não me
surpreenderia se a resposta fosse afirmativa!
- Sabe que eu poderia, mas não.
Acabei de chegar e valeu à pena, você deveria ter visto o sorriso estampado em
seu rosto agora há pouco.
- Eu não estava rindo. Estava?!
- Foi muito engraçado!
- Ai, que droga!
- Estou esperando...
Só então abri os olhos e me sentei.
Flora ainda estava de pé, com os braços cruzados sobre o peito e uma cara de
quem não me deixaria fazer outra coisa antes de contar a ela o que queria
saber.
- O que é Flora? Você não tem nada
melhor para fazer?
- O que acha? Conta logo para a
gente descer porque sua mãe está fazendo torradinhas amanteigadas para o café.
- Senta aí, você de pé me deixa
nervosa.
Flora se sentou na ponta da cama e
abraçou um travesseiro.
- Sou toda ouvidos...
Contei a ela da conversa que tive
com meu pai antes do encontro, de como Daniel foi compreensivo e respeitador,
de como estou cada vez mais apaixonada... Contei o que sentia em relação a tudo
o que estava acontecendo, porque Flora é a única para quem eu posso dizer que
tenho medo de que ele me esqueça durante o tempo que passaremos separados, que
meu coração dói só de pensar que não poderei ficar juntinho dele esse tempo
todo, que sinto ciúmes de Catarina, que meus pais não sabem como será difícil
esperar...
- Ai, que romântico! Você tem muita
sorte, Lílian.
- Sorte? Não ouviu o que falei?
Ainda vou ter que esperar durante três anos!
- Mas você pelo menos sabe que ele
te ama. O pior é quando a gente não faz ideia.
- O que está dizendo tem alguma
coisa ver com certo morador de uma fazenda em Poço das Almas?
- Hã? Quê? Você ficou doida?!
- Que pena! Porque Orestes e Felipe
estão chegando daqui a pouco para buscar meu avô e trazer Trevo.
- Você está dizendo isso para
brincar comigo!
- E porque seria? Que interesse
você pode ter na chegada deles?
- Ai Lílian! Vamos para o café que
ganhamos mais.
Descemos e encontramos uma mesa
farta e muito bonita. Minha mãe é aquele tipo de mulher que confere beleza e
elegância a um banquinho e uma caixa de fósforos. Qualquer coisa ganha charme
em suas mãos, e sabe receber como ninguém. Estávamos loucos para provar dos
bolos, doces e pãezinhos que havia preparado. Só o meu pai não tomaria café
conosco porque ainda não podia usar as escadas. Eu e Flora comemos torradinhas
e tomamos suco de graviola até nossas barrigas estufarem. Só nos levantamos
porque mamãe pôs um fim ao exagero.
- Chega de café-da-manhã para vocês
duas. Mas que coisa, parece que o mundo acaba em meia hora!
Enquanto ela falava, ouvimos o
barulho do caminhão de Orestes parando em frente de casa. Logo os latidos de
Trevo me fizeram pular da cadeira e correr em sua direção com Flora atrás de
mim.
- Trevo, meu amigo! – falei
enquanto o abraçava – Você cresceu! Que saudades!
- Percebi que Flora e Felipe já
haviam se olhado e achei muito estranho já que não se viam há tempos. Havia
alguma coisa acontecendo e eu não estava satisfeita de ter ficado de fora.
- Oi Felipe! Lembra da Flora?
- Claro! Tudo bem?
- Bem – ela respondeu envergonhada
– E você?
- Vamos entrar! – falei – Mamãe
ainda tem uma mesa de café posta para vocês!
Entramos todos e conversamos sobre
as novidades na fazenda, as mudanças feitas na cidade pelas chuvas de verão e o
quanto vovó e Berenice reclamavam da falta que fazemos. Depois, vovô e Orestes
subiram para falar com papai e aproveitei para levar Felipe a um passei comigo
e Flora. Minha intenção era apresentá-lo aos meus amigos, mas não encontrei
todo mundo. Daniel, Sérgio e Paulo tinham ido à Pedra Marcada para mais um de
seus passeios de meninos. Catarina também não saía mais de casa, mas era um
favor que me fazia. Davi estava lá, e foi simpático como de costume.
- Imagino o quanto deve ser
interessante aprender a domar cavalos... – ele falou com Felipe.
- É muito bom. Alguns animais são
mais fáceis de lidar que as pessoas. O cavalo é um desses, muito sensível e
fiel. – Felipe respondeu.
Deixei os meninos se entendendo e
fui para o balanço com Michele e Flora. Gostaria que Daniel aparecesse, mas foi
bom que eu tivesse um tempo para pensar em como deveria reagir a sua presença.
Não sei se era um segredo o que havíamos combinado. Acho que eu não me sentia
muito bem com o fato dele ter terminado um namoro para ficar comigo. Mesmo
pensando em Daniel, pude perceber que Flora se posicionou de forma que pudesse
olhar para Felipe o tempo todo. Aquilo estava me incomodando muito, porque não
achava justo que minha amiga tivesse segredos para mim. Queria esperar até o
momento em que estivéssemos a sós, mas foi Flora mesmo quem começou a falar
depois que percebeu que eu começava a demonstrar sinais de mau humor.
- Lílian, tenho uma coisa para te
falar...
- Isso eu sei, só não sei os
detalhes e porque não contou antes.
- Do que vocês estão falando? –
Michele perguntou surpresa.
- Flora está de segredinhos com a
gente.
- Sobre o garoto de Poço das Almas?
- A Michele está sabendo? Mas é
muito pior do que eu imaginava! Você sabe que te conto tudo Flora.
- Não é isso. Vou te contar como as
coisas aconteceram e você vai entender.
- Acho bom mesmo!
- Você se lembra que foi você quem
me disse que ele parecia interessado?
- Claro! Eu já havia percebido.
- Pois é. Depois daquele dia comecei
a ficar mais atenta aos sinais, porque também estava gostando dele. Eu não
tomaria a iniciativa nunca, mas queria que ele percebesse que estava aberta
para uma conversa. Nas outras vezes que estive na fazenda nos tornamos mais
próximos, mas não ficávamos sozinhos nunca e o tempo foi passando. Um dia, eu
estava aqui na praça com a Michele e os outros e vi quando o caminhão de
Orestes parou no portão de sua casa e ele desceu com Felipe. Demorei um tempo
para tomar coragem, mas fui até lá e perguntei o que estava acontecendo.
Orestes entrou na casa e Felipe ficou comigo do lado de fora. Disse que estavam
procurando notícias do seu pai e que haviam recebido um sinal de que ele
estaria em Redenção. Passaram aqui a pedido de seu avô para pegar uns
pertences, algumas roupas e objetos pessoais de Seu Camilo. Foi aí que
conversamos sobre nós dois e prometemos trocar correspondência. Foi rápido.
- Mas porque não me contou?
- Quando você chegou não havia
clima. Seu pai estava de cama e você muito preocupada. Depois teve o encontro
com Daniel, e antes que eu pudesse encontrar uma brecha no nosso tempo eles
chegaram.
- Não parece ruim com você
explicando dessa forma, mas eu teria te contado muito antes. Se bem que foi
barra pesada a minha chegada aqui, não foi?
- Isso que estou tentando fazer
você entender.
- E vocês dois estão de namoro
então?
- Não exatamente. Felipe é ainda
mais tímido que eu e nossas cartas falam de muitas coisas, mas pouco sobre
sentimentos. Acho que só uma conversa poderia deixar tudo mais claro. O que
você acha?
- Que falta você me responder uma
coisa.
- O quê?
- Por que não está aproveitando o
pouco tempo que tem para dar uma voltinha e tomar um sorvete?
- Boa pergunta. A melhor que você
já me fez na vida! Você acha que eu deveria chamá-lo?
- Já foi?!
- Michele, faça companhia para
Lílian e Trevo, por favor. Vou resolver um probleminha.
Enquanto Flora se afastava,
aproveitei o fato de estar sozinha com Michele para perguntar sobre uma coisa
que estava me incomodando. E se havia uma pessoa que saberia me responder e não
teria motivos para esconder qualquer detalhe era ela.
- Michele.
- Oi?
- Tem uma coisa que eu gostaria de
saber e acho que você pode ajudar.
- Pode falar.
- Não é a primeira vez que ouço
alguém me dizer que os meninos foram até a Pedra Marcada. Você sabe o motivo?
Os adultos dizem que não devemos ir até lá sozinhos, mas os garotos insistem em
ignorar esse aviso. É só curiosidade ou estão aprontando alguma?
- Não sei. Pode ser só coisa de
garotos, mas seria muita ingenuidade nossa descartar outros motivos.
- Por que diz isso?
- A Pedra Marcada é lendária e os
moradores da região sempre a visitam para tentar encontrar a tal marca...
- Mas a marca não é a inscrição?
- Não!
- Nem o fato dela marcar o limite
com a Terra das Rotas Diagonais?
- Não mesmo! Há uma marca nela que
indica um segredo, mas ninguém consegue encontrá-la. Algumas pessoas acreditam
que só a escolhida para unificar Azagaia é que poderá achá-la.
- Interessante! Você já tentou?
- Claro que sim! Meu pai me levou
lá alguns anos atrás, lembra-se?
- É verdade. E nada?
- Nada. É difícil procurar uma
coisa que você nem sabe do que se trata.
- O que será o segredo que ela
guarda?
- Isso é o que toda a região
gostaria de saber. E eu posso apostar que é o que os meninos procuram.
Fiquei pensando na conversa com
Michele pelo resto da manhã. Pensei em perguntar a Daniel, mas não sabia se
queria parecer dessas meninas que querem saber de cada passo do namorado e
resolvi que esperaria ele me contar alguma coisa. O barulho do vento indicava
que a chuva estava a caminho e eu pensei que seria bom para Flora que Felipe
não pudesse pegar a estrada hoje. Além do mais, o cheiro de terra molhada é um
dos meus preferidos. Fui correndo até a sorveteria e chamei o mais novo casal
de Azagaia para o almoço. Era impressionante que eu estivesse com tanta fome
depois do café-da-manhã que tomei, mas meu estômago parecia completamente
vazio. Quando eu me aproximava de casa, Davi me alcançou com um bilhetinho de
Daniel em mãos.
- Meu irmão mandou te entregar.
- Obrigada, Davi. Por que você não
foi com eles?
- Daniel não deixou. Disse que um
de nós deve sempre fazer companhia para mamãe.
- Certo. Até mais então.
- Até.
Foi só o tempo de entrar em casa
que a chuva desceu com força sobre a cidade. Ainda pude ver as senhoras
correndo para recolher suas roupas do varal, com toalhas sobre as cabeças,
gritando para os filhos fecharem as janelas dos quartos. De longe, Davi ainda
tentava chegar a casa. Só então me lembrei de abrir o bilhete.
“Quer andar de bicicleta depois do
jantar? Te espero do outro lado da rua. D.”
Minhas mãos formigaram na mesma
hora. Era engraçado que Daniel me deixasse dormente todas as vezes que eu o via
ou pensava em seu nome. E sem perceber, eu sorria. Despertei do torpor que ele
me causou com minha mãe parada na minha frente.
- Você não está me ouvindo, Lílian
Amaral? Tira esse sorriso bobo da cara e vem me ajudar na cozinha. Vou levar a
comida do seu pai e já volto. Você está com alguma coisa nas mãos?
- Eu? Não. O que quer que eu faça?
- Olha o pernil no forno. A Flora
está colocando a mesa.
- Tudo bem. Mãe?
- O que é?
- Nada.
Depois do almoço, mamãe separou
umas roupas de cama para Orestes e Felipe porque a chuva os impediu de viajar.
Tínhamos o costume de descansar um pouco toda tarde, mas a casa parecia agitada
demais para que a rotina continuasse a mesma. Os adultos foram para o quarto de
papai e nós ficamos ajudando mamãe a arrumar a cozinha. Quando subi para
perguntar se vovô e Orestes queriam um café eu mesma havia acabado de passar,
escutei uma frase vinda do quarto de papai que me fez esperar para anunciar
minha presença.
- O que você disse Orestes?
- Isso mesmo que o senhor acabou de
escutar. Houve outra tentativa contra a vida de Amadeo e as coisas estão
ficando cada vez mais delicadas. Eu viajo muito e ouço de tudo o que acontece
por aí. Posso garantir a vocês que a guerra não demora a começar. Se alguma
coisa acontecer ao rei da Ilha do Véu...
- Nem pense nisso! – escutei meu
avô interromper – Ainda não estamos prontos para uma guerra dessas proporções.
Fui informado de que Cabeceira apoiará Amadeo e Azagaia estará dividida. Além
do mais, precisamos descobrir onde a família de Amadeo está escondida. Eles
correm grave perigo, e se alguma coisa lhes acontecer Amadeo não nos poupará. O
que acha Camilo?
- Tenho uma forte desconfiança de
onde a família do rei Amadeo se esconde. Precisamos levar Lílian para Poço das
Almas até que as coisas se acalmem.
Quando escutei meu pai dizer isso,
senti uma angústia enorme. Por causa dessa confusão toda eu teria que ficar
mais tempo longe de Daniel. Não era justo! Precisava arrumar um jeito de ir ao
encontro dele de qualquer maneira. A única coisa que poderia atrapalhar era a
chuva, que não dava uma trégua.
****************
Depois de uma tarde inteirinha
temendo que a chuva não passasse e eu não pudesse ver Daniel, finalmente o
tempo deu mostras de que melhoraria. O que não era exatamente bom, porque sem
chuva a estrada estaria liberada para viajarmos pela manhã. Eu não tinha
certeza se meus pais me mandariam agora para Poço das Almas, mas não poderia
esperar para não correr o risco de ir sem me despedir de Daniel. À hora
marcada, abri a janela do quarto e desci pela sebe que cobria toda a parede
externa da minha casa, tomando cuidado para não me machucar com os espinhos e
acabar lá embaixo mais rápido do que desejava. Flora já havia ido para casa e
eu disse que precisava dormir um pouco para me recuperar do dia incomum que
tivemos. De qualquer forma eu tinha pouco tempo. Precisava voltar antes de Trevo
acordar e começar a latir no quarto.
Quando saí pelo cantinho do muro,
vi Daniel parado, segurando a bicicleta com uma das mãos e com a outra no
bolso. Pulei o quanto pude, gesticulando nervosamente para chamar sua atenção
sem precisar me arriscar em frente a minha casa. Ele não demorou a perceber que
eu estava ali, feito uma louca criminosa, abaixando e levantando enquanto
gesticulava. Quando vi que ele começava a rir, me senti a idiota que realmente
devo ser. Fiz sinal para que ele me esperasse mais à frente e voltei para pegar
a minha bicicleta. Foi quando percebi, no escuro, uma figura enorme parada
diante da garagem e olhando diretamente para mim. Prendi a respiração por
alguns segundos na esperança que ele não tivesse me notado, mas foi em vão.
- O que a senhorita está fazendo
aqui fora? Não precisava descansar?
- Vovô? Eu-eu-eu...
- Você o quê? Estou esperando.
- Eu-eu... Vovô, por favor?
- Cinco minutos, Lílian. Esse é
todo o tempo que eu posso esperar por você. Vá até lá e diga para o seu amigo
que mudou de ideia e não vai mais acompanhá-lo. E quando entrar vai explicar
tudinho para o seu pai.
Eu nem discuti porque era perda de
tempo. Deixei a bicicleta ali e fui até Daniel quase chorando.
- Meu avô me pegou tentando sair.
Tenho que voltar agora. Só quero te dizer que acho que vão me levar para Poço
das Almas amanhã. Não faço ideia de quando poderei voltar.
- Por que tão de repente?
- Não posso te explicar. Você me
espera?
- Já te disse que pelo tempo que
for necessário. Escreva para mim mandando o endereço de onde você vai ficar.
- O que você vai fazer?
- Só faça o que estou dizendo.
- Vou sentir muitas saudades. Não
me esqueça.
- Sinto sua falta no instante em
que você sai do alcance dos meus olhos.
- Tenho medo que você seja como um
passarinho, livre demais para viver preso a mim.
- Se eu sou um passarinho, você é o
vento que sustenta meu voo. Eu não poderia voar sem você, poderia?
XII – O Príncipe Escondido
Contar uma história não é
tarefa simples, mesmo as histórias vividas são impossíveis de lembrar em todos
os seus ângulos. O que conto para vocês é uma sombra, porque não me recordo de
cada detalhe do que passou e ignoro o que há de vir. Só sei é que a vida da
gente desfila diante de nossos olhos quando entendemos o quanto somos
insignificantes e frágeis. E sabe o que mais lamentei enquanto minha vida
corria perigo? Não ter tido muito tempo com meu amor. Prometi a mim mesma que
sobreviveria a esse campo de batalha, e que encontraria Daniel ou quem quer que
ele fosse agora...
Voltar para Poço das Almas
não foi nada fácil dessa vez. É muito difícil lidar com separações no decorrer
da vida, mas quando somos adolescentes e achamos que tudo deveria ser como
sonhamos, as coisas podem ficar um pouco piores do que realmente são. Entrei no
carro velho de vovô com ódio por ter sido obrigada a me separar de tudo o que
amo.
- Quando estou em Cabeceira
tenho que ir para Poço das Almas, quando estou em Poço das Almas me arrastam
para Cabeceira, vocês querem fazer o favor de se decidir?!
- Lílian, não seja uma garota
mimada. Nem fica bem, na idade em que está já passou da fase de chorar e fazer
beicinho.
- Vovô, o senhor nunca
entenderia!
- Você acha? Você realmente
acredita que já nasci velho? Também tive a sua idade, mocinha. Para seu
conhecimento, esperei por sua avó por doze anos.
- Por que demorou tanto?
- É uma longa história...
- E o que vamos fazer até
Poço das Almas? Conte-me uma história de amor.
- Aquele rapaz é seu
namorado, menina?!
- Conte-me sua história que
eu conto a minha.
Vovô soltou uma gargalhada
que fez meus ouvidos dilatarem.
- Essa é boa! Você já tem uma
história? Sorte sua mãe não estar aqui, ela te trancaria num quarto até você
ter idade suficiente para ter netos!
- O pior é que sei que o
senhor tem razão. Mamãe é mais linha dura que papai, não é?
- Ela só é mais preocupada.
Mas não se engane todas as decisões que tomam a seu respeito são avaliadas
pelos dois. Um não fala com você sem a autorização do outro. Aqueles dois são o
casal mais unido que já conheci.
- Mais que o senhor e a vovó?
- Com certeza! Sua avó manda
em mim, Lílian. Só não diga a ela que admiti isso, certo?
- Pode deixar. Mas me conte a
história de vocês.
- Hum, deixe-me ver, conheci
sua avó na fazenda. Ela e a família pediram ao meu pai abrigo durante alguns
dias. Estavam a caminho de Tornados quando a filha mais nova teve febre. Eu
tinha trinta e um anos e sua avó onze.
- Você gostou de uma menina
de onze anos?
- Não como você imagina. Não
me apaixonei por sua avó assim que a conheci, mas ela sabia que se casaria
comigo quando me viu a primeira vez.
- Como?
- Não sei querida, mas sua
avó tem dessas coisas. Até hoje não entendi como ela descobre algumas coisas
antes mesmo que aconteçam. O caso é que os pais precisavam partir, mas a menina
não melhorava. Então eles pediram que meu pai permitisse que elas ficassem aqui
até que eles retornassem da viagem.
- E elas ficaram?
- Oh, sim, ficaram.
- E eles voltaram?
- Voltaram. Só que quatro
anos depois. Durante esse tempo, sua avó se tornou uma linda moça e eu me
apaixonei. Mas quando os pais dela voltaram nem quiseram conversar
sobre a possibilidade de nos casarmos, então partiram sem rumo e eu só pude
encontrá-la doze anos depois. Quando eu apontei na pequena propriedade que ela
vivia com a mãe e as irmãs depois que seu pai as abandonou, ela sabia que era
eu mesmo de longe. Entrou em casa e disse à mãe que me acompanharia. Desde esse
dia estamos juntos, e eu não posso imaginar minha vida sem ela.
- Que linda história, vovô!
- Tenho uma coisa para te
dizer, mas não pode contar a sua avó que abri minha boca.
- Prometo que selarei minha
boca – e fiz um sinal com as mãos nos lábios, como se tivessem sido colados.
- Quando Marina fugiu com seu
pai, eu e meus homens fomos atrás deles até as montanhas a oeste de Tornados.
Estávamos a um passo de capturá-los quando um moleque da fazenda chegou com um
bilhete de sua avó que dizia assim: “Deixe-os ir. Eles precisam cuidar do nosso
futuro.” Sabe de quem ela falava?
- De mim?
- Você é uma menina
inteligente, Lílian Amaral!
- Vovô?
- Fale querida.
- Pensei numa coisa agora...
e se eu fosse essa garota que Azagaia está esperando? A que vai encontrar o
segredo da Pedra Marcada e unificar o país? Já pensou?!
- Já sim. O que você acha
disso?
- Que seria muito legal! Eu
seria importante e meu pai se orgulharia de mim.
- Nós já nos orgulhamos de
você, Lílian. De como trata as pessoas com carinho e consideração. Ser a
escolhida para unificar Azagaia seria uma honra, mas seria um fardo também.
Você teria que deixar seus planos em segundo lugar para priorizar o bem de
muitas pessoas. Teria que pensar no efeito de suas decisões sobre a vida dos
que dependem de você, teria que enfrentar oposições e inimigos nem sempre
óbvios em seus intentos. De qualquer forma, teremos que esperar até que você
complete dezesseis anos. O segredo da pedra só se revelará nesse tempo. O que
acha disso?
- Não sei, vovô. Quando penso
em ser essa menina só o que me vem à cabeça é a cara de meus amigos. Seria
engraçado.
- E aquele rapaz? O que te
fez sair sorrateiramente de casa na outra noite?
- Ele não fez isso! Fui eu a
culpada.
- Sim. Mas e aí?
- Eu gosto dele vovô. Nós
queremos namorar, mas vamos esperar até que eu com-ple-te...
- O que foi?
- ... dezesseis anos. É isso!
Meu pai só vai me deixar namorar depois que descobrir se eu sou a escolhida ou
não! E se eu for? Existe a possibilidade dele não permitir meu namoro?
- Eu avisei a ele que você
juntaria as peças.
- O senhor sabia disso?
- Lílian, é complicado
explicar agora. Eu teria que conversar com Camilo primeiro. Só posso te dizer
que seu pai não vai se opor ao seu namoro com o rapaz. Só o que ele espera é
que você tenha maturidade suficiente para tomar algumas decisões antes de se
envolver com o menino. Além do mais, o autocontrole é um dom que um líder
precisa cultivar.
- Já estou achando um péssimo
negócio ser essa escolhida de Azagaia.
- Não é uma missão fácil.
Falando nisso, tenho uma tarefa para a senhorita amanhã.
- E o que seria?
- Você vai conhecer uma
pessoa. Alguém que já conhece de certa forma.
- E eu vou ficar sabendo quem
é antes ou o senhor vai fazer mistério?
- Quero que você conheça
Ferus, o homem que você viu na mata quando entrou com Felipe.
- Então eu não tive uma
alucinação?! Eu sabia! Engraçado é que ele tem o mesmo nome de Ferus que lutou
ao lado dos Fundadores. Funciona como um título esse nome?
- Não. Ele tem esse nome há
anos, e nunca houve outro homem chamado Ferus nessa região.
- O senhor não está dizendo
que é o mesmo Ferus, está? Isso seria impossível!
- Lílian querida, um dia você
vai perceber que nada é impossível em Azagaia.
O restante da viagem nós
fizemos boa parte em silêncio. Eu tinha muitas coisas nas quais pensar e minha
cabeça estava tentando juntar os fatos e entender o que não queriam me dizer.
Eu já sabia que Azagaia e a Ilha do Véu lutavam antes mesmo de terem esses
nomes, que minha família estava metida nessa guerra até o pescoço, que eu
poderia ser essa escolhida para liderar Azagaia e uní-la num só país, que, por
algum motivo meus pais achavam que eu precisava de maturidade para um namorico
de verão e que Ferus ainda existia. Essas coisas não pareciam fazer o menor
sentido e nem tinham qualquer ligação para mim até aquele instante. E essa
história maluca de um homem com mais de duzentos anos estava me provocando
curiosidade e medo no mesmo grau de intensidade. Conhecer Ferus para quê? Que
importância isso poderia ter para mim ou para ele? Havia em minha vida um
mistério que começava a me preocupar e eu não sabia onde tudo isso poderia me
levar, mas tinha medo que fosse para longe de Daniel.
Quando paramos na estrada
para fazer a merenda que mamãe havia preparado e puxei a lata de biscoitos de
dentro da caixa de papelão no banco de trás do carro, vi um pequeno pedaço de
papel cair e automaticamente me abaixei para pegá-lo sabendo que era para mim.
Quando abri o bilhete, li as palavras que, no fundo do coração, já esperava
encontrar ali:
"Em dois dias estarei em
Poço das Almas. Beijos, D."
Não pude acreditar e passei
os dois dias mais longos de toda a minha vida. Sim, porque dali para a frente
eu não teria mais muito tempo para agonizar por amor. A gente pensa quando ama
que nunca será suficiente o tempo que temos para estar ao lado de quem amamos,
mas no meu caso não foi mesmo.
Continuamos a viagem e fiquei
aliviada quando vi as Montanhas Rochosas de longe. Sabia que no ponto onde
podia visualizá-las restava apenas uma hora para chegar a Poço das Almas, mais
alguns minutos até a fazenda e a poeira da estrada ficaria para trás. Fomos
recebidos com festas e muita alegria, mas tudo o que eu queria era um banho e
silêncio. De dentro do meu quarto pude ouvir as músicas e a conversa animada de
todos, mas não consegui pensar em mais nada que não fosse a vinda de Daniel. Ao
mesmo tempo que me preocupava, pensava no quanto era valente o meu principezinho.
Nem consigo me lembrar como passei aqueles dias e o que aconteceu no espaço de
tempo em que esperei por ele, não podia deixar de me perguntar como Daniel
faria para me avisar que estava na fazenda. Passei o segundo dia depois de
minha chegada atenta a todos os detalhes e nada parecia diferente do que estava
habituada. Os mesmos horários, as mesmas pessoas, a mesma rotina. Nenhum sinal
de que alguém poderia estar invadindo a fortaleza dos Gutierrez. Consegui adiar
o encontro com Ferus e isso levantou suspeitas em meu avô, porque minha
curiosidade era famosa por todo lugar onde eu andava. Apesar disso, não
acredito que ele fosse capaz de imaginar o motivo de tanta distração e
angústia. Fiquei decepcionada quando a hora de dormir chegou e Daniel não deu
sinais de que havia cumprido sua palavra. Fui para o quarto louca de vontade de
ficar sozinha para lamentar minha falta de sorte e chorar um pouquinho. Nem
tive tempo de me entregar ao desespero, porque no canto do quarto, abaixado
entre o guarda-roupas e a parede, encontrei um garoto lindo, de cabelos
desarrumados e os dentes mais perfeitos do mundo que me recebeu assim:
- Pensei que fosse ficar
escondido aqui a vida toda! Vim cumprir minha promessa.
XIII – Formigamento.
Não acreditei quando vi Daniel no meu quarto.
- Como você conseguiu entrar? –
falei, sentindo todo o meu corpo tremer com a emoção de vê-lo misturada ao medo
de ser descoberta.
- Mas que recepção calorosa!
Exatamente como eu havia imaginado!
- Desculpe-me Daniel, mas você
há de convir que isso não é uma maneira doce de surpreender uma namorada.
- Gostei disso. Você pode
repetir?
- Bobo. Namorada? Não é o que
sou?
- É sim. A mais linda e a mais
complicada.
- Eu não sou complicada, minha
vida é que é. Agora sai desse canto que eu já estou começando a querer rir.
Como foi que chegou até aqui?
Daniel Castilho se levantou e
veio em minha direção com aquela firmeza característica e que parece arrogância
quando ainda não o conhecemos direito. Tinha a roupa amassada e a cara de quem
não dormia direito desde o instante em que nos separamos. Minha tremedeira deu
lugar ao meu famoso formigamento e, à medida que ele se aproximava eu sentia um
aperto no peito que me impedia de respirar.
- Nervosa?
- Por que a pergunta?
- Por nada, só achei que seria
natural ficar nervosa numa hora dessas.
- Do que você está falando
exatamente?
- Disso.
Daniel se aproximou tanto de
mim que parei completamente de respirar e, por um segundo pensei que fosse
morrer. Não consigo me lembrar de todos os detalhes, só que meu coração estava
muito acelerado, meu rosto quente e minha boca colada à dele. Senti como se
meus pés não tocassem o chão, como seu meu corpo flutuasse para longe dali,
como se não houvesse mais som no mundo... Queria nunca mais me desgrudar dos lábios
macios que tocavam os meus, do hálito doce que vinha de sua direção. Sem dúvida
eu não poderia ser mais feliz que isso aos treze.
Como uma boba que nunca diz o
que deveria nos momentos de estresse, eu abri minha boca e falei a primeira
coisa que veio em minha cabeça depois que nos desgrudamos:
- Você me prometeu esperar pela
autorização dos meus pais.
- Será que foi tão ruim assim?
- ele respondeu com um sorriso ainda mais sufocante que o beijo.
- Não! Sei lá porque eu disse
isso! Acho que você me pegou de surpresa e eu não sabia...
- Tudo bem. Se acalme. Prometo
que não repetirei até que você me peça.
Eu gostaria de dizer que não
era preciso tanto protocolo, mas fui orgulhosa e deixei passar.
- Acho bom! Assim não teremos
com que nos preocupar. Como foi a viagem?
- Nem queira saber. Azagaia
está mergulhada em um silêncio angustiante com o que está por vir. As pessoas
se fecharam e perderam o brilho nos olhos. Parece que aguardam por algo
realmente destruidor.Acho que perderam a fé em dias melhores. Se ao menos eu
soubesse..
- O quê? O que você poderia
saber sobre o que está acontecendo que mudaria alguma coisa?
- Nada. Eu só tenho curiosidade
sobre o comportamento das pessoas.
- Hum, e sobre o meu
comportamento? Você não gostaria de saber alguma coisa?
- Eu já sei o que preciso, que
é que você me ama. O resto eu tenho medo de descobrir porque você não me parece
dessas meninas comuns. Acho que poderia saber de algo que nos transformaria.
- Tipo o quê? Que assunto
louco!
- É verdade. Nem sei porque
disse isso. É só uma coisa que sinto. É uma angústia de perder o que ainda não
é meu de fato. Entende?
- Como se o tempo que nos pede
calma fosse um obstáculo eterno? Como se o dia de ficarmos juntos não estivesse
escrito?
- Exatamente! Você também se
sente assim?!
- O tempo todo.
- Então deve ser natural aos
apaixonados.
- Ou um aviso.
Daniel tentou disfarçar, mas
era óbvio que nossa conversa havia deixado um gosto amargo em nossas bocas.
Apesar do beijo lindo, nunca mais esquecemos aquelas palavras que pareciam saídas
de um livro já escrito, com um final nada agradável. Tentamos espantar os
pensamentos de mau agouro com notícias frívolas sobre Cabeceira do Rio Seco. Os
beijos que me mandaram, as fofocas de Dona Domingas, os novos sabores de
sorvetes de Seu Eusébio... Falamos de tudo o que nos ocorria, até de Catarina e
seus devaneios de princesa esquecida. Dormi com a cabeça recostada no ombro de
Daniel, e me lembro que ele disse que voltaria no dia seguinte para se
despedir. O sono pesado não me permitiu perguntar onde ele passaria a noite, ou
a que horas viria me ver. Sonhei anoite inteira com guerras e com as pessoas
que amo sendo separadas de mim bruscamente. Meus sonhos eram tão reais que
acordei chorando e quase gritei quando senti que tocavam meu rosto.
- Daniel!
- Quem é Daniel minha querida?
Você estava sonhando?
- Ah, oi Berenice! Bom dia! Eu
acho que tive um pesadelo.
- Então não me conte. Dizem que
os pesadelos não devem ser contados antes do desjejum para que não se realizem.
Berenice não fazia ideia, mas
aqueles pesadelos eu não contaria nem que tivesse almoçado e jantado dias
seguidos. Teria que contar sobre a visita de Daniel, e para falar a verdade, eu
nem sabia se tinha sido real.
- Vá para o banho. Eu
separo sua roupa e deixo sobre a cama. Seu avô a aguarda na sala, tem um
compromisso com você em algum lugar sobre o qual não quer falar.
- Acho que sei do que se trata.
Levantei-me sem vontade e fui
para o banheiro pensando se Berenice saberia escolher uma roupa para que eu
fosse à floresta. Com certeza vovô queria que eu conhecesse Ferus finalmente.
Eu queria matar minha curiosidade, mas não gostaria de me ausentar do quarto
até que Daniel voltasse para se despedir, caso sua visita não tivesse sido
outro dos meus sonhos. Felizmente, não precisei esperar muito tempo, porque ele
estava sentado em minha cadeira de estudos, comendo os bolinhos de chuva que
Berenice trouxe com meu café.
- Pensei que tivesse sonhado
contigo.
- Bom dia! Quer dizer que não
sou um sonho?!
- Você me entendeu. Onde passou
a noite?
- Na floresta. Lugar agradável.
- Como assim? Meu avô me disse
que só Planicianos tem autorização para entrar lá!
- Não achei nada estranho, só
mato e bichos. Arrumei um cantinho sossegado e pernoitei. Ninguém veio me
proibir de ficar ou me expulsar dela não.
- Estranho.
- Estranho é você ficar
perdendo nosso tempo com perguntas sem sentido ao invés de se despedir de mim
decentemente.
- Tem razão. Desculpe-me. Você
tem mesmo que ir?
- Claro que sim! Antes que
minha mãe mande alarme para os quatro cantos de Azagaia. E tenho minhas
responsabilidades também. Prometi a meu pai que não deixaria mamãe sozinha e me
sinto mal em não cumprir minha promessa. Sabe que o filho mais velho tem muitas
responsabilidades e eu não posso me esquivar delas.
- Entendo. Isso significa que
passaremos esses anos de espera sem outras visitas?
- Eu não suportaria. Darei um
jeito de voltar. Se não for possível deixar minha família sem minha proteção eu
posso conversar com meu pai e ele mandará um de seus empregados para me substituir.
- Você fala como se corressem
perigo. O que seu pai faz de tão importante para que vocês tenham que tomar
tanto cuidado?
- Hoje não tenho tempo para te
contar sobre minha família, mas teremos essa conversa futuramente.
- Não me diga que você também tem
a triste mania de me fazer mistério?!
- E quem mais faz isso com
você, meu tesouro?
- Meu pai é um deles. E você
acaba de falar igualzinho a ele.
- Hum, interessante.
- Preciso descer. Meu avô está
me esperando e vai desconfiar da demora. Promete que volta logo?
- Tem minha palavra.
Saí do quarto com aquela
sensação de que deixava minha felicidade para trás, mas tinha a esperança de
que Daniel poderia voltar logo e seria mais um dia de sonho a seu lado.
Vovô estava me aguardando na
sala como Berenice falou, e sua aparência era a de alguém impaciente.
- Desculpe a demora, vovô. Hoje
é um daqueles dias em que eu não gostaria de ter saído do quarto.
- Está indisposta? Algum
problema?
- Não. Só uma vontade que
passou. Diga-me qual será a aventura de hoje?
- A senhorita já deve
imaginar...
- Ferus. Ainda não sei como
poderei conhecer um homem que deveria estar morto há anos, mas tudo bem.
- Sente-se que precisamos
conversar antes do encontro.
Obedeci ao meu avô pensando na
história mirabolante que ele teria que me contar para explicar um fenômeno
impossível de ser explicado: um cara de mais de duzentos anos com a aparência
de um rapaz de quase trinta e com a vida toda pela frente. Meus pensamentos
fugiram rapidamente para Daniel, o que ele estaria fazendo, como faria para
voltar e quando isso seria. Só voltei à sala da fazenda quando ouvi meu avô
dizer meu nome.
- Você está prestando atenção,
menina?
- Desculpe-me vovô, eu não
acordei ainda.
- Sei, mas vamos ao que
interessa. Você já sabe da existência de Ferus e de que sua aparência demonstra
que ele possui muito menos idade do que na verdade tem. Seu encontro com ele
não foi dos melhores, mas a culpa foi minha que não a alertei sobre o acordo
que temos com os planicianos.
- Vovô, quais são as pessoas
que podem entrar na Floresta Descomunal sem que Ferus tenha o direito de ferir,
ou seja lá o que for que ele faça?
- Os planicianos e os que tem a
autorização deles. Por que pergunta?
- E se uma pessoa vem até aqui
e atravessa a Floresta por engano?
- Ela corre o risco de sofrer
nas mãos de Ferus, mas ele pode simplesmente deixá-la passar em paz. A decisão
é dele.
- Entendo. Eu não o peguei com
bom humor naquele dia.
- É possível, mas vamos ao
final disso. Quero que entenda porque precisa conhecê-lo. Os planicianos são os
guardiões do segredo da Pedra Marcada. Foram eles que guardaram nela a chave
que só a escolhida pode obter a fim de tirar de dentro da pedra o que ela
protege com tanto cuidado. Ferus vive há anos esperando que essa menina apareça
e o liberte de uma vida longa demais para ser feliz. Ele está condenado a
perder os que ama ano após ano, sem o direito de se reunir a eles. Vamos até a
tribo para que ele possa averiguar se você é essa menina.
- E como ele saberia? Não me
reconheceu ao me ver na floresta..
- Isso nós só descobriremos lá.
Pronta?
- Acho que não.
Vovô soltou uma gargalhada de
fazer vibrar meus ouvidos e uma onda de arrepio percorreu meu corpo. No mesmo
instante percebi que estava ficando toda dormente como jamais havia ficado em
toda a minha vida. Tinha medo da resposta de Ferus. Ser a escolhida seria uma
honra, mas alguma coisa me dizia que eu estaria condenada a viver longe do meu
amor.